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Análise de características discursivas e disciplinares em artigos sobre o ensino da escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental publicados entre 2008 e 2018 1 Editor responsável: Ana Lúcia Guedes Pinto. https://orcid.org/0000-0002-0857-8187 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni - andreaianni1@gmail.com

Resumo

Esta pesquisa bibliográfica expõe características discursivas do conteúdo escolar “ensino da escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental” quando tomado como objeto de pesquisa, e propõe reflexões sobre a sua configuração disciplinar (Foucault, 2004). A análise abrangeu 15 artigos, advindos de duas áreas do conhecimento, Psicologia e Educação. Focalizou-se na caracterização do gênero discursivo “artigo científico” (Bakhtin, 2011), e identificaram-se importantes distinções disciplinares nas produções de cada área do conhecimento. Enquanto as da Psicologia expuseram resultados a partir de testes e tarefas de verificação do conhecimento da escrita e da corroboração de pesquisas anteriores em artigos padronizados conforme o modelo de comunicação IMRD, as da Educação não se apresentaram em conformidade com esse modelo e focalizaram os processos de ensino da escrita a partir de práticas didáticas diversas. Foi possível, ainda, identificar características de legitimação dos resultados de pesquisa como objetos de ensino na esfera escolar.

Palavras-chave
ensino da escrita; primeiro ciclo do ensino fundamental; produção do conhecimento

Abstract

This bibliographical research exposes discursive characteristics of the “teaching of writing in the early years of elementary school” school content when taken as object of study and proposes reflections on its disciplinary configuration (Foucault, 2004). The analysis covered 15 articles, from two areas of knowledge, “Psychology” and “Education.” We focused on the characterization of the discursive genre “scientific article” (Bakhtin, 2011), and identified important disciplinary distinctions in the productions of each area of knowledge. Whereas Psychology publications exposed results from tests and tasks to verify writing knowledge and corroborate previous research in standardized articles according to the IMRD communication model, Education publications did not conform to this model and focused on teaching of writing processes based on different didactic practices. Identifying characteristics of legitimization of research results as teaching objects in the school sphere was also possible.

Keywords
teaching of writing; first cycle of elementary education; production of knowledge

Introdução

No presente artigo, discutimos características discursivas e aspectos da configuração disciplinar do “ensino de escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental” quando esse conteúdo escolar é tomado como objeto de investigação em artigos científicos publicados em periódicos especializados. A problemática geral3 3 O presente artigo é um desdobramento da tese de doutorado da primeira autora. da qual se origina este texto é: de que modo conteúdos de ensino se configuram como objetos de pesquisa?

Nessa direção, mobilizamos Bakhtin (2011)Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes. no que diz respeito à caracterização discursiva do gênero “artigo científico” e Foucault (2004)Foucault, M. (2004). A ordem do discurso (11.ª ed., L. F. de A. Sampaio, Trad.). Loyola. quanto à reflexão sobre a configuração disciplinar que alinha a produção científica a campos de saber específicos.

A fim de situar contextos investigativos em que a escrita escolar é tomada como objeto de pesquisa na produção do conhecimento, citamos Pietri (2007Pietri, E. de (2007). A constituição da escrita escolar em objeto de análise dos estudos lingüísticos. Trabalhos em Linguística Aplicada, 46(2), 283-297. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132007000200010⟨=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, 2013Pietri, E. de (2013). Os limites do contexto: A constituição da escrita escolar em objeto dos estudos linguísticos. Linguagem em (Dis)curso, 13(3), 515-542. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-76322013000300004⟨=pt
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, 2014)Pietri, E. de (2014). Os estudos linguísticos e a constituição de objetos de discurso: os conceitos da linguística textual como referência para o tratamento teórico-analítico da escrita escolar. Alfa: Revista de Linguística, 58(2), 371-400. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942014000200371⟨=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. Pietri (2007)Pietri, E. de (2007). A constituição da escrita escolar em objeto de análise dos estudos lingüísticos. Trabalhos em Linguística Aplicada, 46(2), 283-297. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132007000200010⟨=pt
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pontua o momento em que o texto escrito pelo aluno passou a atrair a atenção dos pesquisadores e tornou-se um objeto de pesquisa. Retoma, assim, a década de 1970, quando houve as primeiras publicações que tomavam redações de vestibular como foco de análise em trabalhos científicos. Destaca que a incorporação desse conteúdo, a escrita como objeto de pesquisa significou uma descontinuidade no que, até o período anteriormente citado, era validado no campo dos estudos linguísticos modernos como dados de pesquisa, que, no caso, eram aqueles advindos da fala, enquanto a escrita se circunscrevia aos estudos tradicionais.

Ao tratar desse período de transição, em que a ciência linguística brasileira incorporou como seu esse novo objeto de estudo, Pietri (2007)Pietri, E. de (2007). A constituição da escrita escolar em objeto de análise dos estudos lingüísticos. Trabalhos em Linguística Aplicada, 46(2), 283-297. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132007000200010⟨=pt
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aponta como há um percurso que vai da quase inexistência de subsídios da teoria linguística para a análise dos textos escritos, na década de 1970, até a predominância de uma perspectiva teórica, a da linguística textual, no contexto dos anos 1990, na constituição da escrita escolar como objeto de investigação (Pietri, 2007Pietri, E. de (2007). A constituição da escrita escolar em objeto de análise dos estudos lingüísticos. Trabalhos em Linguística Aplicada, 46(2), 283-297. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132007000200010⟨=pt
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, 2013Pietri, E. de (2013). Os limites do contexto: A constituição da escrita escolar em objeto dos estudos linguísticos. Linguagem em (Dis)curso, 13(3), 515-542. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-76322013000300004⟨=pt
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, 2014Pietri, E. de (2014). Os estudos linguísticos e a constituição de objetos de discurso: os conceitos da linguística textual como referência para o tratamento teórico-analítico da escrita escolar. Alfa: Revista de Linguística, 58(2), 371-400. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-57942014000200371⟨=pt
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).

Observamos que a pesquisa com enfoque no ensino da escrita, historicamente, iniciou-se pela análise de redações de vestibular, foi se configurando em torno da escrita de alunos do Ensino Médio e, posteriormente, esse objeto passou a incluir a escrita em outros anos de escolaridade, ao que o presente artigo dá a sua contribuição com a análise de produções sobre a escrita como conteúdo de ensino nos anos iniciais do Ensino Fundamental (doravante, EF).

Buscamos contribuir, também, ao sistematizar dados que retratam a importância de as condições de produção de um dado conhecimento serem consideradas nos discursos de (des)legitimação dos saberes. Para tanto, apresentamos análises que mostram como o mesmo objeto ganha contornos específicos no interior de uma dada área do saber. Assim, mostramos dados que apontam para a realidade múltipla encoberta por uma mesma terminologia de referência, tal como “ensino da escrita nos anos iniciais do EF”. Ao verificarmos esse fato pela análise das características discursivas e disciplinares em um conjunto de publicações – da Educação e da Psicologia – expusemos elementos que fortalecem a necessidade de avaliar de modo contextualizado a pertinência de determinado resultado de pesquisa.

