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Wilson Cano: “a vida me deu tudo que eu queria...”

Recentemente tive a oportunidade de destacar os pontos que considero mais importantes da vasta obra de Wilson Cano, em artigo para a Revista RBEUR/ANPUR (Brandão et al., 2020BRANDÃO, Carlos Antônio; OLIVEIRA, Fábio Lucas Pimentel de; GUIMARÃES NETO, Leonardo; SANTOS, Valdeci Monteiro dos. Wilson Cano, intérprete da questão regional e urbana do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 22, jan./dez. 2020.) e em capítulo do livro da ABED (Brandão, 2021BRANDÃO, Carlos Antônio. Pacto de dominação interna e o papel do capital mercantil ontem e hoje no Brasil: dialogando com Wilson Cano. In: SANTOS, Adroaldo Quintela et al. Wilson Cano: a questão regional e urbana no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Editora Expressão Popular; ABED, 2021. 608p.). Acrescentaria àquilo que pontuei naqueles textos que há uma crucial e quase-infinita agenda de pesquisas, inspirada por ele, a ser realizada pelxs jovens investigadorxs. Esta agenda é agora tornada mais importante neste momento de trevas em que estamos mergulhados. Seu principal ponto seria voltar à história das oligarquias mercantis-agrárias (agora “financeirizadas”), partindo das respectivas formas e modos de acumulação primitiva permanente que essas elites forjaram violentamente em cada região do Brasil. Assim, dever-se-ia buscar as raízes histórico-estruturais dos mecanismos e instrumentos através dos quais elas mantêm seus espaços de controle e de dominação econômica e política em cada território, projetando seus poderes à escala nacional. Mas, gostaria aqui de centrar em certas facetas da rica personalidade de Wilson Cano e lembrar algumas questões mais ligadas ao privilégio da convivência com ele. Com meus vinte e poucos anos, depois de ler e reler (e dar aulas sobre) a obra de Wilson Cano, conheci-o pessoalmente em uma palestra sua em 1984, no primeiro ano de minha carreira acadêmica na Universidade Federal de Uberlândia. Naquela ocasião me lembro que perguntei por questões teóricas, mas ele retrucou querendo saber da nossa atuação política concreta, como era o arco de alianças conservadoras que dominava a cidade e a região e o que estávamos fazendo para enfrentá-lo. Arriscaria afirmar que, dos founding fathers da Escola de Campinas, ele foi talvez o que mais viajou pelos quatro do Brasil, sobretudo pelo interior, desempenhando papel crucial na divulgação desse pensamento progressista pelo país. Ele propagou e consolidou, com suas orientações “regionalizadas”, uma visão situada, a partir “dos chãos”, do imenso território. Anos depois, em 1991, entrei em sua sala na Unicamp e disse que pretendia submeter um projeto para a seleção de doutorado com a temática das telecomunicações e sua geografia. Ele respondeu que era um ótimo tema, mas que não entendia absolutamente nada sobre o assunto. Em seguida, começou a falar sobre telecomunicações e os espaços regionais brasileiros e discorreu cerca de uma hora sobre as características, os desafios e outras peculiaridades do setor. Eu nunca me esqueci de sua visão abrangente e profunda sobre as TICs etc. naqueles preciosos sessenta minutos. Quatro anos depois, defendi minha tese, na qual desenvolvia todos aqueles pontos escrutinados por ele. Alguns anos depois, como professor do Instituto de Economia da Unicamp, de 1999 a 2011, tive a oportunidade de compartilhar muitos e ricos momentos de grande alegria com ele: como na vitória de Toninho para Prefeito de Campinas, em 2000, e o desejo em contribuir com aquele projeto de transformação da cidade; os fins de tarde no Bar da Coxinha; os domingos familiares na Chácara das Amoreiras, com os muito queridos Selma, Newton, Marcelo e Eduardo. Momentos em que era possível rir muito, sobre diversos assuntos, por exemplo, a descrição aprofundada da plumagem diversificada dos variegados tucanos, um de seus temas preferidos. Outra boa recordação foi quando mostrei a ele o rascunho do meu livro Território e Desenvolvimento (Brandão, 2012BRANDÃO, Carlos Antônio. Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.), pedindo para ele ler e falei que eu não sabia onde colocar um capítulo, se seria o primeiro ou o último. Ele leu e anotou todo o texto durante uma semana e quando fui procurá-lo, deu apenas um conselho certeiro: “é só partir no meio o tal capítulo e colocar a primeira metade no início e a segunda como capítulo final”. E assim foi publicado o livro com o seu prefácio. Frequentemente cito e relembro aos meus orientados os seus ensinamentos de “ir ‘advertindo o leitor’, ao longo da dissertação ou da tese, dos caminhos da análise e da argumentação que se está perseguindo”. Gostaria de dizer que ele ficou conhecido pelo Brasil por sua veemência, contundência nos debates, sobretudo em eventos, momentos em que geralmente era firme e aguerrido com seus contendores. Entusiasmado, colocava paixão em seus discursos e argumentações. Ao mesmo tempo, era muito passional e colocava muito o coração em tudo o que fazia. Persistiu até o final de sua vida na elaboração e discussão de seus apontamentos para um projeto nacional de desenvolvimento, sonhando com um país mais soberano e justo e menos desigual. Enfatizou, com sua habitual eloquência, a necessidade do enfrentamento político a nossas elites cosmopolitas-entreguistas e retrógradas, e eu diria, toscas. Em 2008 organizei um evento de homenagem a ele, reunindo seus orientandos, quando completava seus 70 anos. Gostaria de ficar com a memória das suas palavras finais naquela ocasião: “Tenho que agradecer. Sou um privilegiado. A vida (inclusive a acadêmica) me deu tudo que eu queria...”.

Referências bibliográficas

  • BRANDÃO, Carlos Antônio; OLIVEIRA, Fábio Lucas Pimentel de; GUIMARÃES NETO, Leonardo; SANTOS, Valdeci Monteiro dos. Wilson Cano, intérprete da questão regional e urbana do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 22, jan./dez. 2020.
  • BRANDÃO, Carlos Antônio. Pacto de dominação interna e o papel do capital mercantil ontem e hoje no Brasil: dialogando com Wilson Cano. In: SANTOS, Adroaldo Quintela et al. Wilson Cano: a questão regional e urbana no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; Editora Expressão Popular; ABED, 2021. 608p.
  • BRANDÃO, Carlos Antônio. Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    16 Ago 2021
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