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Eidorfe Moreira e o aspecto insular de Belém

Eidorfe Moreira and the insular aspect of Belém

Resumo

Eidorfe Moreira (1912-1989) escreveu um dos mais densos capítulos sobre o aspecto insular de Belém do Pará e uma das contribuições mais efetivas para os que pensam e administram essa cidade. Partindo do passado, ancorado no presente e sutil, mas firmemente indicando o seu futuro, a obra deste intelectual marca, com sua força reflexiva, todos aqueles que a ela tiveram acesso. A qualidade da linguagem, em termos de clareza e coesão, tem se traduzido em propostas como a Escola Bosque Prof. Eidorfe Moreira, que leva o seu nome, e desloca os belenenses para os espaços que se articulam com a parte continental do município, tal como guirlandas, como diria ele mesmo, e não como apêndices ou penduricalhos isolados. O objetivo deste ensaio é apresentar a visão integradora de Eidorfe Moreira sobre as ilhas neste território municipal. Tem como base metodológica a leitura e interpretação de textos desse autor e de outros que utilizaram seus escritos para formulações a respeito do mencionado espaço.

Espaço; Natureza; Urbanização; Planejamento; Humanização do espaço

Abstract

Eidorfe Moreira (1912-1989) wrote one of the densest chapters about the insular aspect of Belem, capital of the Brazilian State of Para, and one of the most effective contributions to those who think and run this city. While rooted in the past, grounded in the present and, subtly but firmly indicating the future, the work by the intellectual Eidorfe Moreira, with its reflective strength, makes a big impression on all those who access it. Due to the quality of the language in terms of simplicity and cohesion, it has resulted in projects such as the Escola Bosque (Woodland School) Prof. Eidorfe Moreira. This project bears the name of the author and brings residents to places that relate to continental parts of the municipality, like garlands, as the author would say, and not like appendices or isolated parts. The aim of this article is to present Eidorfe Moreira’s integrative perspective on the islands of which Belém’s municipal territory is composed. Methodologically, this article is based on the interpretation of Eidorfe Moreira’s texts and of texts by other authors who theorized about such spaces.

Space; Nature; Urbanization; Planning; Humanization of space

URBANO E RURAL ENTRELAÇADOS

Os setores urbanos caracterizados pela concentração de serviços básicos de saneamento, educação, saúde, transporte e moradia, nos últimos dois séculos, levaram a uma perspectiva em que o espaço e o modo de vida são dados por elementos ditos de urbanização. A referência dos municípios, estados e países são, portanto, as aglomerações, secundarizando-se os espaços dispersos, ordinariamente entendidos como rurais, nos quais ocorre a produção agrícola e pecuária, o extrativismo mineral e vegetal, a caça, a pesca, mas também atividades esportivas, de lazer e entretenimento (Guerra, 2006GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. Desenvolvimento territorial na Amazônia: rural e urbano como faces da mesma moeda. In: CARDOSO, Ana Claudia Duarte (Org.). O Rural e o urbano na Amazônia: diferentes olhares em perspectivas. Belém: EDUFPA, 2006, v. 1, p. 97-110.). Belém, capital do estado do Pará, possui 2/3 de seu território formado por ilhas, com uma população difusa e que tem somado, historicamente, menos de 10% do total, ficando esquecidas pela ação governamental até o primeiro quartel do século XX.

A contribuição de Eidorfe Moreira (1912-1989) para um olhar qualificado sobre o espaço insular deste município e, quiçá, de outras capitais com características semelhantes tem sido efetiva, se considerados os seus escritos, publicados em coletânea e acessível ao grande público (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449.). A perspectiva deste trabalho é dialogar com a produção deste intelectual sobre os aspectos que caracterizam o espaço urbano, visto como totalidade, tanto com seus aglomerados quanto com suas dispersões.