Tal avaliação amplia o rigor das análises quando precisamos lidar com a interface entre conteúdos escolares e resultados de pesquisa, o que compõe o interesse de reflexão do presente trabalho, conforme anunciamos na pergunta que dá origem a este artigo.

A fim de elucidarmos a relevância desse tipo de reflexão, citamos, a título de exemplo, o recente Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências ‒ Renabe (Brasil, 2020Brasil (2020). Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (360 pp.). Sealf. https://www.gov.br/mec/pt-br/media/acesso_informacacao/pdf/RENABE_web.pdf
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). Trata-se de um relatório coordenado pela Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação, que, desde o seu título, enfatiza a importância das evidências científicas na esfera das políticas públicas educacionais:

A importância de evidências científicas, como critério de qualidade, fica patente já no próprio nome deste relatório: o Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências. O termo ‘evidências’ diz respeito a achados que resultam de pesquisas científicas. Uma alfabetização baseada em evidências é aquela que emprega procedimentos e recursos cujos efeitos foram testados e se mostraram eficazes.

(Brasil, 2020Brasil (2020). Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (360 pp.). Sealf. https://www.gov.br/mec/pt-br/media/acesso_informacacao/pdf/RENABE_web.pdf
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, p. 28)

Vê-se assim a articulação entre os conhecimentos escolares e científicos em contexto governamental recente, em que as evidências científicas são apresentadas como justificativa para a concepção de alfabetização então defendida. Sobre isso, destacamos que tais debates, que relacionam ciência e alfabetização, não ficam circunscritos à academia e à esfera governamental. Dão exemplo disso documentos anteriores ao Renabe divulgados na internet e com publicação em outras esferas de comunicação, como a midiática. A esse respeito, citamos o texto de um dos especialistas citado no Renabe, publicado na Revista Veja:

Um grupo de pesquisadores das áreas de psicologia, psicolinguística, linguística e neurociências encaminhou ao Conselho Nacional de Educação uma nota na qual se analisa a proposta do MEC para o currículo de alfabetização. A nota, escrita em linguagem profissional, simples e objetiva, é devastadora – não fica pedra sobre pedra. Altamente qualificado, o grupo é formado por pessoas com publicações em revistas científicas internacionais de alto prestígio, sendo que algumas delas também têm enorme experiência prática na área.

(Oliveira, 2017Oliveira, J. B. (2017). Alfabetização na BNCC: mais um retrocesso na educação. Veja. https://veja.abril.com.br/blog/educacao-em-evidencia/alfabetizacao-na-bncc-mais-um-retrocesso-na-educacao
https://veja.abril.com.br/blog/educacao-...
)

Oliveira (2017)Oliveira, J. B. (2017). Alfabetização na BNCC: mais um retrocesso na educação. Veja. https://veja.abril.com.br/blog/educacao-em-evidencia/alfabetizacao-na-bncc-mais-um-retrocesso-na-educacao
https://veja.abril.com.br/blog/educacao-...
refere-se ao que afirmam Seabra et al. (2017)Seabra, A. G., Navas, A. L., Pinheiro, A. M. V., Buchweitz, A., Cardoso-Martins, C., Capovilla, F., Weissheimer, J., Oliveira, J. B. e, Scliar-Cabral, L., Silva, L. C. F. da, Maluf, M. R., Gabriel, R., Ribeiro, S., & Pollo, T. (2017). Nota sobre a nova proposta de alfabetização apresentada pelo MEC ao CNE. Versão 18 de dezembro de 2017. http://arquivos.alfaebeto.org.br/nota-sobre-nova-proposta.pdf
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em sua Nota sobre a nova proposta de alfabetização apresentada pelo MEC ao CNE. Versão 18 de dezembro de 2017. Trata-se de um documento que critica a postura teórica referente à alfabetização assumida na BNCC e a caracteriza como um equívoco “à luz das evidências científicas disponíveis” (Seabra et al., 2017Seabra, A. G., Navas, A. L., Pinheiro, A. M. V., Buchweitz, A., Cardoso-Martins, C., Capovilla, F., Weissheimer, J., Oliveira, J. B. e, Scliar-Cabral, L., Silva, L. C. F. da, Maluf, M. R., Gabriel, R., Ribeiro, S., & Pollo, T. (2017). Nota sobre a nova proposta de alfabetização apresentada pelo MEC ao CNE. Versão 18 de dezembro de 2017. http://arquivos.alfaebeto.org.br/nota-sobre-nova-proposta.pdf
http://arquivos.alfaebeto.org.br/nota-so...
, p. 4), e no qual se lê o que segue: “o texto [da BNCC] afirma ‘dialogar’ com determinadas teorias linguísticas, mas certamente não dialoga com as evidências produzidas pela Ciência Cognitiva da Leitura [ênfase adicionada] a respeito do que seja alfabetizar e de como isso deve ser feito” (p. 4).

É possível localizar ainda a resposta a essa nota, assinada pelas redatoras do texto de Língua Portuguesa na versão da BNCC que foi então criticada. Nessa resposta, em rebate às críticas recebidas, afirma-se que “não há como ignorar pelo menos 30 anos de tradição científica [ênfase adicionada] em que essa visão da linguagem escrita como código alfabético vem sendo desmantelada” (Barbosa et al., 2017Barbosa, J., Mori, C., & Rojo, R. (2017). Resposta à “Nota sobre a nova proposta de alfabetização apresentada pelo MEC ao CNE”. http://arquivos.alfaebeto.org.br/nota-2-resposta-alfaebeto.pdf
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, p. 6).

Uma vez que no presente artigo não nos detemos na discussão específica sobre alfabetização, nosso propósito em fazer breves menções ao Renabe e aos demais textos citados – que podem ser lidos na íntegra em versão on-line – foi destacar passagens em que o saber científico é focalizado na argumentação para referendar as concepções defendidas e justificar as opções curriculares no debate recente sobre alfabetização.

Nesse sentido, e tendo em vista a interface entre conhecimentos científicos e conteúdos escolares, buscamos problematizar o saber científico-acadêmico que é incorporado como verdade sem que haja a sua relativização e a sua contextualização quanto aos processos de produção do conhecimento que delimitam o alcance dos resultados em questão.

Entende-se que estudos bibliográficos como o que se apresenta neste artigo contribuem para que mantenhamos um posicionamento crítico na abordagem do conhecimento científico, no sentido que Foucault (2000)Foucault, M. (2000). O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Cadernos da F.F.C Michel Foucault: histórias e destinos de um pensamento, 9(1), 169-189. dá à crítica quando defende que

a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; a crítica será a arte da não-servidão voluntária, da indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função o desassujeitamento no jogo que poderia ser denominado, em uma palavra, de política da verdade.

