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Física de Partículas no ensino médio Parte II: Física Nuclear

Particle Physics in high school Part II: Nuclear Physics

Resumos

Apresentamos a segunda parte de uma série de artigos que propõe uma nova sequência didática sobre Física de Partículas para o ensino médio. O tema do presente trabalho é a Física Nuclear. O objetivo principal da sequência é abordar o assunto de modo a fomentar a alfabetização científica dos(as) estudantes, em uma perspectiva que relaciona Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio Ambiente (CTSA). Avaliamos as potencialidades e a efetividade do material aqui proposto, aliado a uma postura dialógica docente, a partir da análise de indicadores de alfabetização científica e de engajamento dos(as) estudantes durante as intervenções realizadas em uma escola pública estadual do Espírito Santo.

Palavras-chave:
Física de partículas; ensino médio; alfabetização científica; CTSA; engajamento


We present the second part of a series of papers proposing a novel teaching sequence for Particle Physics in high school. The topic of the present work is Nuclear Physics. The goal of the sequence is to approach the subject in a way as to stimulate scientific literacy, from a perspective involving Science, Technology, Society and Environment (STSE). We evaluate the potentialities and effectiveness of the material proposed here, allied to a dialogical approach by the teacher, by analyzing the presence of scientific literacy and engagement indicators during interventions applied at a public school in Espírito Santo, Brazil.

Keywords:
Particle physics; high school; scientific literacy; STSE; engagement


1. Introdução

Em trabalho anterior [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] argumentamos em favor da inserção da temática de Física de Partículas em salas de aula no ensino médio e apresentamos uma sequência didática sobre elementos de eletrodinâmica quântica. Partimos de conhecimentos elementares, possivelmente já apropriados por estudantes desse nível, como a noção de estrutura atômica da matéria e aspectos da interação eletromagnética, para pavimentar, pouco a pouco, um caminho rumo a uma discussão sólida sobre o conceito de fóton, e como a interação eletromagnética pode ser entendida como mediada pela troca dessas partículas. Sustentamos a tese central do artigo, de que é possível introduzir a temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio de forma sistemática e com engajamento dos estudantes, a partir dos resultados da análise das intervenções que ministramos com base na sequência proposta.

Neste artigo damos continuidade à proposta desta série, desta vez com a atenção voltada à dinâmica do núcleo atômico.

Na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Como no trabalho anterior [1], destacamos que os momentos didáticos apresentados abaixo não têm a pretensão de constituir um material formulaico, um receituário já pronto para ser seguido acriticamente pelo(a) docente, com um roteiro fixo das aulas. Preferimos elaborar um material que sirva como matéria-prima para que o(a) docente prepare sua aula como julgar mais adequada em seu contexto, um material de caráter sugestivo e maleável, adaptável às aspirações, necessidades e circunstâncias de cada docente e de cada turma. Entretanto, o conjunto de momentos didáticos abaixo foi elaborado de modo a iniciar com um conteúdo já familiar a discentes e docentes, progredindo paulatinamente de modo a se construir a estrutura e a dinâmica do núcleo atômico de forma intuitiva, acessível à apreensão e sempre suscetível a debates entre os estudantes. 2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino. 2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1, e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r∼10-10m, valor já conhecido na época2. Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Figura 1: (Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público. Entre 1908 e 1913 [12, 13], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143. O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2⁢e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo. Figura 2: Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo. 2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r∼10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Z⁢e, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4, e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a (1) F max = - k ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Figura 3: Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14], adaptado e publicado com autorização do autor. Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é (2) Δ ⁢ K α ≲ - k ⁢ Z ⁢ e 2 r ∼ - 10 - 13 ⁢ m r ⁢ MeV , onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e≈1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k≈9×109⁢J⋅m/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1⁢J=(1.6×10-19)-1eV. A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r∼10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas. O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2⁢r é (3) Δ ⁢ t ≃ 2 ⁢ r v α . Figura 4: Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δ⁢py da componente transversal da velocidade da partícula, dada por (4) F Coulomb = m ⁢ Δ ⁢ v y Δ ⁢ t = k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que (5) sin ⁡ θ = Δ ⁢ v y v ′ ≃ Δ ⁢ v y v α , Figura 5: Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público. onde usamos o fato de que v′≃vα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ≪1 e portanto sin⁡θ≈θ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que (6) θ ≃ k ⁢ 4 ⁢ Z ⁢ e 2 m ⁢ v α 2 ⁢ r ≃ k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 K α ⁢ r ≃ 0.02 o . Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1⁢μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6⁢m/10-10⁢m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩⁢θ≃2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5. De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16], ou seja, efetivamente zero. 2.1.3. O modelo de Rutherford Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado: “Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.” E. Rutherford O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, Δ⁢Kα∼7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r≲10-14m. Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r∼10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5. A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a (7) N ⁢ ( θ ) ∝ 1 K α 2 ⁢ sin 4 ⁡ θ 2 . A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico. Figura 6: Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo. Figura 7: (Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θ∼λ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. 2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico? Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima. Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões: É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura? Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências? E qual é o papel dos modelos teóricos? Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais? Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico? O que é uma teoria científica? O que é ciência? Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza. 2.2. Estrutura do núcleo atômico: prótons e nêutrons Em 1919, continuando suas investigações a respeito da interação entre partículas α e a matéria, Rutherford notou que a passagem dessas partículas pelo ar produzia um fluxo de núcleos de hidrogênio detectados na chapa de ZnS [18]. O efeito desaparecia quando o ar era substituindo por gás oxigênio, O2, ou por dióxido de carbono, CO2, mas era ainda mais notável para gás nitrogênio, N2. Hoje, é sabido que Rutherford observara a reação nuclear 14 N + 4 He → 17 O+ 1 H . A partir desses resultados, Rutherford postulou que o núcleo de hidrogênio – o mais leve dentro todos os elementos – é um constituinte fundamental de todos os núcleos atômicos [19], e que, no processo acima, um deles é ejetado do nitrogênio pela colisão com a partícula α. Com isso, Rutherford reavivou a tese proposta um século antes por William Prout, que notara que as massas molares de vários elementos eram múltiplos inteiros da massa molar do hidrogênio, e supôs ser esse o elemento primordial do qual todos são constituídos6. Prout designou de prótil esse elemento primordial, enquanto Rutherford chamou de próton o núcleo de H (ambas palavras advindas do grego antigo protos, que significa primeiro). A partir dessa descoberta de Rutherford, o átomo passou a ser visto como constituído de prótons e elétrons. Como a massa do elétron é ≈ 1800 vezes menor que a do próton, sua contribuição à massa atômica é desprezível, de modo que se supunha que toda a massa fosse devida ao número de prótons no núcleo. Assim, um núcleo com número de massa A (i.e. cuja massa é A vezes a massa do H) era suposto composto de A prótons. Mas, como explicar a observação de que a carga de um núcleo é quase sempre menor do que a carga de A prótons? Para isso, supunha-se que, além dos elétrons da eletrosfera, havia também elétrons no interior do núcleo, tal que um núcleo de massa A e carga Z (em unidades da massa e carga do núcleo de H) era visto como composto de A prótons e A-Z elétrons. Por um lado, a existência de elétrons nucleares era uma hipótese bem-vinda, pois ajudava a explicar decaimentos radioativos que eram acompanhados pela emissão de elétrons – chamados decaimentos do tipo β, discutidos abaixo na seção 2.9.2. Por outro lado, a existência de elétrons no interior do núcleo atômico engendra várias contradições com resultados experimentais. