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Bancos públicos na era da financeirização * * Resenha de: Public banks in the age of financialization: a comparative perspective. Editado por Christoph Scherrer. Edward Elgar, 2017. (Advances in Critical Policy Studies).

A era da chamada financeirização tem sido caracterizada por uma transformação sistêmica do capitalismo, em particular das economias desenvolvidas, cujo traço fundamental consiste na participação crescente de ativos financeiros no patrimônio das famílias e das corporações financeiras e não financeiras, apresentando-se como parte constitutiva de suas operações econômicas rotineiras (Lapavitsas, 2013LAPAVITSAS, C. Profiting without producing: how finance exploits us all. London, UK: Verso Books, 2013., cap. 2; Braga et al., 2017BRAGA, J. C.; OLIVEIRA, G. C.; WOLF. P. J. W.; PALLUDETO, A. W. A.; DEOS, S. S. For a political economy of financialization: theory and evidence. Economia e Sociedade, v. 26, n. especial, p. 829-856, 2017.). Esse momento histórico tem origem em uma série de transformações institucionais associadas ao colapso do sistema de Bretton Woods, em particular o amplo processo de liberalização e desregulamentação financeira a partir das décadas de 1970 e 1980 – que, conforme destaca Helleiner (1994)HELLEINER, E. States and the reemergence of global finance: from Bretton Woods to the 1990s. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1994., contou com a decisiva participação dos Estados Nacionais. Nesse contexto, novos atores financeiros, representados por investidores institucionais, e novos instrumentos financeiros, atrelados aos processos de securitização e à multiplicidade de formas de contratos de derivativos, passaram a permear o sistema econômico mundial, fenômeno que tem ampliado, sobremaneira, a instabilidade do sistema econômico como um todo. Diante deste contexto, qual é o papel que cabe aos bancos públicos?

Essa é a questão central do livro “Public banks in the age of financialization: A comparative perspective”, editado por Christoph Scherrer e publicado pela Edward Elgar em 2017 como parte da série “Advances in Critical Policy Studies”. Essa preocupação se justifica não apenas pelo próprio contexto geral da financeirização, que tem marcado o sistema econômico global por cerca de quatro décadas, mas também, e em particular, pelos desdobramentos da crise financeira internacional eclodida em 2008, cujos efeitos ainda são sentidos. Em diversas economias avançadas, é inegável que houve certo questionamento às visões predominantes acerca da operação dos sistemas financeiros e mesmo às privatizações que, sob o argumento da maior eficiência de instituições privadas em relação às públicas, foram conduzidas nas décadas anteriores. Em outras economias, como a brasileira no período mais recente, reiteram-se, em contraposição, questionamentos sobre a atuação de bancos públicos, tal como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Essas indagações servem para tornar ainda mais relevantes as discussões levantadas pelo livro e suas conclusões, inclusive reforçadas no contexto da pandemia de COVID-19, em que se observou forte atuação das instituições públicas.

Scherrer, em sua introdução ao livro, destaca que a crise financeira internacional colocou em xeque a estrutura econômica vigente caracterizada pela financeirização, porém poucas foram as alterações que, de fato, ocorreram em termos do sistema regulatório a fim de prevenir crises similares e conter a elevada volatilidade que tem marcado variáveis econômicas centrais, tais como as taxas de câmbio, de juros etc. Nesse contexto, o papel desempenhado por cooperativas e instituições financeiras públicas ganharia destaque, visto que, em geral, tomam menores riscos, podem orientarse por estratégias de longo prazo e se mostram mais diretamente vinculadas a interesses coletivos orientados para o bem público quando comparadas às instituições financeiras privadas guiadas exclusivamente pelo lucro.

Por meio de um conjunto de reflexões teóricas e análises empíricas baseadas em estudos de caso sobre bancos públicos, o livro provê argumentos para sustentar a hipótese de que essas instituições desempenham papel relevante para a estabilidade do sistema financeiro, ao mesmo tempo em que oferecem serviços financeiros ao setor produtivo, sobretudo enquanto uma fonte estável e a custos relativamente baixos de recursos para o financiamento de investimentos – e, assim, no fomento ao desenvolvimento econômico. A análise empírica se centra em três importantes países – Brasil, Alemanha e Índia – cujos respectivos sistemas financeiros compartilham uma característica central: a existência de um sistema bancário público significativo. As conclusões apontam que os bancos públicos têm servido como suporte ao financiamento do investimento por meio do fornecimento de recursos e de capacidade técnica à gestão de diversos empreendimentos. Ademais, o sistema bancário público tem sido fundamental na estabilização do ciclo econômico – em particular pela atuação anticíclica no contexto da crise financeira internacional. Além disso, especialmente no caso de países subdesenvolvidos, aponta-se que os bancos públicos permitem a inclusão financeira de parcela expressiva da população de menor renda. Como resultado, os bancos públicos apresentam enorme potencial de atenuar um dos principais traços dos sistemas financeiros na era da financeirização, qual seja, sua instabilidade inerente – ainda que tais bancos possam eventualmente ser capturados por interesses alheios às funções acima destacadas.