(p. 173)

Destacamos que o objetivo não é dicotomizar nossa reflexão sobre artigos científico-acadêmicos, qualificando-os em bons ou ruins. Propomos indicar como, discursiva e disciplinarmente, distintas políticas da verdade subjazem à produção de conhecimento referente ao “ensino da escrita nos anos iniciais do EF”, quando tal ensino se constitui como objeto de pesquisa. Assim sendo, os resultados advindos das investigações científico-acadêmicas decorrem dos seus contextos de produção.

Vale rememorar que, no campo do ensino de português, as imbricações entre conteúdos escolares e produção de conhecimento científico foram abordadas por Geraldi (1991)Geraldi, J. W. (1991). Portos de passagem (4.a ed.). Martins Fontes.. Ele discute formas como se definem os componentes escolares ‒ destaca os conteúdos de ensino que resultam de pesquisas científicas e passam a compor os currículos de formação docente inicial e vão, por conseguinte, integrar aulas da educação básica. O autor problematiza a incorporação de alguns resultados de pesquisa ao ensino quando, ao serem tomados como conteúdo escolar, deixam de entrever a realidade científica – suas especificidades e delimitações – e são tomados como verdades absolutas.

Como expusemos, no que se refere a essa interface entre resultados de pesquisa e conteúdos escolares, o presente artigo vem contribuir ao sistematizar dados que dão a ver que os resultados de pesquisa sobre ensino de escrita só podem ser devidamente interpretados ao levar em conta a configuração disciplinar das investigações sob enfoque. Caso não se considere isso, passa-se a referenciar “ensino de escrita” como se houvesse uma definição e uma caracterização una e homogênea, perdendo de vista que, enquanto uma parte das investigações científicas trata esse ensino como um resultado de testes, outras o consideram como um processo de ensino e aprendizagem. Tal distinção é demonstrada no presente artigo, entre outros aspectos, e sinaliza a inadequação de apontar isoladamente resultados quantitativos ou experiências de sucesso, pois isso não faz jus à complexidade do tema, uma vez que há contextos específicos de investigação cujos resultados cobrem parte da realidade sob enfoque e deixam outra parte descoberta.

Considerando tais aspectos relativos à interface entre produção científica e conteúdos escolares, analisamos as características discursivas e a configuração disciplinar do “ensino de escrita nos anos iniciais do EF” em pesquisas que tomam esse conteúdo escolar como objeto de investigação. Assim, questionamos: 1) como se caracterizam publicações científicas que tomam esse conteúdo escolar como objeto de investigação? e 2) quando esse conteúdo de ensino da língua se torna objeto de pesquisa, que configuração e delineamentos assume nessa outra posição?

A fim de responder a essas questões, no que segue apresentamos o corpus e a análise sustentada na concepção de gêneros do discurso, considerando que “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes., p. 262). Das obras foucaultianas que tratam da história dos saberes, mobilizamos, em especial, o conceito de disciplina como “possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas” (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A ordem do discurso (11.ª ed., L. F. de A. Sampaio, Trad.). Loyola., p. 6). Tais noções teóricas deram suporte à presente pesquisa e serão especificadas conforme forem mobilizadas no próprio processo de análise.

Desenvolvemos esta pesquisa bibliográfica (Lima & Mioto, 2007Lima, T. C. S. de, & Mioto, R. C. T. (2007). Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, 10 (especial), 37-45. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802007000300004&lng=en&nrm=iso
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) tendo em vista o objetivo geral de traçar um panorama da produção científica que aborda o ensino da escrita no primeiro ciclo do EF, com foco em suas características discursivas. Como objetivos específicos, definimos: a) identificar as recorrências discursivas; b) analisar a configuração científica do objeto de pesquisa em questão; e c) avaliar os efeitos de sentido dessa produção em termos de influência quanto ao conteúdo escolar “ensino de escrita”.

Para tanto, fizemos a análise de 15 artigos publicados entre 2008 e 2018 em diferentes periódicos brasileiros on-line das áreas de Psicologia e Educação. Para a constituição do corpus, definimos a Scientific Eletronic Library Online (Scielo)4 4 Nossa coleta de dados on-line na Scielo ocorreu entre maio e julho de 2019. como base de coleta de dados. Delimitamos como objeto artigos publicados em língua portuguesa, no período que viemos de citar, que tematizassem o ensino de escrita nos anos iniciais do EF. No processo de busca, utilizamos os descritores “ensino de escrita”, “ensino de produção de texto” e “ensino de produção textual” no índice Resumo e, a partir da leitura dos resumos e/ou da leitura global dos artigos, localizamos aqueles que discutiam o ensino da escrita nos anos iniciais do EF. Os resultados mostraram que a maior quantidade de artigos que correspondiam aos nossos critérios de pesquisa estava em periódicos da Psicologia e da Educação, de modo que foram publicações dessas duas áreas que compuseram o nosso material de análise.

1. O gênero do discurso “artigo científico” em questão

Da ampla e complexa obra de Mikhail Bakhtin, alguns conceitos têm notoriedade pelo modo como são recorrentemente citados e mobilizados em pesquisas com temáticas diversas. Um desses conceitos é o de “gêneros do discurso” (Brait & Pistori, 2012Brait, B., & Pistori, M. H. C. (2012). A produtividade do conceito de gênero em Bakhtin e o Círculo. Alfa: Revista de Linguística, 56(2), 371-401. https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-57942012000200002&script=sci_abstract&tlng=pt
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), que é frequentemente referenciado pelo ensaio de mesmo nome que integra a coletânea Estética da criação verbal (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.).

Diferentemente da teoria clássica dos gêneros, situada no campo da poética e da retórica, Bakhtin (2011)Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes. volta-se para as diversas esferas de uso da linguagem verbal, e abrange produções discursivas múltiplas, pertencentes a contextos privados ou públicos:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo.

(p. 262)

Dessa citação, vamos nos deter em dois aspectos para reflexão: repertório e diversidade. Cada esfera de produção discursiva, artística, sociopolítica, jornalística, entre outras, constitui, sócio-historicamente, os seus tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, os gêneros do discurso que lhe são próprios. Lembramos que “as esferas de uso da linguagem não são uma noção abstrata, mas uma referência direta aos enunciados concretos que se manifestam nos discursos” (Machado, 2016Machado, I. (2016). Gêneros Discursivos. In B. Brait, Bakhtin: conceitos-chave (5.ª ed., pp. 151-166). Contexto., p. 156) e nelas se constitui um repertório de gêneros que integra cada um dos campos da atividade humana, como ocorre no caso da esfera científica, na qual os artigos científicos compõem uma produção discursiva típica e padronizada. Ao mencionarmos o padrão de escrita, levamos em conta que ele não se configura de modo único, daí a diversidade que caracteriza os gêneros do discurso que são flexíveis nos seus elementos fundamentais: construção composicional, conteúdo temático e estilo da linguagem (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.).