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg assegura que um elétron confinado em uma região de raio r≲10-14m teria uma energia cinética da ordem de 20MeV, muito acima da energia típica dos elétrons emitidos em decaimentos β, da ordem de 1 a 5 MeV. Ademais, medições do momento angular e momento magnético do núcleo de nitrogênio-14 indicam que ele deve ser constituído de um número par de partículas7, em contradição com a expectativa de 14 prótons + 7 elétrons. Essas contradições foram resolvidas em 1932, quando James Chadwick demonstrou experimentalmente a existência do nêutron: partícula eletricamente neutra com massa muito semelhante à do próton. Assim, estabeleceu-se que um núcleo de carga Z e massa A é composto de Z prótons e A-Z nêutrons. Um núcleo de nitrogênio-14 é, portanto, constituído de 7 prótons + 7 nêutrons, totalizando um número par de constituintes, como requerido pelos experimentos. No ano seguinte, em 1933, Enrico Fermi explicou o decaimento β sob essa nova perspectiva: o elétron emitido não existia anteriormente no núcleo, mas surgiu do decaimento de um nêutron em um próton e um elétron – uma perspectiva revolucionária de transmutação de partículas que inaugurou uma nova era na Física de Altas Energias. A descoberta dos nêutrons também possibilitou uma explicação simples à existência de isótopos. A natureza de um elemento é definida pelo número de prótons que existem no núcleo – i.e. pela sua carga elétrica –, pois é isso que define a quantidade de elétrons na eletrosfera, e portanto determina as suas possibilidades de ligações químicas, que nada mais são do que reminiscências da interação eletromagnética. Por outro lado, a massa do elemento é determinada pela quantidade de prótons e nêutrons no núcleo. Portanto é possível que um mesmo elemento possua variantes com diferentes massas, dada pela diferença no número de nêutrons no núcleo. Prótons e nêutrons são coletivamente denominados núcleons , i.e. partículas do núcleo. 2.3. O raio nuclear Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões ≲10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α. Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1] (veja a ref. [20] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo. De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento (8) λ = h p , onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h≈4.136×10-21⁢MeV⋅s–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação (9) θ ∼ λ D . A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ≈50∘≈0.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E≈420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, me⁢c2≈0.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c≈3×108m/s, e vale a relação E=p⁢c. O comprimento de onda é então λ=h⁢c/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que (10) D ∼ 3 ⁢ fm , Figura 8: No experimento de Ehrenberg et al. [23], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24], compilado a partir dos resultados de [23], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular. com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é ≈2.47fm [22], portanto seu diâmetro é ∼5fm, não muito distante da estimativa acima. Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio. 2.4. A força nuclear 2.4.1. Problema da estabilidade do núcleo Como é possível que o núcleo atômico seja estável, se é composto somente de partículas neutras ou com carga positiva, todas confinadas a uma distância mútua da ordem de 10-15m e, portanto, com os prótons constantemente sujeitos a intensas forças eletrostáticas repulsivas? Tal questão pode ser proposta à turma como ponto de partida de uma discussão que desemboque na conceituação da força nuclear. Em um primeiro momento, os estudantes usualmente levantam duas propostas para explicar a estabilidade nuclear: A força gravitacional é atrativa e talvez possa manter o núcleo estável diante da repulsão eletrostática. No entanto – e aqui entra novamente o valor da matemática para corroborar ou excluir hipóteses físicas –, como já discutido na sequência anterior [1], a interação gravitacional é muito mais fraca do que a eletromagnética, e jamais seria suficiente para equilibrar a repulsão dos prótons. De fato, em um núcleo composto de Z prótons e A-Z nêutrons, cada próton é submetido a uma força repulsiva Fel devido às outras Z-1 cargas positivas, e a uma atração gravitacional Fgrav devido a A-1 prótons e nêutrons, dadas por (11) F el ∼ k ⁢ ( Z - 1 ) ⁢ e 2 r 2 , F grav ∼ G ⁢ ( A - 1 ) ⁢ m p 2 r 2 , onde supomos que as massas dos prótons e nêutrons são iguais – o que é válido em boa aproximação –, e que a distância média de afastamento entre cada partícula é da mesma ordem de magnitude, r∼10-15m. Substituindo valores numéricos, k ≈ 8.98 × 10 9 ⁢ N ⋅ m 2 / C 2 , G ≈ 6.67 × 10 - 11 ⁢ N ⋅ m 2 / kg 2 , e ≈ 1.6 × 10 - 19 ⁢ C , m p ≈ 1.67 × 10 - 27 ⁢ kg , vem que a condição de equilíbrio entre essas forças requer (12) A - 1 ∼ ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 G ⁢ m p 2 ⟹ A ∼ 10 36 ⁢ Z , ou seja, seria necessário um número imensamente maior de nêutrons do que de prótons, ao passo que o núcleo mais pesado observado na Natureza – i.e. não produzido artificialmente – é o 92238U, para o qual A≈2.6⁢Z. Os elétrons na eletrosfera atraem os prótons no núcleo. No entanto, mesmo que houvesse uma tal força efetiva8, ela tenderia a desestabilizar o núcleo ainda mais, pois atrai os prótons em direção à eletrosfera, para fora do núcleo. 2.4.2. Discussão e levantamento de hipóteses A conclusão que a turma deve ser capaz de alcançar, nesse momento, é que, com as interações conhecidas até então, não é possível explicar a estabilidade do núcleo atômico. O(a) docente pode, então, estimular os(as) estudantes a discutir soluções para esse impasse, em um ótimo exercício de levantamento de hipóteses. Note que, nesse exercício, não há respostas erradas. No desenvolvimento histórico-científico, em tais situações de impasse, é comum se propor hipóteses que, embora hoje descartadas, ou até consideradas absurdas, levaram a importantes desenvolvimentos teóricos e experimentais posteriores9. O importante, nessa atividade, é que os(as) discentes exercitem sua criatividade e capacidade argumentativa na elaboração de suas teses e, indo ainda além, que também se empenhem na elaboração de possíveis maneiras de as testarem experimentalmente. Por exemplo, um(a) estudante pode propor que a interação eletromagnética é modificada quando as partículas estão a distâncias muito pequenas, da ordem do raio do núcleo atômico, de modo a abrandar a repulsão. Tal hipótese poderia ser testada submetendo-se partículas carregadas à interação com prótons no interior do núcleo, como ocorre no espalhamento de elétrons altamente energéticos, discutido na seção 2.3 acima. O fato de os resultados se conformarem ao esperado para elétrons submetidos à interação coulombiana e ao fenômeno de difração – devido ao caráter ondulatório do feixe de elétrons – atesta contra essa hipótese. Para outros testes da validade da Lei de Coulomb vide ref. [25]. Ainda outra hipótese possivelmente levantada seria uma modificação da gravitação nessas escalas de distância. Entretanto, é difícil testar a gravitação nessas situações. Outra possibilidade é se postular a existência de uma outra interação, que pode ser denominada de força nuclear . 2.4.3. A força nuclear O(a) docente pode, então, estimular discussões sobre as propriedades que essa nova interação deve possuir para que solucione o problema da estabilidade nuclear sem engendrar outras contradições. Em primeiro lugar, essa força deve possuir uma componente atrativa, e deve ser mais intensa do que a interação eletromagnética, para superar a repulsão e estabilizar o núcleo. Além disso, não deve afetar os elétrons na eletrosfera, pois o átomo é bem descrito com base apenas na interação eletromagnética. O experimento de espalhamento de elétrons por prótons, discutido na seção 2.3, também é muito bem descrito assumindo-se que a interação elétron-próton é inteiramente de natureza eletromagnética. Em outras palavras, não há evidência de que elétrons interajam com prótons ou nêutrons por meio dessa força nuclear. Ademais, a atuação dessa força se dá apenas a distâncias da ordem do raio nuclear, ∼1fm. Por exemplo, as forças de ligação intermoleculares são exclusivamente de natureza eletromagnética, sendo desprezível a contribuição de outra forma de interação entre os núcleos dos átomos constituintes10. 