Em que pese muitas metrópoles do mundo1 1 Entre elas, podem ser listadas Paris, com as ilhas de La Cité e de Saint Louis; Nova York, com as ilhas de Manhatan, Brooklin, Staten Island e Queens; Hong Kong; Inglaterra e Madagascar, estas últimas como países. No Brasil, as ilhas de Upaon-Açu e Santa Catarina são emblemáticas, pois abrigam capitais de estado, respectivamente, São Luís e Florianópolis. terem sua ocupação localizada em ilhas, por sua representatividade elas se tornam centrais, contrariando o sentido de ‘ilheidade’ que, etimologicamente, apela para o carater cultural muito valorizado pelos sociológos e antropológos tanto quanto o de isolamento (isola , isla , ilha), este diferenciado com o conceito geográfico cultural de insularidade, conforme demonstra Diegues (1998DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e mares: simbolismo e imaginário. São Paulo: Editora Hucitec, 1998., p. 14). O mesmo autor reflete sobre a pouca intensidade de estudos sobre ilhéus até a década de 1990, e se lança na elaboração analítica de conceitos sobre esta categoria. No caso deste artigo, o que se pretende é ressaltar a percepção aguçada de Eidorfe Moreira sobre o espaço insular e hídrico da capital do estado do Pará, pouco habitado e desconsiderado pelos governantes até início da década de 1990, apesar de significativo espaço territorial.

No caso específico de Belém, fundada pelos portugueses em 1616, seu território municipal é composto de 43 ilhas, que lhe dão uma identidade particular e que vem sendo analisado e ocupado com uma centralidade continental. Trata-se, contudo, de um ambiente aquático, que exige reflexões sobre sua potencialidade espacial. O território municipal insular corresponde a 2/3 da área total de Belém, embora nele habite menos de 10% da população da capital desde os censos da década de 1940 (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 155; Guerra, 2007GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. Efeitos da ocupação urbana no extrativismo vegetal da Ilha de Cotijuba. Belém: Unama, 2007., p. 7).

A referência ao advogado Eidorfe Moreira, formado em Direito pela Universidade Federal do Pará e tornado professor de Geografia em estabelecimentos da cidade de Belém, pelo investimento autodidata feito nesta disciplina, o distingue como um dos pensadores mais requintados sobre o espaço amazônico. Suas contribuições influem filosoficamente sobre intelectuais e gestores atuantes na região, o que dá concretude à sua noção de que o geógrafo é um participante, e não um expectador, do mundo em que vive e exercita a sua profissão (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 7).

Nascido na capital da Paraiba (que tinha o mesmo nome do estado da Paraíba até os anos 1930, quando passou a se chamar João Pessoa) em 30 de julho de 1912, chegou em Belém aos dois anos de idade. Fez seus primeiros estudos nessa cidade. Morou em Soure, na ilha do Marajó2 2 Este dado biográfico é relevante por ter sido praticamente sua primeira vivência em uma ilha importante da região amazônica. , de 1925 a 1927, quando estudou no Externato Santa Júlia. A Belém, onde viveu praticamente toda a sua existência, dedicou um texto em que chama a atenção para sua ligação com as águas.

Embora seja possível encontrar, em todos os trabalhos de Eidorfe Moreira sobre a Amazônia, marcas e menções feitas à importância da água na determinação da paisagem e do comportamento dos habitantes da região, é no livro “Belém e sua expressão geográfica”, publicado pela Universidade Federal do Pará em 1966 e reeditado pela mesma universidade em 1989, em coletânea da obra completa, que se encontra condensada a sua perspectiva sobre a importância insular da capital paraense. O livro está dividido em três partes, compondo um total de 21 subtítulos. Valoriza, na primeira parte, a paisagem histórica em cinco capítulos, que se enumeram neste ensaio em ordem crescente para dar ideia do investimento do geógrafo-filósofo: (1) Sentido da fundação da cidade; (2) O problema das motivações; (3) Belém como cidade pioneira; (4) Reflexos da fundação da cidade; (5) A expansão urbana.

O que distingue esta abordagem introdutória e histórica sobre Belém é o carater ligado às águas, o que permite ao autor estabelecer uma periodização, segundo a qual, nos primórdios, Belém é classificada de ribeirinha, avançando no tempo para uma caracterização continental que só se firmará dois séculos depois de sua fundação (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 52). O caráter ribeirinho de Belém é enfatizado e a posiciona em articulação com outras terras por meio de hidrovias, em que pese ser considerada uma cidade isolada por vasta extensão de terra e por não dispor, até a segunda metade do século XX, de estradas nacionais que a interligassem com o centro e o sul do país. Nesta linha de raciocínio, Belém (como cidade) e a Amazônia (como região) não se ligavam, eram isoladas, se as rodovias forem consideradas como predominância da conexão com o mundo. Segundo Théry (2012)THÉRY, H. Le Brésil. 6. ed. Paris: Armand Colin, 2012. v. 1, 296 p., esta era uma concepção comum aos militares inspirados em Golbery do Couto e Silva, o que justificou os investimentos nas rodovias federais que passaram a ser realizados a partir da década de 1970.