O livro é composto por 14 capítulos, agrupados em cinco partes, e conta com a contribuição de 16 autores de diversas instituições acadêmicas. A primeira parte do livro reúne dois capítulos de natureza mais abrangente que oferecem justificativas pelas quais a atuação dos bancos públicos se faz relevante. No capítulo 1, intitulado “Beyond the market failure argument: Public banks as stability anchors”, aponta-se que tais justificativas não se prendem às chamadas “falhas de mercado”, abordagem típica da visão econômica convencional. Ao contrário, introduzem-se elementos importantes das abordagens minskyana e institucionalista para a compreensão do comportamento das instituições bancárias no ciclo econômico. Nesse sentido, a natureza pró-cíclica inerente às operações do segmento financeiro privado traz à tona a necessidade de um sistema bancário público relevante na atuação anticíclica e na estabilização do sistema financeiro de modo geral. O segundo capítulo, por sua vez, cujo título é “Back to the future of alternative banks and patient capital”, destaca que os bancos de poupança (savings banks), bancos cooperativos e bancos de desenvolvimento – agrupados sob a denominação de bancos alternativos –, cujas operações se fundam em capital de prazo mais longo, apresentam vantagens competitivas importantes no setor. Desse modo, mesmo que a parcela desse segmento do sistema bancário tenha declinado nas últimas décadas, observa-se que não há um movimento generalizado de convergência a um modelo dominado por bancos privados orientados para o mercado. Com efeito, o capítulo aponta que os bancos alternativos foram capazes de resistir ao ambiente de maior liberalização e desregulamentação, modernizando-se, ampliando suas vantagens competitivas e mitigando os efeitos econômicos adversos e socialmente segregadores derivados das operações do restante do sistema bancário.

A segunda parte do livro, por sua vez, traz três capítulos compostos por estudos de caso, sobretudo relacionados à economia brasileira, que reforçam a hipótese dos bancos públicos como âncoras para a estabilidade financeira a partir de uma perspectiva minskyana e institucionalista. Ao longo dos dois primeiros capítulos dessa parte, intitulados, respectivamente, “Facing the 2008 crisis: Brazilian Central Bank and public banking system as Minskyan ‘big banks’” e “Federal public banks in Brazil: Historical overview and role in the recent crisis”, o papel do Banco Central e a participação dos bancos públicos brasileiros na provisão de liquidez frente ao efeito contágio da crise financeira internacional sobre a economia brasileira são ressaltados. Ademais, remonta-se à trajetória histórica de parte dessas importantes instituições financeiras antes e após a crise financeira, apontando para a necessidade de políticas coordenadas para uma efetiva superação dos efeitos da crise internacional. O último capítulo da segunda parte, denominado “Public banks and recent anticyclical policies: A comparison of the experiences of Brazil and Chile”, apresenta uma comparação entre o papel e o desempenho de dois importantes bancos públicos em seus respectivos países: a Caixa, no Brasil, e o BancoEstado, no Chile. A análise comparativa propõe delinear o tipo de atuação anticíclica efetuado em cada caso no contexto da crise. Observa-se que, no caso chileno, o BancoEstado apresentou uma orientação anticíclica típica, limitando o fornecimento de crédito tão logo os efeitos da crise no sistema financeiro chileno pareceram contidos. No caso brasileiro, porém, há um momento inicial, imediatamente após a crise internacional, em que a Caixa operou de maneira anticíclica, mas, como parte da estratégia de crescimento do governo no período, tão logo os efeitos mais imediatos da crise pareceram ter se reduzido, o banco seguiu ampliando suas operações de crédito, atuando de modo pró-cíclico.