Tendo em vista a importância do artigo científico entre os gêneros repertoriados no campo da Ciência e em busca de contribuir para as discussões referentes à produção de conhecimento, nós nos voltamos, a partir da perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin (2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes., 2015)Bakhtin, M. (2015). Teoria do romance I: a estilística (P. Bezerra, Trad.). Editora 34., à análise de artigos legitimados em sua esfera de circulação, a fim de identificar características discursivas. Em nossa análise, avaliamos, em especial, como se consolidou a indissociabilidade entre estrutura composicional, conteúdo temático e estilo, fator fundamental para a compreensão das relações dialógicas tensionadas entre o estável e o relativo na constituição dos gêneros.

Vale lembrar que o conceito bakhtiniano de dialogismo não se restringe ao diálogo concreto entre pessoas que se põem a conversar, pois para Bakhtin (2015)Bakhtin, M. (2015). Teoria do romance I: a estilística (P. Bezerra, Trad.). Editora 34. o autêntico meio de enunciação é dialogizado:

O enunciado vivo, que surgiu de modo consciente num determinado momento histórico em um meio social determinado, não pode deixar de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.

(p. 49)

Como apontam Brait e Pistori (2012)Brait, B., & Pistori, M. H. C. (2012). A produtividade do conceito de gênero em Bakhtin e o Círculo. Alfa: Revista de Linguística, 56(2), 371-401. https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-57942012000200002&script=sci_abstract&tlng=pt
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, o conceito “gênero do discurso” é discutido em diferentes obras do Círculo de Bakhtin. Entendemos que a amplitude dessas discussões leva a leituras que colaboram para o aprofundamento de análises que tomam a tríade “forma de composição, conteúdo temático, estilo da linguagem” como embasamento. Assim, propusemos considerações sobre a indissociabilidade entre esses três elementos no que diz respeito a alcançar o efeito de sentido desejado. No caso do nosso corpus, destacaram-se efeitos de sentido inerentes à produção científica, entre os quais podemos citar a confiabilidade científica e a adesão do interlocutor aos resultados defendidos, o que se apresentou de modo distinto dadas as especificidades das áreas de conhecimento em questão.

Nas análises, buscamos também considerar as relações dialógicas que participam da constituição e da circulação dos gêneros. Tais relações são assim definidas na obra Problemas da poética de Dostoiévski, de Bakhtin (2010)Bakhtin, M. (2010). Problemas da poética de Dostoiévski (5.a ed. rev., P. Bezerra, Trad.). Forense Universitária.:

fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância.

(p. 47)

No caso dos artigos científicos, as análises que expomos a seguir sistematizaram dados que apontam como, no interior de um campo científico do saber, a anterioridade e a posterioridade entre os discursos põem-se em diálogo pela reiteração de um mesmo modus operandi, o qual, além de caracterizar a produção da área, funciona como uma chancela de tipo disciplinar, tomando aí a noção foucaultiana no que diz respeito à produção de novos conhecimentos científicos (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A ordem do discurso (11.ª ed., L. F. de A. Sampaio, Trad.). Loyola.).

2. Informações preliminares sobre o corpus

Na análise do corpus, evidenciaram-se importantes distinções entre 15 artigos produzidos em mais de uma área de conhecimento, publicados em 5 periódicos da área da Psicologia e 4 da área da Educação.

Iniciamos tratando da diferença quanto à estrutura composicional das publicações. Os sete artigos da área da Psicologia apresentaram-se em conformidade com o modelo de comunicação composto pelas seções de introdução, métodos, resultado e discussão, mais conhecido pela sigla IMRD. Em contrapartida, das oito publicações da Educação, apenas um artigo se estruturou nesse formato.

Aragão (2012)Aragão, R. M. L. de. (2012). Modelos para a estruturação de artigos científicos: um estudo de instruções aos autores a introduções de artigos de revistas da Scientific Electronic Library Online do Brasil [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo]. São Paulo. debate a abrangência do modelo de comunicação científica IMRD. Um dos dados que considera é a hegemonia desse padrão e suas variantes em publicações da Psicologia. No corpus que analisamos, os sete artigos vinculados à área da Psicologia seguiram o modelo IMRD – ainda que houvesse algumas variantes em sua configuração estrutural, principalmente quanto à seção dedicada ao método, que se subdividiu em mais de um item, tais como participantes, instrumento, procedimentos. Trata-se, pois, de alterações pontuais que não escapam à estrutura IMRD, por isso estão sendo identificadas como variantes desse modelo.

Quanto aos oito artigos publicados nos periódicos da área da Educação, sete deles não concretizaram o modelo IMRD. Nestes, excetuando-se a Introdução e as Considerações Finais, as seções foram organizadas de maneira diversa, configuradas de acordo com as particularidades de cada pesquisa, de modo que os títulos das seções já indiciavam as especificidades da publicação em questão, tais como: “Escrita e trabalho docente”; “As entrevistas com as professoras”, entre outros subtítulos. O único artigo publicado em periódico da Educação que apresentou uma variante do IMRD como estrutura composicional foi Barrera e Santos (2016)Barrera, S. D., & Santos, M. J. dos (2016). Produção escrita de narrativas: influência de condições de solicitação. Educar em Revista, (62), 69-85. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400069
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Considerando o exposto, retomamos o conceito “gênero do discurso” (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.) e discorremos sobre as escolhas discursivas consoantes à estrutura dos artigos sob a lógica da indissociabilidade entre a forma composicional, o conteúdo e o estilo.

3. Aproximações e distinções na caracterização dos artigos científicos sob enfoque

Quando se trata de textos do campo científico, é sabido que existem padrões na sua produção que culminam em certa homogeneização desse tipo de escrita. Ocorre que, ao lidar com artigos provenientes de mais de uma área do conhecimento, pudemos avaliar as especificidades discursivas do corpus. Desse modo, encaminhamos nossa investigação não no sentido de restringir a produção analisada à classificação como pesquisa de abordagem quantitativa ou qualitativa, ou à outra categorização desse tipo, mas na perspectiva de tratar os artigos em questão quanto ao gênero do discurso que efetivamente os constitui como tal no campo de comunicação específico.

Observamos que, no caso das publicações da Psicologia, houve a padronização dos textos ‒ tanto nos seus aspectos estruturais quanto nas suas abordagens e metodologias de pesquisa, como se vê nos dados a seguir.