A segunda parte do livro trata da paisagem natural e se desenvolve em sete capítulos: (6) O local da cidade; (7) O elemento hídrico; (8) As ilhas; (9) A floresta; (10) A geologia; (11) Os solos; (12) O clima. Nos itens sete (o elemento hídrico) e oito (as ilhas) encontram-se os elementos explorados neste artigo como de fundamental importância para uma compreensão dos aspectos da insularidade nesta capital amazônica.

A terceira parte trata da paisagem urbana em nove capítulos, assim intitulados: (13) A posição astronômica; (14) A posição geográfica; (15) A topografia; (16) A fisionomia urbana; (17) O traçado; (18) A estética do quadro; (19) A população; (20) Belém como capital; (21) Belém como porto.

Em que pese a ênfase dada à cidade de Belém como continente, o texto revela ter a cidade originalmente começado, ao que tudo indica, em uma ilha (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 58), a qual foi se integrando paulatinamente ao continente. A presença da água provoca reflexões em todo o texto, que assume um estilo particularmente poético quando se refere às ilhas que compõem a paisagem urbana. Segundo o autor, Belém tem como elementos cênicos fundamentais: “O rio que se alarga e abre perspectivas; a floresta [que] se fecha e barra os horizontes; as ilhas [que] se alinham e formam guirlandas” (Moreira, 1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 57). Nesta perspectiva, as ilhas integram-se ao território como enfeites que embelezam e emolduram a cidade, longe de serem elementos isolados desta composição.

Mitschein, Miranda e Paraense (1989MITSCHEIN, T.; MIRANDA, H. R.; PARAENSE, M. C. Urbanização selvagem e proletalização passiva na Amazônia: o caso de Belém. Belém: CEJUP, 1989., p. 34), apoiados em Moreira (1966)MOREIRA, Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. Belém: Imprensa Universitária, 1966., afirmam categoricamente a posição de centralidade da Belém continental, na qual ancoram sua pesquisa. Escrevem o seguinte: “(...) no plano histórico nenhuma região dependeu tanto de uma cidade como a Amazônia dependeu de Belém”. Centrais, embora consideradas como ilhas no vasto espaço amazônico, as cidades de Belém e Manaus também são apresentadas dessa maneira pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística:

Na Região Norte, as cidades se dispõem linearmente e de forma esparsa, ao longo dos vales. Sua estrutura urbana é o reflexo de uma área sem dinamismo econômico e subpovoada, onde apenas sobressaem dois grandes centros: Belém, considerada metrópole regional e Manaus, centro regional que juntos reunem mais de 50% da população urbana da Região Norte. As cidades pequenas e muito pequenas são bastante numerosas nesta região enquanto que as médias praticamente inexistem (IBGE, 1971IBGE. Sinopse Estatística do Brasil 1971. Belém: IBGE, 1971., p. 64).

Chama a atenção a distinção que Moreira (1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 59) faz entre a sede e o território municipal de Belém, ora destacando as ilhas que compõem esta paisagem, embora não sendo todas componentes do município de Belém, mas de outros que lhe fazem fronteira, como Acará e Barcarena, ora tratando da parte continental, mais adensada em termos populacionais.

O aspecto demográfico é um elemento definidor dessa diferença, o que fica claro no quadro em que Moreira (1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 155) apresenta os dados dos recenseamentos de 1940 a 1960. Complementando com a atualização para as décadas seguintes, verifica-se, na Tabela 1, que já se definia uma tendência à concentração populacional desde a década de 1940, o que se agudiza e se torna absoluta em 2010.

Tabela 1
Progressão demográfica da cidade e do município de Belém de 1940 a 2010. População urbana e rural. Hab. = número de habitantes. Fontes: *Moreira (1989, p. 155), baseado nos censos de 1940 a 1960; ***Anuário (2010) e IBGE (2000, 2010). ** População urbana. Montagem da tabela: GADG.

Da Tabela 1 se pode deduzir que a zona rural do município, onde se inserem as ilhas, vem progressivamente se tornando menos significativa em termos demográficos pelo intenso processo de urbanização, entendido como a chegada de serviços básicos como estradas, transporte regular, energia elétrica, escolas, postos de saúde e comércio. As ilhas permanecem bucólicas, como reservas de recursos naturais e refúgio da biodiversidade amazônica, em que pese o ataque sofrido por aquelas de topografia mais alta, como Mosqueiro, Caratateua e Cotijuba. O adensamento do continente se acentua, tornando o espaço insular cobiçado pelos que almejam qualidade de vida associada à tranquilidade do mundo rural. Belém é uma cidade em que cabe este desejo.