2.5. Reações nucleares Consolidando-se entre os(as) discentes o conceito de força nuclear, pode-se enveredar em discussões sobre diversos fenômenos e aplicações associadas à Física Nuclear. Trata-se de um fértil contexto para exploração interdisciplinar em uma abordagem CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) com temáticas como: fissão nuclear e suas aplicações bélicas e pacíficas; fusão nuclear como fonte de energia do Sol, e sua importância para o desenvolvimento da vida na Terra; a formação da maioria dos elementos em processos de fusão no interior das estrelas, e por que “somos poeira das estrelas”; a matriz energética no Brasil e no mundo: diversas fontes de energia e seus impactos ambientais; decaimentos radioativos e aplicações. 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. 2.5.2. Saturação da força nuclear Já foi discutido acima (seção 2.4.3) que a força nuclear deve ter curto alcance, da ordem de 1fm. A Figura 11 oferece outra evidência a favor dessa afirmação. Para entender por que, considere, primeiro, a energia associada à interação eletrostática entre Z prótons em um nuclídeo. Cada próton, de carga e, é repelido por Z-1 outros prótons, distantes um do outro de r∼1fm. A contribuição eletrostática à energia por próton é, então, (15) E Coulomb Z ∼ - ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 r , ou seja, varia linearmente com o número de prótons no núcleo. O sinal negativo se deve ao fato de a força ser repulsiva, provocando uma redução na energia de ligação por constituir uma tendência natural à desintegração do nuclídeo. Analogamente, para um nuclídeo com A núcleons existem A⁢(A-1)/2 maneiras de se arranjá-los em pares, de modo que, se supusermos que cada núcleon interage com todos os demais via força nuclear, esperaríamos (16) E nuclear ∝ A ⁢ ( A - 1 ) , ou seja, Enuclear /A cresceria linearmente com o número de núcleons. Analogamente à equação (15), o coeficiente de proporcionalidade é indicativo da intensidade da interação nuclear. Se olharmos, agora, para a Figura 11, veremos que esse crescimento linear é de fato observado para nuclídeos leves, com A≤4. Mas a taxa de crescimento – dada pelo coeficiente de proporcionalidade na equação (16) – diminui gradativamente, até que, para nuclídeos mais pesados, com A≳16, a curva tende a se aplainar em um patamar Eligação /A∼8MeV, atingindo um máximo para o 56Fe. Ou seja, a hipótese de que cada núcleon interage com todos seus vizinhos deixa de ser obedecida. Dito de outra forma, a intensidade média da interação nuclear atuante sobre cada núcleon diminui com o aumento do nuclídeo: outra evidência sustentando que a interação nuclear é de curto alcance. Disso podemos extrair, ainda, uma estimativa do alcance dessa interação, que deve ser da ordem de magnitude das dimensões nucleares, r∼1fm, uma vez que, mesmo para núcleons contidos no interior de um nuclídeo, essa interação já deixa de ser eficaz. Podemos aprofundar ainda mais a análise da Figura 11 para extrair mais informações sobre a interação nuclear. Partindo de um único próton, e acrescentando-lhe nêutrons e outros prótons, nota-se que a energia de ligação por núcleon cresce drasticamente12 até atingir um máximo local no 4He, que é um nuclídeo excepcionalmente estável13. Se acrescentamos ao 4He um próton e um nêutron, formando 6Li, a energia de ligação total aumenta – porque um maior número de núcleons implica em mais possibilidades de mútuas interações –, mas a energia média por núcleon diminui. É como se alguns dos núcleons de 6Li se aglomerassem em uma combinação altamente interagente de 2 prótons e 2 nêutrons, enquanto o próton e o nêutron adicionais, desemparelhados, interagissem com menor intensidade, reduzindo a energia de ligação média. Se seguirmos acrescentando núcleons, os prótons e nêutrons extras vão se emparelhando, provocando um aumento de Eligação /A. Mas esse crescimento ocorre a uma taxa inferior àquela entre 1H e 4He – a média da mútua interação entre os núcleons já é menor, devido à maior distância entre eles. Essa segunda reta de crescimento na Figura 11 culmina no 12C, um outro nuclídeo excepcionalmente estável por ser composto de um aglomerado14 de 34He. Analogamente, o 16O pode ser visto como um aglomerado de 44He e possui, também, grande energia de ligação por núcleon15. Como já discutido nesta mesma subseção, à medida que o nuclídeo aumenta de tamanho, núcleons diametralmente opostos deixam de interagir um com o outro pela força nuclear – devido ao curto alcance dessa interação –, e o acréscimo de novos núcleons tende a aumentar cada vez menos a energia de ligação média de cada núcleon. Fala-se, então, da saturação da força nuclear, que é outra forma de expressar o curto alcance dessa interação. Acontece que, quanto maior o nuclídeo, maior é seu número de prótons16, e embora a interação nuclear tenda a saturar, a repulsão coulombiana continua atuante entre todos os prótons, contribuindo negativamente à energia de ligação, conforme a equação (15). É por isso que, a partir do ferro-56, a curva da Figura 11 apresenta uma inflexão, tornando-se decrescente. 2.6. Fissão nuclear Devido ao comportamento decrescente da curva da Figura 11 para nuclídeos pesados, processos que ocasionam uma redução do tamanho do nuclídeo são energeticamente favorecidos. Considere, por exemplo, um processo em que um nuclídeo pesado, como o urânio-235, se divide em dois nuclídeos mais leves após absorver um nêutron, como ilustrado na Figura 13. Esse tipo de processo é denominado fissão nuclear. Como os produtos da reação são nuclídeos menores – o que aumenta a interação nuclear entre núcleons – e possuem menos prótons – reduzindo a repulsão coulombiana –, eles são mais estáveis, com maior energia de ligação média por núcleon, como se nota pela Figura 11. Por ocorrer uma variação da energia potencial dos núcleons na reação, deve haver uma correspondente liberação de energia durante o processo, para que a energia total se conserve. Outra maneira de se entender isso é notando que, quanto maior a energia de ligação, menor é a massa total do nuclídeo, de acordo com a equação (14). Portanto, a formação de nuclídeos mais estáveis está associada à redução da energia do sistema em forma de massa17, e a diferença constitui-se em energia liberada em outras formas, como radiação ou energia cinética dos fragmentos (ou seja, calor). Este é o princípio fundamental subjacente à geração de energia por fissão nuclear. Figura 12: As forças atuantes sobre os núcleons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 13: Fissão de 235U induzida pela captura de um nêutron termal. O nêutron incide com baixa energia cinética, ∼0.02eV, e é absorvido, resultando em um nuclídeo de U236, que é instável e se fissiona em dois nuclídeos mais leves. Neste caso o produto da reação inclui, ainda, três nêutrons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Mas há um detalhe a mais que merece ser discutido. Em reações de fissão induzidas por capturas de nêutrons, é comum que haja liberação de dois ou mais nêutrons no produto final, como ilustra a Figura 13. Esses novos nêutrons podem colidir com outros nuclídeos de 235U e induzir outras reações, liberando mais nêutrons, e assim sucessivamente, resultando em uma reação autossustentável, como ilustrado na Figura 14. Figura 14: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Ocorre que 99.3% do urânio encontrado na natureza está na forma do isótopo 238U, que não é facilmente fissionável, e apenas cerca de 0.7% é 235U. Para otimizar a quantidade de energia liberada e garantir a autossustentabilidade da cadeia de reações, é desejável que o material tenha uma concentração muito maior de 235U, de modo a aumentar a probabilidade de que os nêutrons emergentes em cada etapa de fissão encontrem outros nuclídeos desse isótopo. A esses processos que visam aumentar a concentração de 235U dá-se o nome de enriquecimento de urânio. Diferentes propósitos requerem diferentes níveis de enriquecimento. Para a extração de energia nuclear, uma concentração de 3% de 235U já é suficiente [24]. Isso porque, nesse caso, não se é sequer desejável que todos os nêutrons resultantes de uma reação se encontrem com outro nuclídeo de 235U e provoquem outras fissões, pois isso provocaria um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada. Ao contrário, uma parte essencial no desenho de um reator nuclear são as chamadas barras de controle, constituídas de materiais altamente eficientes na absorção de nêutrons – como boro ou ligas de metais de terra rara –, justamente para que os nêutrons em excesso sejam capturados, como representado pelos “X” na Figura 14, permitindo que o operador da usina mantenha controle sobre a quantidade de energia extraída. Ainda outro elemento importante em um reator é a presença de um material moderador – como água ou carbono na forma de grafite –, que reduz a energia cinética dos nêutros secundários de ∼1MeV para ∼0.02eV, o que aumenta a probabilidade de fissão do urânio-23518. Para propósitos bélicos, o objetivo é a liberação da maior quantidade de energia possível. Nesse caso é preciso uma concentração muito maior de 235U, acima de 85%, para que a maioria dos nêutrons secundários seja absorvida por outro nuclídeo de 235U e induza outra fissão, gerando um crescimento exponencial da energia liberada, como ilustrado na Figura 15. Uma tal reação em cadeia é denominada supercrítica. Figura 15: Reação supercrítica de fissão nuclear em cadeia. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. 