Das sete produções da Psicologia, uma apresentou abordagem sobre a importância da interação da família para a construção da escrita pela criança (Maciel & Munhoz, 2008Maciel, D. A., & Munhoz, S. C. D. (2008). Interação família-criança: possibilidades de negociação na co-construção da escrita. Fractal: Revista de Psicologia, 20(1), 269-284. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922008000100024
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), enquanto os outros seis estudos trataram da escrita infantil e apresentaram-na como resultado de uma ou mais tarefas. Em Pessoa et al. (2010)Pessoa, A. P. P., Correa, J., & Spinillo, A. (2010). Contexto de produção e o estabelecimento da coerência na escrita de histórias por crianças. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(2), 253-260. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722010000200007
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, foram retratadas situações distintas de escrita ‒ uma se deu a partir da solicitação de produção textual livre e outra de reprodução de um conto. De modo semelhante, em Santos e Barrera (2015)Santos, M. J. dos, & Barrera, S. D. (2015). Escrita de textos narrativos sob diferentes condições de produção. Psicologia Escolar e Educacional, 19(2), 253-260. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572015000200253⟨=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, foram apresentados os resultados decorrentes de três situações diferentes de solicitação às crianças para que escrevessem um texto. Nobile e Barrera (2016)Barrera, S. D., & Santos, M. J. dos (2016). Produção escrita de narrativas: influência de condições de solicitação. Educar em Revista, (62), 69-85. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400069
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
expuseram resultados que foram oriundos de condições de escrita diversas, que englobavam, por exemplo, diferentes solicitações de produção textual e um ditado com distintos níveis de dificuldade ortográfica. Nas três produções científicas, foram expostas tabelas com a quantificação dos resultados.

Os outros três artigos detiveram-se nas capacidades dos estudantes de grafarem as palavras, com análises que versavam sobre: consciência fonológica e conhecimento das letras (Barbosa et al., 2016Barbosa, M. R., Medeiros, L. B. de O., & Vale, A. P. S. do (2016). Relação entre os níveis de escrita, consciência fonológica e conhecimento de letras. Estudos de Psicologia, 33(4), 667-676. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2016000400667
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); conhecimento e desempenho ortográfico (Santos & Barrera, 2012Santos, M. J. dos, & Barrera, S. D. (2012). Relação entre conhecimento explícito da ortografia e desempenho ortográfico. Psicologia Escolar e Educacional, 16(2), 257-263. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572012000200008
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); e consciência morfossintática (Guimarães, 2011Guimarães, S. R. K. (2011). Relações entre capacidade de segmentação lexical, consciência morfossintática e desempenho em leitura e escrita. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(1), 23-32. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722011000100004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Todos apresentaram análises quantitativas dos resultados por meio de tabelas.

Em todas essas publicações científicas, a escrita infantil, em contexto escolar, caracterizou-se como resposta a uma tarefa ou a um teste de escrita, com subsequente demonstração quantitativa dos resultados obtidos. Em termos dialógicos, analisa-se a recorrência de um mesmo sentido reverberado nas publicações em questão, uma vez que, ao longo de uma década, o conteúdo tematizado no discurso configurou-se com vistas ao reconhecimento, por um lado, dos saberes infantis de escrita já consolidados ou defasados em termos de representação gráfica, por outro lado, da avaliação das condições de produção de textos escritos que fossem favorecedoras do desempenho estudantil.

Como se sabe, essa mesma ordenação dos sentidos de um dado objeto do discurso caracteriza-se como uma resposta aos enunciados precedentes em interação com os que lhe são posteriores:

Por mais monológico que seja o enunciado ..., por mais concentrado que esteja no seu objeto, não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido uma nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalidade do estilo, nos matizes mais sutis da composição. O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizadas do nosso pensamento. (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes., p. 298)

Quanto aos modos de expressão, não localizamos elementos que situassem discursivamente a produção analisada quanto àquilo que Brait (2016)Brait, B. (2016). Bakhtin: conceitos-chave (5.a ed.). Contexto. denomina de “avaliação via forma” (p. 84), ‒ ou seja, acentos expressivos que aparecem na própria maneira como o autor se manifesta quanto aos tons avaliativos que expõe, não pelo conteúdo, mas pelo modo como se expressa. Essa lacuna não causa estranhamento, ao considerarmos que “os estilos neutro-objetivos pressupõem uma espécie de triunfo do destinatário sobre o falante, uma unidade dos seus pontos de vista, mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recusa à expressão” (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes., p. 304).

No que se refere à tonalidade do estilo, as publicações da Psicologia demonstraram uma característica importante relacionada ao discurso citado. Identificamos em produções da área um mesmo traço estilístico no modo de inserção do discurso do outro. No caso, observamos a divulgação dos resultados da própria pesquisa em paralelo à corroboração dos resultados de outras pesquisas, conforme demonstram os trechos a seguir:

Destaca-se que os resultados deste estudo corroboram [ênfase adicionada] aqueles encontrados no estudo de Correa e Dockrell (2007).

(Guimarães, 2011Guimarães, S. R. K. (2011). Relações entre capacidade de segmentação lexical, consciência morfossintática e desempenho em leitura e escrita. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(1), 23-32. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722011000100004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 31);

De todo modo e corroborando [ênfase adicionada] resultados de pesquisas anteriores ..., os resultados obtidos mostraram que o auxílio de apoios pode ajudar na produção de textos narrativos mais elaborados.

(Nobile & Barrera, 2016Barrera, S. D., & Santos, M. J. dos (2016). Produção escrita de narrativas: influência de condições de solicitação. Educar em Revista, (62), 69-85. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400069
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 8);

Os resultados evidenciaram relação entre desempenho ortográfico, qualidade da transgressão e capacidade de explicitação das regras ortográficas. Esses resultados corroboram [ênfase adicionada] aqueles de pesquisas anteriores ... e sugerem que o conhecimento explícito da norma ortográfica está relacionado com o desempenho ortográfico.

(Santos & Barrera, 2012Santos, M. J. dos, & Barrera, S. D. (2012). Relação entre conhecimento explícito da ortografia e desempenho ortográfico. Psicologia Escolar e Educacional, 16(2), 257-263. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572012000200008
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 262);

Esses resultados indicam que não é o apoio visual o fator determinante na qualidade da elaboração da estrutura narrativa ... Tais resultados corroboram [ênfase adicionada] aqueles obtidos por Lins e Silva e Spinillo.

(Santos & Barrera, 2015Santos, M. J. dos, & Barrera, S. D. (2015). Escrita de textos narrativos sob diferentes condições de produção. Psicologia Escolar e Educacional, 19(2), 253-260. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572015000200253⟨=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 259)

Considerando as sete publicações da Psicologia, observamos que em quatro delas a informação sobre os resultados da própria pesquisa apareceu relacionada à divulgação de resultados de outras publicações, sendo textualmente registrada por meio do verbo “corroborar”, como se vê nos fragmentos transcritos. Sobre isso, vale retomar Bakhtin (2011)Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes., quando afirma que:

O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos da relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – como os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento.