Segundo Moreira (1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 63), “Belém não deve às águas apenas uma parte de sua beleza, mas sua própria modelação. Não só no plano geográfico, como no plano histórico, a água é o elemento dinamizador da cidade”. Assim foi citado por Freire (2002FREIRE, Jacqueline Cunha da Serra. Juventude ribeirinha: identidade e cotidiano. 2002. 264 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento)– Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. Belém, 2002., p. 62), professora engajada politicamente na gestão da Escola Bosque entre 1997 e 2000. Ela pensava, então, na integração dos alunos ao serviço escolar por meio dos rios, atendendo a uma reivindicação de comunidades e de jovens que se sentiam enraizados nas ilhas e tinham expectativas reduzidas em relação à vida na cidade (Freire, 2002FREIRE, Jacqueline Cunha da Serra. Juventude ribeirinha: identidade e cotidiano. 2002. 264 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento)– Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. Belém, 2002., p. 243).

Emoldurada é, a cidade de Belém, pelas ilhas. Se sua parte mais povoada é a localizada na terra firme, o elemento hídrico está sempre presente para permitir o deslocamento e a animação. Antes de descrever as ilhas, na segunda parte do livro, o elemento hídrico é ressaltado por Moreira (1989MOREIRA. Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. In: MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. v. 1, Belém: Conselho Estadual de Cultura; Belém: CEJUP, 1989. p. 273-449., p. 69), que introduz com elegância o aspecto insular da cidade: “Se o rio define o plano e engrandece a perspectiva, é nas ilhas, entretanto, que reside a graça da paisagem belemense”. Ele ressalta o elemento hídrico como definidor da natureza e da configuração deste espaço, que vai se identificar com a terra firme dois séculos depois de estabelecido, tendo como referência, em termos de comunicação e transporte, o rio, o estuário e as baías.

Se é da natureza das ilhas o isolamento, como problematiza Diegues (1998DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e mares: simbolismo e imaginário. São Paulo: Editora Hucitec, 1998., p. 62), demonstrando que este aspecto não pode ser analisado mecanicamente, este é rompido pelas mesmas vias linfáticas que fazem supor a barreira. Eidorfe é enfático na contramão desta ideia: “É digno também de nota que as ilhas que defrontam com Belém não se acham isoladas, mas dispostas à semelhança de uma guirlanda envolvendo parte da cidade, o que lhes reforça os efeitos cênicos em termos geográficos” (Moreira, 2012MOREIRA, Eidorfe. Idéias para uma concepção geográfica da vida. Belém: SEMEC, 2012.apudGuimarães, 2012GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa. Caminhos para ler Eidorfe Moreira. In: MOREIRA, Eidorfe. Idéias para uma concepção geográfica da vida. Belém: SEMEC, 2012. p. 213-275., p. 237). No caso específico da citação de Guimarães (2012)GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa. Caminhos para ler Eidorfe Moreira. In: MOREIRA, Eidorfe. Idéias para uma concepção geográfica da vida. Belém: SEMEC, 2012. p. 213-275., especial conhecedora da obra deste autor e participante de experiência educacional inspirada na sua percepção sobre o espaço insular municipal, ganha dimensão o fato de ter sido ela uma das protagonistas da implantação deste projeto. No caso de Belém, os rios são ruas, como expressaram Barata, R. e Barata, P. (2013)BARATA, Rui; BARATA, Paulo André. Esse Rio é minha rua. Disponível em: <http://www.culturapara.com.br/rbarata/ruymusic.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
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em uma de suas letras musicadas4 4 “Esse rio é minha rua,/ minha e tua mururé,/ piso no peito da lua,/ deito no chão da maré. Refrão: Pois é, pois é,/ eu não sou de igarapé,/ quem montou na cobra grande,/ não se escancha em puraquê. Rio abaixo, rio acima,/ minha sina cana é,/ só em falá da mardita/ me alembrei de Abaeté. Refrão: Pois é, pois é,/ eu não sou de igarapé,/ quem montou na cobra grande,/ não se escancha em puraquê. Me arresponde bôto preto/ quem te deu esse pixé/ foi limo de maresia/ ou inhaca de mulhé?” , reforçando o caráter conectivo, ao invés de isolante da água.