2.7. Fusão nuclear e a origem dos elementos Uma aula sobre fusão nuclear pode ser motivada pela seguinte questão-problema: como foram formados os elementos químicos que nos rodeiam? O(a) docente pode iniciar mostrando à turma o gráfico das abundâncias dos elementos no sistema solar, Figura 16, e pedir que os alunos discutam o comportamento da curva. Quais são suas características mais marcantes? Algum comportamento da curva lhes parece intuitivo? Algum parece contra-intuitivo? Acham estranho que haja um predomínio de hidrogênio e hélio no Universo? Podem oferecer uma explicação ao comportamento oscilatório da curva, i.e. ao fato de que elementos com número atômico par são ≈10 vezes mais abundantes que os elementos vizinhos, com Z ímpar? Figura 16: Abundância relativa de elementos no sistema solar, calculada como o número de átomos do elemento em questão para cada 106 átomos de Si. Dados extraídos da ref. [32]. Ao instigar os alunos com essa problematização, deve-se esperar respostas que partam de uma perspectiva a-histórica, sugerindo que o Universo sempre teve a constituição que observamos atualmente. O principal propósito dessa aula deve ser desconstruir essa perspectiva, demonstrando que também na Física há historicidade, e que tampouco nas ciências naturais existe um status quo eterno e absoluto, mas que para entendermos a Natureza é preciso compreender os processos que resultaram em sua configuração atual. Mais ainda, a discussão culmina no vislumbre da história humana como apenas um capítulo de uma longa história universal, em que simples partículas elementares se organizam em estruturas cada vez mais complexas – núcleons, nuclídeos, átomos, moléculas, nuvens gasosas e protoestruturas rochosas, estrelas e planetas, moléculas orgânicas autorreplicantes, a vida complexa –, até chegar na gênese do ser humano e na história de nossas culturas. Com isso, o(a) estudante pode contemplar a interconexão entre todas as subáreas em que se divide o conhecimento humano – todas as “matérias” ou “disciplinas” escolares –, ao se enfatizar como cada uma lida com um capítulo específico de uma história universal que as conecta e que tudo abrange. 2.7.1. Nucleossíntese primordial Para entender a gênese dos elementos sob a perspectiva histórica supracitada, basta introduzir um conceito muito simples, mas que é a base de toda a cosmologia contemporânea: o fato observável de que nosso Universo está em expansão [30, 31]. Uma forte evidência em favor dessa asserção é a observação de que as galáxias distantes estão se afastando de nós. Se o Universo está se expandindo, isso implica que no passado toda sua matéria e energia estavam contidas em uma região muito menor do que ocupam atualmente, o que significa que as temperaturas deviam ser altíssimas – basta lembrar-se que um gás contraído adiabaticamente se aquece. Ou seja, o Universo primordial era muito quente, e à medida que evolui e se expande, ele se resfria. Altas temperaturas significam alto poder dissociativo, ou seja, quanto maior a temperatura, mais difícil é manter estruturas complexas, pois elas tendem a se dissociar em partes mais elementares. Exemplos são a dissociação da estrutura cristalina de um sólido quando do derretimento do material, e das ligações intermoleculares de um líquido durante a vaporização, bem como a ionização de um gás, que, aquecido a temperaturas suficientemente elevadas, tem os elétrons atômicos dissociados dos núcleos, tornando-se um plasma. Assim, o Universo inicia sua história com matéria e energia em sua forma mais simplificada, mais rudimentar, como simples partículas elementares, e somente à medida que ele se expande e resfria é que estruturas mais complexas começam a se formar. Mas por que os nuclídeos se formam como estruturas complexas estáveis durante essa história? A resposta vem novamente da Figura 11, especificamente do comportamento crescente da curva para nuclídeos leves. Esse comportamento indica que o processo denominado de fusão nuclear é energeticamente favorecido, em que a fusão de dois nuclídeos mais leves resulta em um mais estável, i.e. com maior energia de ligação, ocorrendo liberação de energia nesse processo. Ou, reciprocamente, a dissociação dessas estruturas não ocorre espontaneamente, mas requer que se forneça energia em quantidade que já não está disponível quando a temperatura do Universo torna-se suficientemente baixa. Consideremos, então, o Universo nos primeiros segundos de sua história, quando já havia prótons e nêutrons19, mas ainda não se haviam formado estruturas mais complexas – ou seja, não havia átomos ou sequer núcleos atômicos, e os prótons e nêutrons encontravam-se livres20. É claro que, nessa situação, suas energias de ligação são nulas, simplesmente por não estarem ligados a nada. Mas à medida que se aproximam o suficiente, entrando no alcance de atuação da interação nuclear, uma força os atrai de modo a formarem um estado ligado: um nuclídeo de 2H, também denominado dêuteron. Como o processo de formação do dêuteron é espontâneo, há liberação de energia durante a reação. Ou, dito de outra forma: é mais energeticamente custoso manter prótons e nêutrons isolados do que ligados. A energia liberada nada mais é do que a energia de ligação do dêuteron21, e o processo é descrito por (17) p + n → 2 H + 2.2 MeV, cuja ilustração seria análoga à Figura 9, porém vista da direita para a esquerda. Essa reação ocorreu abundantemente quando o Universo tinha apenas poucos minutos de idade, e constitui o primeiro estágio do processo de formação de nuclídeos mais complexos a partir dos prótons e nêutrons que se encontravam inicialmente livres – processo que recebe o nome de nucleossíntese primordial. Esses processos primordiais de fusão nuclear continuam até culminarem na produção de 4He, como exemplificado na cadeia de reações da Figura 17. Esse nuclídeo é tão mais estável que seus vizinhos (i.e. os processos de fusão que lhe dão origem são tão energeticamente favoráveis) que praticamente todos os dêuterons, assim que formados, tendem a continuar se fundindo22 até formar 4He. Figura 17: Exemplo de processo de fusão de dêuterons e prótons para formação de 4He. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Nesse ponto, o processo de fusão encontra um gargalo, por não existirem elementos estáveis de números de massa 5 ou 8 – por exemplo, uma eventual fusão de dois 4He produz 8Be, que logo decai novamente em 24He. A cadeia de fusão só pode prosseguir, portanto, passando pela produção de 12C – este, sim, altamente estável –, mas isso demanda um encontro quase simultâneo de 34He, o que é altamente improvável exceto em situações de altíssima densidade de matéria, que não é o caso durante essa época cosmológica. Um outro fator importante a se considerar, nesse processo, é a elevada energia cinética que as partículas devem possuir23 para serem capazes de “superar” a intensa repulsão coulombiana e se aproximarem a uma distância ≲1fm, de modo a possibilitar a atuação da interação nuclear para promover a fusão. A energia potencial de duas cargas elementares e a uma distância r∼1fm é24k⁢e2/r∼1⁢MeV, portanto a energia média das partículas não pode ser muito inferior a esse valor25. À época da nucleossíntese essa energia média era ∼0.1MeV [30], o que corresponde a temperaturas da ordem de 1 bilhão de kelvins (!), muito acima da temperatura média do Universo atualmente, ∼3K. Considerando-se todos os fatores acima, estima-se que, após concluída essa época de nucleossíntese primordial, cerca de 75% da massa do Universo encontrava-se na forma de prótons livres (i.e. 1H) e 25% era 4He, com 0.01% de deutério (2H) e 3He, e apenas traços de 7Li [24, 30]. O excelente acordo entre essas previsões teóricas e as abundâncias observadas no meio interestelar constitui uma das mais robustas evidências de que o Universo já passou por uma fase extremamente quente, como prevê a teoria do Big Bang. 2.7.2. Nucleossíntese estelar Mas como foram formados os elementos mais pesados? Os pré-requisitos listados acima, de altíssimas densidades e temperaturas, são satisfeitos no interior de estrelas supermassivas, como as chamadas gigantes vermelhas. Para entender um pouco esse processo, vale discutir brevemente sobre o ciclo de vida dessas estrelas. O início da vida de uma estrela se dá quando um aglomerado de gases primordiais, constituído essencialmente de hidrogênio e hélio, em abundância não muito diferente daquelas resultantes da nucleossíntese primordial, colapsa devido à sua própria atração gravitacional. À medida que o gás é comprimido, sua temperatura aumenta, até que, eventualmente, torna-se alta o suficiente para ativar a fusão de hidrogênio em deutério26, e, em última instância, hélio, segundo a Figura 17. Essas reações predominam no primeiro estágio de vida estelar – como é o caso do Sol –, e delas decorre liberação de energia na forma de radiação (assim como toda fusão de elementos com A≲56). É da fusão nuclear que as estrelas obtêm sua energia – é por isso que elas têm “brilho próprio”. Mais ainda, a pressão dessa radiação contrabalanceia o colapso gravitacional da estrela e a mantém em equilíbrio. O segundo estágio da vida estelar se inicia com o esgotamento do hidrogênio no núcleo. Os processos de fusão são temporariamente interrompidos, e, sem a pressão de radiação, o núcleo volta a colapsar gravitacionalmente. Isso faz com que suas temperatura e densidade aumentem novamente, até atingir um patamar que ativa a fusão de hélio. Quando a densidade de hélio-4 é suficientemente alta, ocorre fusão em 8Be e, antes que esse decaia, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao berílio, produzindo 12C, conforme ilustrado na Figura 18. Uma vez superado o gargalo causado pela instabilidade do berílio, outras absorções de 4He podem ocorrer, formando uma série de elementos mais pesados como C 12 ⁢ ⟶ He 4 16 ⁢ O ⁢ ⟶ He 4 20 ⁢ Ne ⁢ ⟶ He 4 ⁢ Mg 24 ⁢ … Figura 18: Dois nuclídeos de 4He se fundem e formam 8Be, que é instável e decai após cerca de 10-16s. No entanto, no interior de estrelas muito massivas, a densidade de matéria pode ser tão alta que, antes de decorrido esse tempo, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao 8Be, produzindo 12C. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Entretanto, à medida que se progride nessa cadeia, há um aumento do número de prótons nos nuclídeos envolvidos e, consequentemente, cresce a repulsão coulombiana, de modo que são necessárias temperaturas cada vez maiores (ou seja, estrelas mais massivas) para continuar a fusão. Há, ainda, outros processos nucleares, como a absorção de prótons por nuclídeos pesados, decaimentos β, e emissões de prótons e nêutrons, que dão origem a outros isótopos e elementos de número atômico ímpar, como o nitrogênio. No entanto, são processos secundários relativamente à cadeia de fusão descrita acima, e portanto espera-se que a abundância de elementos com número atômico par seja relativamente maior do que para Z ímpar. Essa predição é confirmada pela Figura 16. A abundância de elementos com número atômico par é pelo menos uma ordem de magnitude maior do que para Z ímpar. Note, também, a abundância excepcionalmente grande de ferro (e também de níquel), devido ao fato de serem elementos finais nas cadeias de fusão, após os quais a fusão deixa de ser exotérmica, i.e. deixa de liberar energia (vide Figura 11). Quando, após essa sequência de fusões, o núcleo de uma estrela supermassiva passa a ser constituído majoritariamente de ferro e níquel (i.e. elementos com A∼56, que estão no ápice da curva da Figura 11), os processos de fusão são interrompidos, por não serem mais energeticamente favoráveis, e portanto não há mais energia liberada em radiação. O núcleo colapsa sob sua própria gravidade, a densidade aumenta drasticamente, até formar um buraco negro – se a massa for suficientemente grande para isso – ou uma explosão de supernova, em que a maior parte do material estelar é ejetado, restando somente uma estrela de nêutrons27. A energia liberada nessa imensa explosão é parcialmente utilizada para realizar fusões posteriores (que são reações endotérmicas), resultando na formação de elementos mais pesados que A≳56 através da absorção de vários nêutrons, que posteriormente sofrem decaimento do tipo β e são convertidos em prótons, originando elementos de elevado número atômico. No entanto, supernovas são objetos bastante mais raros no Universo atual do que estrelas massivas ativas, e a abundância de elementos muito pesados é, por isso, comparativamente muito menor. Na Figura 16 consta apenas a soma de todas essas abundâncias. A explosão de uma supernova é também o mecanismo pelo qual os elementos pesados, inicialmente produzidos no interior de estrelas, são lançados ao espaço. A poeira dessa explosão eventualmente se condensa, atraída pela sua própria força gravitacional, e pode vir a formar um novo sistema estelar, como o nosso. Tudo o que é formado de elementos mais pesados do que o hélio foi gerado no interior de uma estrela supermassiva e lançado ao espaço após uma tal explosão de supernova. É por isso que se pode afirmar que somos, todos, poeira de estrelas [2]. 2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24], o que dá ∼8.2×1010J por grama de combustível28, ao passo que uma fusão deutério-trítio, (18) H 2 + 3 H → 4 He + n + 17.6 ⁢ MeV , libera ∼3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear. Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão. 2.8. Energia nuclear: uma aula de CTSA Toda a discussão anterior culmina em uma oportunidade de se realizar um amplo debate com os(as) estudantes sobre os impactos socioambientais da energia nuclear. 2.8.1. Armas nucleares Em colaboração com o(a) professor(a) de história de seu centro de ensino, o(a) docente pode discutir o contexto e as consequências do lançamento das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 – até hoje os únicos casos de uso militar de armamentos nucleares na história –, bem como a corrida armamentista subsequente que levou à proliferação desses artefatos, e os atuais acordos e negociações almejando a não-proliferação e o desmantelamento dos mísseis existentes. Imagens ilustrando o poder destrutivo desse tipo de armamentos, incluindo comparações das cidades japonesas atingidas, antes e depois da destruição, podem ser encontradas em [33, 34, 35]. 2.8.2. Ciência e Ética Não é incomum, na história humana, que resultados de pesquisas científicas sejam utilizados para servir fins belicistas ou até mesmo propósitos genocidas. E, embora o senso-comum contemporâneo não hesite em trivialmente atribuir toda a responsabilidade aos políticos, fato é que nenhum desses projetos poderia ser bem sucedido se não fosse pela participação de cientistas extremamente competentes. Por outro lado, essas mesmas linhas de pesquisa frequentemente originam aplicações indiscutivelmente benéficas à humanidade, como aprimoramento de técnicas medicinais e farmacológicas. Nesse contexto, o(a) docente pode levantar uma salutar discussão interdisciplinar com algumas das questões: como a ciência e a sociedade civil poderiam/deveriam lidar com potenciais conflitos éticos advindos de uma determinada pesquisa científica? Como deve se portar o(a) cientista diante desses supostos dilemas? Há situações em que é desejável impor limites à nossa capacidade de exploração científica? Ou seja, existem casos em que a ignorância possa ser mais benéfica do que o conhecimento? Poderia ser essa ignorância um meio eficiente e desejável de se evitar catástrofes humanitárias? Esse debate não se limita à Física. Atualmente há amplas discussões no meio científico, e na sociedade civil em geral, sobre dilemas éticos envolvendo a engenharia genética, e os limites que se poderia ou se deveria impôr ao desenvolvimento dessas técnicas de manipulação gênica. Portanto essa atividade ofereceria uma excelente oportunidade de diálogo e interdisciplinaridade envolvendo também os(as) docentes de Filosofia, História, Sociologia e Biologia do centro de ensino em que atua o(a) docente de Física. 2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia. Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3, que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29, 36]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29, 36]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1. Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina. A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos. O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes. Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29. Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37]. A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos. Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40, 41]. Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42]. Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43]. Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção. O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45]. Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46]. Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15. Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47]. O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados. A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca. Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido. Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global. Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50, 51]. Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53]. Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais. 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8). 