(p. 266)

Observamos, pois, na produção analisada da Psicologia, acerca da escrita infantil em contexto escolar, um conjunto de elementos que inter-relacionam estrutura composicional, conteúdo temático e estilo no sentido de apresentar um texto que se dá “em bloco”, isto é, os artigos da década pesquisada demonstraram um encadeamento discursivo efetivado por meio de recorrências.

Apesar de parte dessa produção ter a mesma autoria ‒ como indicaram os fragmentos do corpus transcritos anteriormente ‒, avaliamos que a caracterização desse conjunto de trabalhos não se explica simplesmente por aspectos individualizantes, mas aponta para a configuração do gênero “artigo científico” pela reiteração de mesmas escolhas discursivas. No caso, destacaram-se: a) a caracterização do conteúdo temático a partir de respostas a testes de escrita e também por meio de tarefas que consideraram diferentes condições e solicitações de produção de textos; b) a composição estrutural dos textos no modelo IMRD e suas variantes; e c) a incorporação do discurso citado relacionado aos próprios resultados de pesquisa pela corroboração de resultados precedentes. Trata-se de indícios que apontam para a configuração discursiva da produção da área no sentido da uniformização e da contiguidade.

Na produção da área da Educação, o corpus apontou distintos aspectos. No caso dessas publicações, a composição estrutural dos artigos retratou, desde os títulos das seções, elementos que se referem ao próprio desenvolvimento investigativo da pesquisa. Desse modo, em Val e Marcuschi (2010)Val, M. da G. C., & Marcuschi, B. (2010). Poemas na escola: análise de textos de aluno. Educação em Revista, 26(2), 65-88. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982010000200004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, a título de exemplo, a não obediência ao formato IMRD configurou-se em seções que remetiam, desde os títulos, às especificidades da pesquisa, tais como “O gênero textual no contexto didático: possibilidades e limites” e “O PEF 2006 e as orientações do fascículo Poetas da escola”.

No que se refere ao conteúdo, nos artigos da Educação, houve diversidade na abordagem, a fim de apresentar a escrita das crianças sob diferentes perspectivas, conforme passamos a citar: apresentação de textos infantis produzidos em situação didática específica (Borges & Borges, 2017Borges, R. de C. B., & Borges, J. F. B. (2017). A palavra é retextualizar: um trabalho com gêneros textuais na escola. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1326-1344. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742017000401326
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) com quantificação dos resultados (Val & Marcuschi, 2010Val, M. da G. C., & Marcuschi, B. (2010). Poemas na escola: análise de textos de aluno. Educação em Revista, 26(2), 65-88. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982010000200004
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); textos produzidos pelas crianças de acordo com o planejamento da professora, fotocópias de partes dos cadernos infantis e respostas à entrevista feita pela pesquisadora (Dalla-Bona & Bufrem, 2013Dalla-Bona, E. M., & Bufrem, L. S. (2013). Aluno-autor: a aprendizagem da escrita literária nas séries iniciais do ensino fundamental. Educação em Revista, 29(1), 179-203. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982013000100009
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Gusso & Dalla-Bona, 2014Gusso, A. M., & Dalla-Bona, E. M. (2014). A reescrita do texto literário de alunos dos anos iniciais da escolarização. Educar em Revista, (52), 69-84. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602014000200005
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); transcrição de falas e descrição dos momentos de aula, com foco na interação entre docente e estudantes (Gomes-Santos, 2010Gomes-Santos, S. N. (2010). A escrita nas formas do trabalho docente. Educação e Pesquisa, 36(2), 445-458. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-97022010000200002&script=sci_abstract&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151...
); respostas dos docentes às perguntas que compuseram o roteiro de entrevista da pesquisa (Spinillo & Correa, 2016Spinillo, A. G., & Correa, J. (2016). A revisão textual na perspectiva de professoras do ensino fundamental. Educar em Revista, (62), 107-123. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400107
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); resultados da escrita infantil em resposta a alguma(s) tarefa(s) ‒ relacionadas a diferentes condições de solicitação para a escrita da história ‒ com quantificação dos resultados (Barrera & Santos, 2016Barrera, S. D., & Santos, M. J. dos (2016). Produção escrita de narrativas: influência de condições de solicitação. Educar em Revista, (62), 69-85. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400069
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
); e transcrição e análise de textos infantis, escritos em situação didática que transcorreu durante a aula (Pinheiro & Guimarães, 2016Pinheiro, L. R., & Guimarães, S. R. K. (2016). Desenvolvimento de habilidades metatextuais e sua expressão na produção de textos de opinião. Educar em Revista, (62), 87-106. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400087
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Observamos que, nas publicações da Educação, a tematização da escrita escolar demonstrou diversidade quanto ao recorte da realidade investigada e aos dados coletados, que incluíram textos infantis, fotocópias de caderno, entrevistas e registro de situações didáticas em contexto regular de ensino, entre outros aspectos. Enquanto isso, na produção da Psicologia destacaram-se a homogeneidade e a contiguidade nos elementos que analisamos, tendo em vista o que foi até então apresentado e discutido.

No que se refere ao estilo consolidado pelas formas de menção ao discurso alheio, verificamos os fenômenos de citação, tanto direta quanto indireta. Se na produção da Psicologia foi identificada a recorrência de um determinado uso linguístico verbal, nas publicações da Educação houve diversidade nas formas de menção ao texto citado. Vale destacar que, dentre os artigos publicados em periódicos da Educação, somente um trouxe o uso do verbo “corroborar” em referência a outras pesquisas. No caso, foi o artigo de Barrera e Santos (2016)Barrera, S. D., & Santos, M. J. dos (2016). Produção escrita de narrativas: influência de condições de solicitação. Educar em Revista, (62), 69-85. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000400069
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, que também compareceram como autoras de artigos da área da Psicologia no nosso corpus. Identificou-se o uso do verbo em:

De maneira geral nossos resultados corroboram [ênfase adicionada] os resultados apresentados por Lins e Silva e Spinillo (2000) e Santos e Barrera (2015)Santos, M. J. dos, & Barrera, S. D. (2015). Escrita de textos narrativos sob diferentes condições de produção. Psicologia Escolar e Educacional, 19(2), 253-260. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572015000200253⟨=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, ou seja, o tipo de solicitação de produção, sobretudo quando houve a sugestão de conflito, foi fator importante na escrita de narrativas bem estruturadas.