Não se pode desprezar a apropriação dos significados da água na composição da obra de Eidorfe Moreira pelo fato de ela ter merecido um dos capítulos em seu trabalho, o qual se inscreve, em sua construção, na influência de Descartes (1983)DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Editora Parma, 1983., escapando, porém, do erro que esta metodologia costuma induzir, qual seja, o de considerar a parte sem a relação com o todo. Como se pode ver no sumário do livro descrito neste ensaio, Eidorfe Moreira analisa as partes e tem a capacidade de integrá-las no todo, sem que se percam as relações estabelecidas entre elas para compor o todo.

A OBRA DE EIDORFE MOREIRA CONVERTIDA EM INTERVENÇÕES DO PODER PÚBLICO

As sucessivas gestões da prefeitura de Belém, pelo menos até a década de 1980, tiveram ações pontuais no espaço insular da capital. Apenas Mosqueiro e Caratateua sofreram ações consequentes, como a ligação com o continente feita por pontes, incorporando essas ilhas, por meio de rodovias, ao espaço de vivências da população continental. Cotijuba, a partir de 1994, recebe uma linha regular de transporte e estímulos para manter o estilo de vida bucólico firmado em um plano diretor, que jamais, contudo, chegou a ser aprovado pela Câmara Municipal.

Organizações da sociedade civil passaram a fazer proposições e pressão para investimentos no espaço insular de Belém, logrando, como intervenção mais evidente, a construção da Escola Bosque, na ilha de Caratateua. Inaugurada em 16 de abril de 1996, a Fundação Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira iniciou com 720 alunos, em caráter experimental, e foi replicada para outras ilhas por meio de anexos, que seguiam a mesma filosofia da educação ambiental contida no seu Plano Político Pedagógico (Escola Bosque, 2013ESCOLA BOSQUE. Disponível em: <http://www.escolabosque.org/>. Acesso em: 21 mar. 2013.
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). A sede da instituição se localiza no Distrito Administrativo de Outeiro, a 35 km do centro de Belém, com uma área de 12 hectares e vegetação de mata secundária.

A ideia central é oferecer formação escolar baseada na interação com o ambiente amazônico, com aulas teórico-práticas construídas a partir da matéria prima que se encontra no próprio local, preparando o jovem para uma vida nestes espaços, ao invés de induzí-los a entrar no processo de urbanização que descaracteriza o estilo de vida ribeirinho (Freire, 2002FREIRE, Jacqueline Cunha da Serra. Juventude ribeirinha: identidade e cotidiano. 2002. 264 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento)– Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. Belém, 2002., p. 243). O que aparece na dissertação de estudiosos das ilhas de Belém é nitidamente de inspiração eidorfiana, cada vez mais consistente ao assumir que há uma postura produzida pela percepção do mundo concreto em que se vive, e é dessa percepção que se elabora uma forma de integração e transformação tão cara às reflexões do professor Eidorfe Moreira.

Na conturbada política local, a Escola Bosque tem resistido às diversas administrações e servido de modelo para outras experiências da mesma natureza, reproduzindo-se no Amapá instituição com os mesmos propósitos e aspirações de ser referência em educação ambiental. Ela se situa em um conjunto de ilhas conhecido como Bailique. Os idealizadores e executores foram o sociólogo Mariano Klautau e a arquiteta Dula Lima (Soares, 2013SOARES, Ricardo. Um bosque no meio da floresta: primeira parte. Disponível em: <http://www2.tvcultura.com.br/caminhos/21bosque/bosque1.htm>. Acesso em: 21 mar. 2013.
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).

Na perspectiva filosófica de Eidorfe Moreira, as ilhas de Belém assumem um papel de destaque. Ele valoriza, nos seus escritos, tanto o seu passado quanto o presente por ele vivenciado, como arrisca uma perspectiva de futuro que deveria ser considerada para esta cidade (Moreira, 1980MOREIRA, Eidorfe. Belém do Futuro e sua moldura insular. A Provincia do Pará. 10 de agosto de 1980., apudGuimarães, 2012GUIMARÃES, Maria Stella Faciola Pessôa. Caminhos para ler Eidorfe Moreira. In: MOREIRA, Eidorfe. Idéias para uma concepção geográfica da vida. Belém: SEMEC, 2012. p. 213-275., p. 237).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fundamental da obra de Eidorfe Moreira é sua postura participativa, dada pela agudeza de reflexões reveladas em seu texto claro, instigante, ilustrativo. Se, como expectador, ele observa, como partícipe promove o leitor à condição de questionador, buscando respostas às perguntas que vão se plantando nas entrelinhas. Quem o lê coloca-se no diálogo e, como participante, se posiciona e reposiciona na medida em que a conversa vai ganhando consistência.