A terceira parte discute, também por meio de três capítulos, a importância dos bancos públicos para o desenvolvimento econômico, ao tratar dos casos brasileiro, indiano e alemão. O caso brasileiro é abordado no capítulo “The role of the Brazilian Development Bank (BNDES) in Brazilian development policy” por meio de uma análise da relação entre a política econômica adotada e o papel do BNDES, que desde sua criação em 1952 tem exercido papel fundamental na economia brasileira. Quanto ao período mais recente, ênfase é dada ao acelerado crescimento das operações do banco na esteira da adoção de uma orientação anticíclica frente à crise financeira internacional. No caso indiano, para o qual é dedicado o capítulo “Public banks and financial intermediation in India: The phases of nationalization, liberalization and inclusion”, destaque é dado ao processo histórico de nacionalização dos bancos a partir de 1969 – como parte de uma estratégia orientada ao crescimento econômico e à distribuição de renda –, posterior liberalização nos anos 1990 e direcionamento à inclusão financeira no século XXI, com o retorno de uma maior preocupação com a equidade social. O caso alemão é tratado no capítulo “Governance of development banks under uncertainty”. Com o propósito de estabelecer os princípios básicos de governança dos bancos de desenvolvimento, buscase desmistificar o argumento convencional de “politização” dos bancos públicos como forma de ingerência sobre a atuação dessas instituições, oferecendo uma visão institucionalista mais profunda sobre as diversas condições que afetam seu desempenho em um ambiente de incerteza e forte concorrência, por meio da análise do banco de desenvolvimento alemão KfW.

Em dois capítulos, a quarta parte do livro oferece uma visão acerca das críticas de natureza política em relação aos bancos públicos a partir da história do sistema bancário alemão. Primeiramente, no capítulo “Savings banks and Landesbanken in the German political economy: The long struggle between private and public banks”, reconstrói-se do ponto de vista histórico a longa batalha travada entre bancos públicos e privados no capitalismo alemão. Em seguida, no capítulo “Marginalizing the German savings banks through the European Single Market”, discute-se a possibilidade de redução da participação dos bancos públicos de poupança alemães – importantes durante a crise financeira –, frente ao cenário de unificação do sistema bancário europeu, complementando a análise feita no capítulo precedente.

Por fim, a quinta parte encerra o livro com quatro capítulos, que versam, de modo geral, sobre a importância da fiscalização e da transparência à sociedade dos bancos públicos, com destaque à sua estrutura de governança e à conscientização da sociedade e dos atores econômicos envolvidos acerca de um mandato público, de forma que os bancos possam cumprir adequadamente os objetivos socialmente estabelecidos. Em especial, procura-se examinar de que modo os bancos públicos podem desempenhar sua missão tão essencial ao desenvolvimento econômico de um país por meio de serviços financeiros públicos, tal como amplamente demonstrado frente à crise financeira internacional nos casos estudados. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos dessa parte, intitulados “Governance makes a difference: A case study of the German Landesbanken Helaba and WestLB” e “Changing structure of non-performing loans: The case of Indian public banks”, debruçam-se sobre os casos alemão e indiano, respectivamente. No capítulo seguinte, “The stakeholder governance of microfinance”, analisam-se as estruturas de governança e de relação com a sociedade de instituições microfinanceiras, de modo geral, como alternativas ao sistema predominante de grandes bancos comerciais. Por fim, o último capítulo do livro, “The challenge of keeping public banks on mission”, a partir da análise do sistema bancário público alemão no período recente, busca examinar as condições pelas quais tais instituições não seriam capturadas por interesses particulares – situação para a qual, sob o argumento convencional, restaria como saída apenas sua privatização –, nem tivessem suas operações moldadas no sentido de reforçar a financeirização.

Em suma, o livro aborda uma série de temas relevantes acerca do papel dos bancos públicos. Ao combinar uma análise histórica detalhada de casos particulares com a devida ênfase em sua dimensão institucional, revela-se uma referência indispensável aos interessados na área e a todos preocupados com a preservação e o aperfeiçoamento das instituições públicas em sua multiplicidade de funções, particularmente de cunho estabilizador e voltadas ao desenvolvimento econômico e social. Ademais, as contribuições presentes no livro podem servir de base para a consideração de temas não abordados pela obra, tais como o exame de outros casos em que sistemas de bancos públicos são relevantes, como na economia chinesa, e o papel dos bancos públicos no contexto das mudanças climáticas.

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    Resenha de: Public banks in the age of financialization: a comparative perspective. Editado por Christoph Scherrer. Edward Elgar, 2017. (Advances in Critical Policy Studies).

Referências bibliográficas

  • BRAGA, J. C.; OLIVEIRA, G. C.; WOLF. P. J. W.; PALLUDETO, A. W. A.; DEOS, S. S. For a political economy of financialization: theory and evidence. Economia e Sociedade, v. 26, n. especial, p. 829-856, 2017.
  • HELLEINER, E. States and the reemergence of global finance: from Bretton Woods to the 1990s. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1994.
  • LAPAVITSAS, C. Profiting without producing: how finance exploits us all. London, UK: Verso Books, 2013.
  • SCHERRER, C. (Ed.) Public banks in the age of financialization: a comparative perspective. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2019
  • Aceito
    09 Mar 2022
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