(p. 81)

Avaliamos que a reiterada presença dessas autoras no corpus demonstra, primeiro, que, no tocante à escrita escolar nos anos iniciais do EF, as pesquisadoras têm apresentado contínuas publicações; segundo, que, nessa produção, elas tanto atualizam o modus operandi de divulgação científica da área quanto o influenciam, na medida em que tais publicações também servem de referência para discussões futuras. Como pontua Brait (2016)Brait, B. (2016). Bakhtin: conceitos-chave (5.a ed.). Contexto.,

a concepção de estilo, no sentido bakhtiniano ... implica sujeitos que instauram discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidos. Assim, a singularidade estará necessariamente em diálogo com o coletivo em que textos, verbais, visuais ou verbo-visuais, deixam ver, em seu conjunto, os demais participantes da interação em que se inserem e que, por força da dialogicidade, incide sobre o passado e sobre o futuro.

(p. 98)

A análise referente à produção da Educação atesta também a organicidade existente entre estrutura composicional, conteúdo temático e estilo, uma vez que se verificou diversidade em todos esses três eixos, ainda que não escapem de níveis de padronização quanto a parâmetros de cientificidade e neutralidade.

Os resultados a que chegamos pela análise de gênero discursivo das publicações do corpus demonstraram que há modos distintos de composição desses textos. Enquanto aqueles oriundos da Psicologia se caracterizaram pela padronização na sua estrutura, na abordagem do conteúdo temático e em aspectos referentes ao estilo, as produções concernentes à Educação demonstraram diversidade tanto na forma de organização da estrutura textual quanto nas abordagens temáticas e no estilo que imprimem à escrita.

Tendo em vista o exposto, retoma-se a pergunta: quando o conteúdo escolar de ensino da escrita nos anos iniciais do EF se torna objeto de investigação científica, que configuração e delineamentos assume nessa outra posição?

4. Contornos de um objeto de pesquisa: em pauta o conteúdo escolar “ensino da escrita nos anos iniciais do Ensino Fundamental”

No corpus, identificamos características que configuraram a produção científica de modos distintos, tendo em vista a área do conhecimento em que o saber em questão estava situado e em relação ao qual será legitimado. Foucault (2004)Foucault, M. (2004). A ordem do discurso (11.ª ed., L. F. de A. Sampaio, Trad.). Loyola., em A ordem do discurso, trata da aceitabilidade do saber científico, considerando, entre outros fatores, aqueles que ele tratará como condições internas de produção e circulação do discurso científico.

Uma dessas condições realiza-se no formato de disciplinas, entendidas como agrupamentos de diretrizes que delimitam o que constituirá ou não a produção científica de uma dada área do conhecimento, e que, apesar de terem esse caráter delimitador, possibilitam o aprofundamento das investigações em jogo.

Vale lembrar que Michel Foucault discutiu, em parte de sua obra, sobre os “regimes de verdade” predominantes em determinados momentos históricos e as relações de poder então engendradas nesses regimes. Em As Palavras e as coisas (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). As palavras e as coisas (8.a ed., Coleção tópicos). Martins Fontes.), por exemplo, essa problemática foi tratada pelo autor quanto à constituição de saberes que tematizaram o homem como objeto e como sujeito de conhecimento.

Nessa obra, o autor aborda como o pensamento moderno pôs fim à metafísica da vida e se deteve no homem como objeto de conhecimento. Essas interrupções na história das ideias são discutidas na obra em questão pelo viés de sua descontinuidade (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). As palavras e as coisas (8.a ed., Coleção tópicos). Martins Fontes.). As descontinuidades identificáveis na constituição dos saberes também comparecem nas análises presentes em História da loucura (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). História da loucura (9.ª ed., J. T. C. Neto, Trad.). Perspectiva.) e O nascimento da clínica (Foucault, 2011Foucault, M. (2011). O nascimento da clínica (7.ª ed., R. Machado, Trad.). Forense Universitária.).

Conforme aponta Machado (2004, p. X)Machado, R. (2004). Introdução. In M. Foucault, Microfísica do poder (20.ª ed., pp. VII-XXIII). Graal., Foucault empreendeu um projeto investigativo sobre a constituição dos saberes e as suas transformações. Nesse projeto, situou aquilo que era, até certo momento, invisível na produção do saber e como passou a ter visibilidade, ou seja, ganhou o estatuto de objeto científico. De modo que, a partir de uma reviravolta no regime de verdade predominante, aquilo que estava à margem do discurso científico tornou-se um recorte da realidade sobre o qual se passou a enunciar um saber específico.

Nas análises que propusemos de artigos científicos publicados entre os anos de 2008 e 2018, ao contrário de mudanças nos modos de produção científica, o que ficou indicado é um modus operandi que se mantém ao considerarmos uma mesma área do saber. No cotejamento apresentado aqui entre áreas de conhecimento distintas, no caso a Psicologia e a Educação, fica latente a circulação de produções discursivas que respondem a regimes de verdade bastante diversos.

Inicialmente, verificamos que, nas produções da Psicologia, “o ensino da escrita nos anos iniciais do EF” volta-se para aquilo que já foi, ou não, apreendido pelas crianças e constitui-se como objeto de saber por meio da quantificação dos resultados oriundos de testes e/ou tarefas de escrita. Já nas publicações da Educação, esse mesmo objeto de pesquisa configura-se na análise dos próprios contextos de ensino ou do que compareceu como desdobramento deles. Esses contextos remeteram a situações didáticas em que tal ensino foi focalizado. Como desdobramentos, citamos artigos em que o ensino da escrita ganhou visibilidade a partir das respostas de estudantes ou professores a entrevistas realizadas pelos pesquisadores.

Observou-se, assim, que as publicações da Educação trouxeram elementos que se voltaram ao processo de ensino e aprendizagem e os artigos oriundos da Psicologia detiveram-se na avaliação e na discussão daquilo que já estava sob o domínio das crianças. Nesse caso, o foco foi no conhecimento da língua escrita que já tinha sido aprendido, até o momento de realização da pesquisa.

Ponderamos, por fim, a respeito dos destinatários dos artigos analisados. Conforme Bakhtin (2011)Bakhtin, M. (2011). Estética da criação verbal (6.ª ed., P. Bezerra, Trad.). WMF Martins Fontes.,

os chamados estilos neutros ou objetivos da exposição, concentrados ao máximo em seu objeto ... envolvem, apesar de tudo, uma determinada concepção do seu destinatário. Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleção de meios linguísticos não só do ponto de vista da sua adequação ao objeto do discurso mas também do ponto de vista do proposto fundo aperceptível do destinatário do discurso, mas esse fundo é levado em conta de modo extremamente genérico e abstraído do seu aspecto expressivo.

(p. 304)

Efetivamente, os textos do corpus centraram no objeto de pesquisa e, assim sendo, os efeitos de objetividade foram vários. Entre eles, está a prática discursiva com predominância da linguagem referencial, o que deixa menos perceptíveis os seus interlocutores-alvo. Ocorre que, ainda que de modo global os artigos não tenham evidenciado os seus destinatários, em momentos pontuais esses apresentaram-se como sendo o professor. Na Figura 1, expomos fragmentos em que os docentes comparecem como destinatários, por meio de referência direta a eles ou por meio de referência ao ensino e às práticas pedagógicas.