Os escritos podem ser simples registros descritivos, mas os do professor Eidorfe Moreira são analíticos, desconstruindo ou revelando como se formaram as visões sobre o objeto que ele estuda. São críticos, na medida em que interroga a pertinência e coerência do que ele coloca sob sua observação e verificação.

No caso das ilhas de Belém, anteriormente consideradas e usadas como espaços de isolamento, seja para a contemplação e recreio, como as ilhas de Mosqueiro e Caratateua, para o internato ou presídio, como foi a ilha de Cotijuba, para a produção agrícola, como tem sido Combu, ou ainda para reserva de produtos naturais, como a maior parte delas, as ilhas vêm sendo incorporadas às agendas de debate das instâncias municipais para tratamento normativo e medidas do executivo.

A instalação de vias de acesso rodoviário, como as pontes Sebastião Rabelo de Oliveira, ligando Mosqueiro (12 de janeiro de 1976), e Enéas Martins, Caratateua (26 de Outubro de 1986), ao continente, o apoio e os acordos sobre os preços do transporte urbano para o centro da cidade, feito entre instâncias da Prefeitura Municipal e dos empresários do setor, a criação de linha regular de transporte fluvial para Cotijuba (1994) e a criação da Fundação Centro de Referência Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira são algumas das constatações de que as ilhas do arquipélago belemense vêm se modificando e integrando paulatinamente à dinâmica da sede municipal.

Um Plano Diretor para as ilhas de Belém chegou a ser elaborado na década de 1990, estancado no processo de negociação e impedindo uma progressiva e eficaz intervenção nestas áreas, que continuam aguardando reforços nos serviços básicos de educação, saúde, energia e transporte de qualidade. Mantem-se o caráter de lazer, contemplação, reserva de recursos naturais (caça, pesca) e de produção agrícola em parte das ilhas de Belém, por força da mobilização da sociedade civil e pela crescente sensibilização de gestores dos orgãos públicos municipais, seja na esfera do legislativo ou do executivo.

A representatividade geográfica da área insular de Belém é, em sim mesma, uma provocação para a reflexão sobre os seus possíveis usos no futuro, sem que estes inviabilizem a paisagem e o aspecto bucólico que guardam. Firmar com o nome do professor Eidorfe Moreira o inovador projeto da Escola Bosque e encontrá-lo citado em trabalhos acadêmicos demonstram uma redescoberta daquele que é considerado um pensador visionário sobre os usos que se pode fazer do território de uma cidade capital, como é o caso de Belém.

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.1590/1981-81222015000300004
  • 1
    Entre elas, podem ser listadas Paris, com as ilhas de La Cité e de Saint Louis; Nova York, com as ilhas de Manhatan, Brooklin, Staten Island e Queens; Hong Kong; Inglaterra e Madagascar, estas últimas como países. No Brasil, as ilhas de Upaon-Açu e Santa Catarina são emblemáticas, pois abrigam capitais de estado, respectivamente, São Luís e Florianópolis.
  • 2
    Este dado biográfico é relevante por ter sido praticamente sua primeira vivência em uma ilha importante da região amazônica.
  • 3
    Brito, Horta e Amaral. [2000?]BRITO, Fausto; HORTA, Cláudia Júlia Guimarães; AMARAL, Ernesto Friedrich de Lima. A urbanização recente no Brasil e as aglomerações metropolitanas, [2000?]. Disponível em: <http://www.nre.seed.pr.gov.br/cascavel/arquivos/File/A_urbanizacao_no_brasil.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2013.
    http://www.nre.seed.pr.gov.br/cascavel/a...
    fazem referência a 669.768 habitantes totais em Belém em 1970. Considerado este número com os dados de população urbana, teríamos uma concentração de 76,4% na cidade.
  • 4
    “Esse rio é minha rua,/ minha e tua mururé,/ piso no peito da lua,/ deito no chão da maré. Refrão: Pois é, pois é,/ eu não sou de igarapé,/ quem montou na cobra grande,/ não se escancha em puraquê. Rio abaixo, rio acima,/ minha sina cana é,/ só em falá da mardita/ me alembrei de Abaeté. Refrão: Pois é, pois é,/ eu não sou de igarapé,/ quem montou na cobra grande,/ não se escancha em puraquê. Me arresponde bôto preto/ quem te deu esse pixé/ foi limo de maresia/ ou inhaca de mulhé?”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2013
  • Aceito
    06 Abr 2015
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