2.10. Aplicações de decaimentos radioativos Os decaimentos radioativos descritos acima possuem uma série de aplicações tecnológicas presentes em nosso quotidiano, que possibilitam uma abordagem dessa temática em um contexto CTSA. Faremos aqui alguns apontamentos dessas aplicações, que obviamente não encerrarão o tema. 2.10.1. Datação radioativa O decaimento radioativo é um processo quântico, portanto probabilístico. Isso significa que é impossível prever o momento exato em que um nuclídeo individual decairá. Mas a taxa de probabilidade de ele decair (i.e. a probabilidade por unidade de tempo) é mensurável, e, com isso, é possível determinar quanto tempo levará, em média, para que metade dos nuclídeos em uma amostra36 tenha decaído. A situação é análoga ao do lançamento de uma moeda: se lançarmos uma a cada segundo, é impossível saber qual será o resultado de cada lançamento, mas sabemos que precisaremos esperar aproximadamente 1000 segundos para obtermos 500 caras ou 500 coroas (e essa estimativa é tanto mais precisa, quanto maior o número de lançamentos envolvidos). Esse tempo para que metade da amostra tenha decaído é chamado de tempo de meia-vida, e cada elemento radioativo possui uma meia-vida característica. Por exemplo, o tempo de meia-vida do carbono-14 é 5730 anos. Isso significa que, se temos inicialmente uma amostra de 1g de 14C, após 5730 anos essa amostra conterá apenas 0.5g desse elemento, e após outros 5730 anos conterá apenas 0.25 g, e assim sucessivamente. De todo carbono presente na atmosfera terrestre, uma pequena fração37 está na forma de carbono-14, também chamado de radiocarbono. Enquanto um organismo está vivo, respirando e se alimentando (seja realizando fotossíntese, produzindo açúcares a partir de gás carbônico absorvido da atmosfera, seja fazendo parte de uma cadeia alimentar em cuja base estão esses organismos realizadores de fotossíntese), os átomos de carbono de seu corpo são constantemente “reciclados”, substituídos por novos oriundos da atmosfera, e parte desses átomos são do isótopo carbono-14. Isso significa que a concentração de carbono-14 em um organismo vivo é a mesma que na atmosfera. Quando o organismo morre, o carbono-14 deixa de ser reposto, e sua concentração de radiocarbono apenas diminui devido ao decaimento. Assim, se medirmos a concentração38 de radiocarbono em uma amostra de um organismo que já foi vivo, podemos determinar quanto tempo transcorreu desde sua morte. Como se vê, uma aula sobre datação por radiocarbono é uma excelente oportunidade para trazer a interdisciplinaridade à sala de aula, discutindo ciclo de carbono na biosfera, fotossíntese e cadeia alimentar. É importante ressaltar que a datação por radiocarbono só pode ser usada para datar matéria orgânica – por exemplo, ossos, restos de plantas, ou até artefatos arqueológicos, como cerâmicas enriquecidas por matéria orgânica. Ademais, não é possível datar com radiocarbono materiais com mais do que ∼50 mil anos de idade. Isso porque, após esse tempo, já transcorreram aproximadamente 10 meias-vidas do radiocarbono, e a fração desse elemento na amostra já é 1/210∼0.1% da concentração original. É claro que detectores mais precisos permitem extrapolar um pouco esse limite superior, mas não muito mais do que isso. Isso significa que fósseis de dinossauros não podem ser datados por radiocarbono, (i) porque um fóssil de dinossauro não é matéria orgânica, mas material rochoso que se sedimentou sobre os ossos do animal (ou seja, um fóssil é uma rocha), e (ii) porque dinossauros foram extintos há cerca de 65 milhões de anos, portanto qualquer vestígio de carbono-14 no fóssil já teria desaparecido completamente após esse período. Isso não quer dizer que não se pode fazer datação de rochas por meio de decaimentos radioativos. Ao contrário, essas datações são possíveis, desde que se use o decaimento de outros elementos como “régua”, como o rubídio-87, que decai via (23) Rb 87 → 87 Sr + e - + ν ¯ e , com meia-vida 4.9×1010anos. O método é essencialmente o mesmo descrito acima, mas com algumas diferenças. Nesse caso não se conhece a abundância inicial de rubídio-87 na amostra inicial, então mede-se também a abundância do elemento-filha desse decaimento, o estrôncio-87, e também o outro isótopo estrôncio-86 (que é estável). Com essas informações é possível determinar a idade de meteoros e, a partir daí, inferir a idade do Sistema Solar (e, portanto, do planeta Terra) como 4.5×109 anos [56, 57]. É importante mencionar que a datação radioativa não é a única forma de se datar um artefato, e nem sempre é a mais precisa. Na arqueologia, o mais comum é datar um objeto com base em outros itens encontrados em uma mesma escavação, como moedas, evidências textuais (em lápides ou cerâmicas), práticas culturais (por ex. a forma como o objeto foi fabricado ou o material utilizado), e outros indícios que apontem para o contexto histórico do objeto desenterrado. Ainda outra forma de datação muito precisa é a chamada dendrocronologia39, tão precisa a ponto de ser usada para calibrar a datação feita por métodos radioativos descritos acima! Esse método baseia-se no fato de que os troncos das árvores são formados por vários anéis (vide Figura 25), produzidos (em média) um por ano, e cuja espessura, coloração e outras características dependem das condições climáticas e ambientais da região onde a árvore se desenvolveu. Assim, fazendo um estudo de diversas árvores de uma região em várias épocas diferentes, podemos fazer uma tabela de quais anos calendáricos correspondem a quais características de anéis. Tendo essa correspondência em mãos, ao encontrarmos um pedaço de madeira com uma determinada sequência de anéis, podemos inferir a época em que a árvore viveu (e, consequentemente, inferir a época em que um certo artefato arqueológico de madeira foi produzido). A dendrocronologia é muito usada, por exemplo, para datação de obras de arte com base em suas molduras40. Figura 25: Corte transversal de um tronco de árvore mostrando seus anéis. A quantidade de anéis indica a idade da árvore. A coloração, a espessura e outras caracterizações dos anéis indicam as condições ambientais em que a árvore se desenvolveu. Fazendo um levantamento estatístico com diversas árvores, é possível fazer uma associação de quais anos calendáricos correspondem a quais sequências de anéis. Uma vez estabelecida essa relação, qualquer artefato de madeira pode ser datado a partir da sequência de anéis da madeira. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 4.0 [15]. É interessante trazer a discussão do parágrafo acima para sala de aula, para evitar a disseminação do mito de que os métodos baseados em decaimentos radioativos são “os melhores” ou “mais precisos”41. Ao contrário, trata-se de um dentre muitos métodos de datação que se complementam. Novamente o convite à interdisciplinaridade faz-se presente, por se tratar de uma temática que envolve a física – na parte dos decaimentos –, a biologia – na dendrocronologia –, a história – na arqueologia – e também as artes – na medida em que essas técnicas são aplicadas para determinar a origem e a originalidade de pinturas e outras obras famosas. 2.10.2. Aplicações medicinais Uma das aplicações medicinais de decaimentos radioativos já foi discutida na primeira parte desta série de artigos: trata-se do uso de decaimentos β+ para realização de exames como o PET scan[1]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo (por ex. o 18F) que decai por β+, ou seja, emitindo pósitrons. Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com a glucose usual, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo decai42, emitindo um pósitron. Esse pósitron se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 26. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 26: Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [58]. Outra aplicação medicinal desses decaimentos radioativos é a chamada radioterapia para combate a cânceres. As partículas emitidas em decaimentos radioativos (as partículas α, os elétrons e pósitrons ou a radiação γ) são tipicamente muito energéticas e, quando incidem sobre células de organismos vivos, podem desintegrar o DNA e danificar sua capacidade reprodutiva. As células cancerígenas são justamente aquelas que se reproduzem descontroladamente, a uma taxa muito maior que as células normais do organismo. Assim, atacando a região cancerígena com radiação e destruindo o DNA de suas células, a reprodução delas fica comprometida e o câncer pode ser reduzido ou até eliminado. Em geral, as células saudáveis em torno do câncer também serão afetadas pela radiação, mas se variarmos o ângulo de incidência da radiação, mantendo a região afetada no centro (como ilustrado na Figura 27) podemos minimizar o dano a regiões saudáveis enquanto maximizamos o bombardeamento ao tumor. Figura 27: Bombardeamento de um tumor por raios γ em sessão de radioterapia. O ângulo de incidência da radiação é variado a fim de maximizar o dano ao tumor, minimizando o dano às regiões saudáveis no seu entorno. Fonte: adaptado de [59], distribuído sob licença Creative Commons BY 4.0 [60]. Outra forma de radioterapia é via implantes do tamanho de grãos de arroz, contendo material radioativo, que são inseridos na região do tumor. Esse material decai ao longo do tempo e danifica as células tumorosas vizinhas ao implante, atuando como uma radioterapia prolongada e constante [59]. Por fim, nota-se que a radioterapia é apropriada para o caso de tumores bem localizados em uma região do corpo. Há, ainda, outros tratamentos contra câncer, como a quimioterapia, que consiste na administração de uma substância que inibe a divisão celular, fazendo com que as células cancerosas morram sem se reproduzir. Nesse caso, não se trata de uma terapia com materiais radioativos, e, sim, com substâncias químicas – daí o nome do tratamento. Como se vê, uma aula sobre aplicações medicinais da radioatividade abre uma janela para a exploração interdisciplinar da física com a biologia, envolvendo tanto física nuclear quanto biologia celular, DNA e ciclo de reprodução da célula. Além disso, trata-se de uma excelente oportunidade para, nesse contexto interdisciplinar, utilizar uma abordagem CTSA em sala de aula. 2.10.3. Esterilização e conservação de alimentos Como acabamos de mencionar, a radiação proveniente