Figura 1
Destinatários das publicações científicas sob análise

Na Figura 1, apresentamos fragmentos em que se evidencia que os professores são parte dos destinatários das publicações em questão. Nela, enfatizamos em itálico as passagens que demonstram escolhas linguísticas que caracterizam o discurso de autoridade por meio do modalizador “dever” e por meio dos qualificativos e nomes que indicam a importância, a imprescindibilidade do que está sendo proposto pela escola ou demandado dela e do professor.

Os dados presentes na Figura 1, extraídos de parte das publicações analisadas, demonstram que tais artigos, ao legitimarem “o ensino da escrita nos anos iniciais do EF” como objeto de pesquisa, por meio de diferentes recortes metodológicos e aportes teóricos, vão reapresentá-lo no discurso que chancela os seus resultados de pesquisa para que eles sejam incorporados pela prática docente.

Pelo que apresentamos, constatamos que a produção científica sobre o conteúdo escolar “ensino da escrita nos anos iniciais do EF” também assume no seu modus operandi enunciados de proposição e de demanda quanto ao que e como ensinar. Apresenta-se, assim, uma lógica cíclica em que o conteúdo de ensino assume estatuto de objeto de pesquisa que, por sua vez, retornará como conteúdo de ensino legitimado em uma dada perspectiva teórico-metodológica. Ainda no que se refere à explicitação do destinatário “professor”, nos artigos citados a seguir não houve a defesa de um conteúdo de ensino a partir dos resultados obtidos, mas compareceu a proposição de uma dada atuação docente. A título de exemplo, citamos as seguintes passagens:

Assim, conclui-se ser imprescindível o professor [ênfase adicionada] auxiliar os alunos a perceberem as fragilidades dos seus textos.

(Dalla-Bona & Bufrem, 2013Dalla-Bona, E. M., & Bufrem, L. S. (2013). Aluno-autor: a aprendizagem da escrita literária nas séries iniciais do ensino fundamental. Educação em Revista, 29(1), 179-203. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982013000100009
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 200);

fica evidenciada a importância de o professor [ênfase adicionada] redimensionar seu papel para aquele que estabelece permanentemente o diálogo com os alunos e estimula as parcerias entre eles.

(Gusso & Dalla-Bona, 2014Gusso, A. M., & Dalla-Bona, E. M. (2014). A reescrita do texto literário de alunos dos anos iniciais da escolarização. Educar em Revista, (52), 69-84. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602014000200005
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 73)

A considerar pelo exposto, identificamos que os contornos do objeto de pesquisa “ensino da escrita nos anos iniciais do EF” dão a ver, em primeiro lugar, as especificidades teórico-metodológicas que respondem disciplinarmente e de modo distinto aos campos do saber de que é oriundo, entendendo-se aí o sentido de disciplina como uma das condições de produção e de controle do discurso científico (Foucault, 2004Foucault, M. (2004). A ordem do discurso (11.ª ed., L. F. de A. Sampaio, Trad.). Loyola.). Em segundo lugar, expõem uma característica da pesquisa que, inicialmente, elege um conteúdo de ensino como seu objeto de investigação para, em seguida, reapresentá-lo para a esfera educacional como um conhecimento válido, isto é, legitimado por uma dada perspectiva científica.

Considerações finais

No presente artigo, o ponto central foi a análise da configuração discursiva e disciplinar do “ensino de escrita nos anos iniciais do EF” em artigos científicos publicados entre 2008 e 2018, nos quais esse conteúdo escolar foi tomado como objeto de pesquisa. A constituição do gênero discursivo “artigo científico” diferenciou-se de acordo com a área de conhecimento a que se vinculava. Naqueles produzidos no campo da Psicologia, evidenciaram-se traços de padronização e recorrências que não foram observadas nas produções da Educação.

Como se sabe, ainda que a produção científica se caracterize por seus efeitos de objetividade, é possível localizar nela traços expressivos que colaboram para a análise de suas condições sócio-históricas de produção e de sua circulação dialógica. No que se viu, analisamos o discurso científico de autoridade legitimador dos resultados de pesquisa que foram, então, defendidos como conteúdo de ensino válido para ser reincorporado na esfera educacional, tendo em vista a perspectiva teórico-metodológica defendida. Esse aspecto foi observado nos artigos em que o professor compareceu como destinatário dos textos.

As análises empreendidas e as discussões apresentadas neste artigo orientaram-se na direção de responder às duas perguntas elencadas anteriormente, ao questionarmos as características discursivas do conteúdo escolar “ensino da escrita nos anos iniciais do EF” quando tomado como objeto de pesquisa, bem como a sua configuração disciplinar. Do percurso investigativo realizado, concluímos com as ponderações a seguir.

Na análise do corpus, foram expostas regularidades discursivas caracterizantes das produções citadas. No que expusemos, identificamos que: a) os artigos das áreas de Educação e Psicologia materializaram escolhas composicionais, estilísticas e recortes temáticos diferentes; e b) quando se evidenciou o professor como destinatário, parte das produções analisadas recomendou e/ou demandou os seus resultados de pesquisa como conteúdo de ensino legitimado.

Quanto a esse último ponto, observamos que, ao defender o conteúdo escolar em questão por um único viés, aquele que era condizente com as especificidades e os resultados da própria pesquisa, criou-se uma contradição com o próprio fazer investigativo, no qual os resultados estão circunscritos ao próprio modus operandi do processo de pesquisa.

Avaliamos que os dados sistematizados neste artigo contribuem para a reflexão sobre o prejuízo de considerar os resultados apartados dos seus contextos teórico-metodológicos de pesquisa. Disso decorre a perda de informações essenciais que demonstram se o ensino da escrita está sendo, por exemplo, investigado como resultado de testes ou a partir de práticas didáticas específicas. Defendemos, pois, que levar em conta a configuração disciplinar de resultados de pesquisa é fundamental para que haja a adequada circunscrição dos saberes em questão.

Prevenimos que a aceitação de determinados resultados de pesquisa inclui considerar o modus operandi do processo investigativo em questão e que ter em vista a configuração disciplinar de tais resultados traz a necessária relativização quanto à legitimação de dado conhecimento científico como conteúdo escolar.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Andréa de Freitas Ianni - andreaianni1@gmail.com
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    O presente artigo é um desdobramento da tese de doutorado da primeira autora.
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    Nossa coleta de dados on-line na Scielo ocorreu entre maio e julho de 2019.

Referências

Editor responsável: Ana Lúcia Guedes Pinto. https://orcid.org/0000-0002-0857-8187

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2021
  • Revisado
    26 Out 2021
  • Aceito
    16 Fev 2022
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