de decaimentos nucleares pode ser danosa a organismos vivos, a depender da energia da partícula emitida. Assim, outra utilidade prática desses decaimentos é na esterilização de equipamentos médicos (quando se deseja eliminar microorganismos) e também na conservação de alimentos, eliminando-se bactérias, fungos, larvas, insetos e demais agentes biológicos indesejáveis. Além disso, através da irradiação pode-se postergar a maturação desses alimentos, fazendo com que durem mais tempo e possam ser transportados por maiores distâncias sem que estraguem. No Brasil, a irradiação de alimentos é uma técnica reconhecida e regulamentada pela ANVISA [61]43. De acordo com essa regulação, a radiação permitida para esse fim são os raios γ provenientes de decaimentos do cobalto-60 e do césio-13744, ou raios-X (que também são radiação eletromagnética, como os raios γ, mas nesse caso de energia até 5 MeV) ou até mesmo elétrons acelerados a energias de no máximo 10 MeV. Assim como tudo o que envolve radioatividade, essa aplicação na indústria de alimentos gera preocupações que merecem ser endereçadas com cuidado. A primeira preocupação imaginável é que o alimento possa se tornar radioativo. Isso é impossível, porque a irradiação é feita com elétrons ou radiação eletromagnética, que são incapazes de alterar os isótopos dos elementos presentes na comida45,46. Por exemplo, é impossível converter carbono-12 (estável) em carbono-14 (radioativo) com bombardeamento de fótons ou elétrons. Uma preocupação mais pertinente diz respeito à possível degradação nutricional do alimento irradiado, bem como perdas de qualidades sensoriais, como sabor e aroma. Muitos estudos foram e continuam sendo realizados para investigar essa possibilidade. De fato, os estudos mostram que alguns nutrientes vitamínicos – como a vitamina C, por exemplo – são ligeiramente danificados pelo procedimento, a depender da temperatura em que eles são realizados47, e da dosagem de radiação utilizada [63, 64]. Contudo, assim como na discussão sobre energia nuclear, é preciso comparar esse resultado com o que ocorre nos processos de esterilização alternativos. Por exemplo, a pasteurização a altas temperaturas também implica em perdas de nutrientes. Nessa perspectiva comparativa, as conclusões dos estudos são de que o método de esterilização por irradiação não é aplicável a todos os alimentos – até porque muitos têm o sabor afetado de modo a torná-los desagradáveis ao paladar, como é o caso do leite –, mas que em outros casos as possíveis perdas vitamínicas são comparáveis àquelas advindas dos outros métodos mais usuais de esterilização. Importante mencionar que esse método não deve ser aplicado para substituir as boas práticas de higiene na produção e manuseio dos alimentos, e, sim, para complementá-las. Isso está determinado muito claramente até nas diretrizes da ANVISA [61]. Ademais, essas diretrizes também determinam que no rótulo do produto deve constar a frase “ALIMENTO TRATADO POR PROCESSO DE IRRADIAÇÃO”, a fim de que o consumidor possa fazer uma escolha informada e consciente. Justamente por ser uma temática que instiga o debate, e que tem impacto direto em nossa vida quotidiana – por afetar nossa alimentação –, essa temática é ideal para uma aula CTSA em um contexto interdisciplinar envolvendo a física, a biologia – na discussão do aspecto nutricional dos alimentos –, a química – no debate sobre como a radiação pode destruir moléculas ou catalizar reações que produzam novas substâncias – e também a geografia – levantando a discussão sobre a importância de se ter técnicas de preservação e prolongamento do tempo de vida de um alimento, e o impacto socioeconômico dessas tecnologias na indústria alimentícia. Abordar essas temáticas em uma perspectiva de debate fomenta o desenvolvimento do raciocínio do(a) estudante e sua capacidade de elaborar uma opinião eloquentemente. Não há certo ou errado, desde que todas opiniões sejam fundamentadas em dados e fatos. Pode-se, assim, incentivar a pesquisa por parte dos(as) discentes, para que se preparem à discussão. O debate pode também servir para explorar a criatividade dos(as) estudantes, que podem apresentar suas falas em forma de um telejornal, peça teatral, música, ou outras formas que atraiam a atenção do(a)aluno(a). 2.10.4. Tecnologias quotidianas A radioatividade encontra aplicações também em tecnologias quotidianas, presentes até mesmo em muitas residências. Um exemplo são os detectores de fumaça iônicos, ilustrados na Figura 28. No interior desses detectores há uma câmara de ionização, que consiste de duas placas paralelas conectadas a uma bateria e exposta a um elemento radioativo emissor de partículas α, tipicamente o amerício-241. Essas partículas α ionizam o ar entre as placas (i.e. removem elétrons dos átomos), fazendo surgir uma corrente no circuito. As partículas de fumaça, quando entram na câmara, desionizam o ar, reabsorvendo as partículas carregadas, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. Figura 28: (Esquerda) Esquema do interior de uma câmara de ionização, parte integrante de um detector de fumaça iônico. A câmara contém um elemento emissor de α (tipicamente amerício-241), que ioniza o ar no interior da câmara, provocando uma corrente entre as placas conectadas à bateria. Quando há fumaça, os íons são parcialmente reabsorvidos e o ar é novamente neutralizado, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. (Direita) Interior de um detector de fumaça iônico. A câmara de ionização está marcada com a etiqueta amarela, que avisa sobre seu conteúdo radioativo. Abaixo dela está o alarme, e à direita a bateria que alimenta o circuito. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 2.0 [66]. Cabe mencionar que este não é o único tipo de detector de fumaça disponível no mercado. Há, ainda, os chamados detectores óticos, que funcionam à base do efeito fotoelétrico [1]. Uma ilustração do funcionamento desses detectores é dada na Figura 29. Figura 29: Esquema ilustrando o funcionamento de um detector de fumaça ótico. Em condições normais, um LED emite radiação infravermelha que não atinge o fotodetector. Na presença de fumaça, a luz é espalhada e desviada de sua trajetória retilínea inicial, incidindo no detector e ativando o alarme. iniciamos a segunda parte da sequência didática com uma discussão sobre o experimento de Rutherford-Geiger-Marsden, que deu origem ao conceito de núcleo atômico. Trata-se de um tópico que não foge à ementa tradicional do ensino médio, portanto adequado como ponto de partida da segunda parte da sequência. Discutiremos a necessidade de se postular uma nova forma de interação, chamada interação nuclear forte, para explicar a estabilidade do núcleo. Apresentamos diversas consequências fenomenológicas que podem ser discutidas em sala, tais como: reações de fissão e energia nuclear; a fusão nuclear como fonte de energia do Sol e demais estrelas; a fusão como reação geradora de todos os elementos na Natureza, justificando a famosa frase de Carl Sagan de que “somos poeira das estrelas” [2[2] C. Sagan, As ligações cósmicas: uma perspectiva extraterrestre (Ed. Gradiva, Lisboa, 2001).]; e decaimentos nucleares e aplicações tecnológicas. Enfatizaremos como cada um desses subtemas têm rico potencial de discussão sob uma abordagem que interliga Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) [3[3] W. Bybee, Science Education 71, 667 (1987)., 4[4] J.L.L. López e J.A.L. Cerezo, em: Ciencia, tecnologia y sociedad: una introducción al estudio social de la ciencia y la tecnologia, editado por M.I.G. García, J.L.L. López e J.A.L. Cerezo. (Editorial Tecnos S. A., Madrid, 1996)., 5[5] M. Krasilchik, O professor e o currículo (São Paulo, EDUSP, 1987)., 6[6] W.L.P. dos Santos e E.F. Mortimer, Ciência e Educação 7, 95 (2001)., 7[7] W.L.P. dos Santos e E.F. Mortimer, Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências 2, 110 (2002)., 8[8] L.H. Sasseron e A.M.P. Carvalho, Investigações em Ensino de Ciências 16, 59 (2011)., 9[9] L.J. Waks, em: Ciencia, tecnología y sociedad: estudios interdisciplinares en la universidad, en la educación y la gestión pública, editado por M.M.E. Aibar e J. Sanmartín (Anthropos Editorial, Barcelona, 1990).], bem ao espírito desta série de artigos.

Cabe destacar, desde já, que a física nuclear é intrinsicamente convidativa à contemporaneidade e à interdisciplinaridade, constituindo-se, assim, em uma plataforma ideal para uma abordagem CTSA e de alfabetização científica em sala de aula. Exatamente por isso, trata-se também de uma temática que atrai a atenção de diversos(as) estudantes, sejam apaixonados(as) pela física ou não. O intuito da preparação desta parte da sequência foi tornar explícitas as potencialidades de se tratar dessa temática sob essa abordagem pedagógica. Enfatizamos como tal abordagem possibilita um campo extremamente frutífero para, ainda, incluir atividades que desenvolvem diversas habilidades norteadas pela Base Nacional Curricular Comum (BNCC) [10[10] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Base Nacional Comum Curricular, disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br, acesso em 21/06/2023.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
] na área de Ciências da Natureza e suas tecnologias no ensino médio.

Após a apresentação da sequência, discutimos a dinâmica em sala de aula na seção 3 3. Análise das intervenções 3.1. O contexto: o local e os sujeitos No ano de 2017, o Núcleo Cosmo-UFES da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) iniciou o projeto de extensão “Universo na Escola” [65], em que professores e pesquisadores são convidados a ministrar palestras sobre tópicos atuais de pesquisa em Física a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. O intuito do projeto é o de ampliar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas ciências em geral e, em particular, pela Física. Ministradas fora do período regular de aulas nas escolas participantes, as palestras se configuram como atividade complementar eletiva. Para este trabalho, os autores optaram por extrapolar o formato usual das palestras do contexto do projeto de extensão. Para isso, elaboraram e ministraram uma sequência didática sobre Física de Partículas contemplando dez encontros com duração aproximada de uma hora cada, em horários extra-classe, durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, o que totalizou uma carga horária de dez horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os discentes. A sequência foi ministrada por um dos autores a uma turma mista com, no máximo, quatorze estudantes das 1a , 2a e 3a séries do ensino médio do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Alguns participantes integravam um grupo com interesse prévio em Física, que já era acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador de Física da escola. No entanto, no decorrer da sequência outros estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais que já participavam das aulas. 3.2. Das aulas Na seção 2 apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física Nuclear, organizados de maneira fluida em continuidade à primeira parte da sequência didática, cujo foco foi a introdução à Física de Partículas e a Eletrodinâmica Quântica [1]. Da mesma forma que na primeira parte desta sequência didática, os conceitos relevantes à temática eram construídos em conjunto aos discentes a partir de conexões com seus conhecimentos prévios, de forma que o engajamento dos estudantes presentes nas aulas foi mantido ou aumentou consideravelmente, como veremos na seção 3.5. Na intervenção realizada na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Física Nuclear, serviu como base para a elaboração da segunda parte da sequência didática sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em duas aulas, a quarta e quinta aulas, ministradas nos dias 7 e 10 de outubro do ano de 2019, com duração de 52 e 65 minutos, respectivamente. A primeira aula do bloco de aulas sobre Física Nuclear, em análise neste trabalho, foi a quarta aula da sequência didática de dez aulas48. O primeiro momento da quarta aula foi de breve revisão da terceira aula da sequência. Na terceira aula, tópicos introdutórios de Mecânica Quântica foram abordados para a construção dialógica da dualidade onda-partícula, do fóton como mediador da interação eletromagnética e do conceito de antipartícula ou antimatéria a partir do pósitron, finalizando com um debate sobre aplicações na Medicina, como nos raios-X e na tomografia PET-scan. Mais detalhes sobre a terceira aula da sequência didática podem ser encontrados em [1]. Os principais tópicos abordados em sala no restante da quarta e da quinta aulas, com as respectivas subseções discutidas detalhadamente na seção 2 acima, encontram-se listados nas Tabelas 1 e 2. Tabela 1: Os momentos da quarta aula da sequência. Aula 4: Física Nuclear – Parte I Seção Momento Breve revisão da terceira aulaAs escalas dos efeitos quânticos e relativísticos 12 2.1.1 Relembrando o átomo de Thomson 3 2.1.2 e 2.1.3 O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden: levantando hipóteses na ciência 4 2.1.3 e 2.1.4 Teste de hipóteses na ciência 5 2.1.4 Como ocorre o desenvolvimento da ciência – Parte I 6 2.2 Os prótons e os nêutrons: o núcleo atômico possui uma subestrutura 7 2.4.1 A interação nuclear forte: por que o núcleo não se desintegra? 8 2.4.2 Como ocorre o desenvolvimento da ciência – Parte II 9 2.4.3 Comparando a interação forte com as interações gravitacional e eletromagnética 10 Tabela 2: Os momentos da quinta aula da sequência. Aula 5: Física Nuclear – Parte II Seção Momento Breve revisão da aula anterior 1 2.5 Energia de ligação 2 2.7 O processo de fusão nuclear 3 2.7.1 e 2.7.2 A energia do Sol e a formação de elementos no Universo 4 2.9 O que são decaimentos nucleares? 5 Decaimento alfa 6 Decaimento beta 7 Decaimento gama 8 2.6 O processo de fissão nuclear 9 2.8 A radioatividade e seus perigos: Marie Curie e Chernobyl 10 A radioatividade e seus perigos: a bomba de Hiroshima 11 A radioatividade e seus perigos: o desastre de Fukushima 12 Mecanismos de controle em usinas nucleares 13 Vantagens da energia nuclear e questões políticas sobre enriquecimento de urânio 14 O que fazer com o lixo radioativo? 15 2.7.3 e 2.8 Energia nuclear a partir de fusão e a bomba de hidrogênio 16 Em trabalho anterior [1] ressaltamos o caráter dialógico do professor com os estudantes em detrimento a uma postura meramente expositiva, a partir do qual vários momentos surgiram de forma orgânica das conversas, das interrogações dos próprios estudantes e de propostas de debates. Por exemplo, no início da quarta aula, após o momento 3, quando o professor relembrou o átomo de Thomson e comentou sobre como Rutherford teve a ideia de um experimento que pudesse testar a composição do átomo de Thomson, e que foi implementada por Geiger e Marsden, um dos estudantes em sala de aula trouxe a informação à turma, com autonomia, de que uma das partículas alfa lançadas ao átomo teria desviado muito mais do que o esperado. Assim, o professor aproveitou para aliar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre energia cinética e potencial para obter, em conjuntos a esses mesmos estudantes, a velocidade final esperada das partículas alfa caso o modelo de Thomson fosse uma descrição adequada para o átomo. Além disso, o professor aproveitou para introduzir a curva esperada do número de partículas alfa desviadas a diversos ângulos para o átomo de Thomson, bem como os pontos experimentais obtidos pelos alunos de Rutherford, e abordou como a discrepância entre a curva esperada para o átomo de Thomson e a curva dos pontos experimentais obtidos mostrou que algo não estava correto na descrição do átomo por Thomson, o que levou ao debate em sala de aula sobre um dos pilares da ciência: o teste de hipóteses. Quando as previsões de um modelo baseadas em determinadas hipóteses não condizem com as observações, cientistas devem repensar as hipóteses iniciais e perspectivas com relação à situação investigada. Com o auxílio do professor, o momento de discussão sobre o desenvolvimento da ciência foi aprofundado: os estudantes construíram a percepção de que os cientistas buscam, a todo momento, criar soluções para os problemas em aberto e, quando essas soluções aparecem e se mostram eficazes, coerentes com as observações, surgem ainda outros novos problemas para os quais novas soluções devem ser buscadas. Tal momento foi guiado pela percepção de que a existência da interação forte resolveu o problema da coesão do núcleo atômico, mas deixou um problema em aberto que seria abordado em aulas futuras: o fato de que não percebemos essa interação no nosso dia a dia. Outros exemplos vêm dos momentos 7 e 8 da aula 4, quando os estudantes foram estimulados a ir além do átomo de Rutherford e levantaram hipóteses sobre a existência de subestruturas do núcleo, que foram devidamente introduzidas pelo professor, como os prótons e os nêutrons. Em seguida, foi proposto um desafio aos estudantes: pensar como o núcleo não se desintegra, uma vez que os nêutrons são neutros e os prótons, de carga elétrica positiva, tendem a se repelir. Os estudantes expuseram seus pensamentos sobre a situação, considerando elétrons que orbitam o núcleo e as distâncias envolvidas, até um aluno levantar a hipótese de que o núcleo seria formado por ainda outras partículas, menores do que os prótons e os nêutrons, e que deveríamos olhar para as cargas dessas partículas. Dessa forma, o professor constrói, junto aos alunos, a necessidade da existência de uma outra interação, que eles ainda desconheciam, além da eletromagnética e da gravitacional, para vencer a repulsão eletromagnética e que seria fundamental para a atração das partículas do núcleo a fim de mantê-lo coeso. No último momento da aula 4 houve uma comparação entre a nova interação elaborada durante a aula – a interação forte – com as interações gravitacional e eletromagnética, focos da primeira parte da sequência didática [1]. Estimular tal pensamento relacional entre os tópicos abordados em sala de aula é sempre muito frutífero, pois assim os estudantes percebem como a ciência não é um apanhado de blocos temáticos desconexos entre si mas, sim, que pode e deve explorar relações das mais diversas, assim como com tudo o que eles vêm e percebem do mundo, ampliando suas estruturas cognitivas e visões sobre o próprio mundo que os cerca. Além disso, houve uma breve introdução ao conceito dos píons e a menção ao brasileiro envolvido na sua descoberta, César Lattes. Neste momento, partindo do próprio interesse dos alunos, houve uma discussão crítica sobre as complexidades de se fazer ciência no Brasil e sobre a hierarquia científica acadêmica e internacional a partir da informação de que o Lattes não recebeu o prêmio Nobel por seu envolvimento na descoberta, o que demonstra interesse por parte dos próprios alunos em compreender as relações sociais mundiais que envolvem a ciência. Na quinta aula, destacamos os momentos sobre a fissão nuclear e a radioatividade como os mais dialógicos da aula. Os estudantes trazem informações da série de TV “Chernobyl” [67] para a aula, formulam diversas perguntas sobre os acontecimentos nela mostrados, e ainda trazem novas informações sobre o acidente. Houve perguntas sobre a nuvem tóxica formada, que quase se espalhou por toda a Europa, sobre a formação do câncer nas vítimas do acidente e sobre como máquinas ficam destruídas com a radiação ionizante. Foi um momento de bastante descontração, mas que não ficou somente na surpresa com as informações. Pelo contrário, elas foram discutidas sistematicamente pelo professor para se aproximar o mais possível de um real aprendizado dos conceitos envolvidos e não permanecer apenas na falsa percepção de aprendizado pelo fantástico [68]. Após abordar com extensão as desvantagens da energia nuclear, houve interesse dos alunos por uma discussão sobre suas vantagens e questões políticas que envolvem o seu uso, como o enriquecimento do urânio. Foi abordado como as emissões de gases do efeito estufa, que aceleram o aquecimento global, são baixíssimas no caso da energia nuclear. Outra vantagem é que há muito menos impacto ambiental em termos de área que deve ser empregada para a construção de uma usina nuclear, quando comparada, por exemplo, à região utilizada para construir usinas hidrelétricas. Um dos estudantes, inclusive, trouxe com autonomia várias informações para essa discussão: o desmatamento considerável na região próxima aos rios e a retirada de residentes locais para a criação dos reservatórios e das barragens das hidrelétricas, ao que o docente ainda mencionou o risco de rompimento dessas barragens. Os alunos perceberam a complexidade da temática sobre o uso de energia nuclear, refletindo para além do básico. No início da discussão foram abordadas apenas as desvantagens de seu uso, mas, aos poucos, a partir de interações entre colegas e professor, a percepção final foi a de que há diversas vantagens e pouca chance de ocorrer um acidente. Contudo, houve o consenso de que, caso ele ocorra, certamente será um acidente crítico e, sem definir um posicionamento, concluíram a favor da necessidade de mais investimentos em mecanismos de segurança para as usinas nucleares. Uma análise preliminar das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática pode ser encontrada em [69], e será publicada com mais detalhes em trabalho futuro dos autores. 3.3. Metodologia e coleta de dados Em nossa análise adotamos um percurso metodológico de cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [70]. A Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e a diretoria da escola onde as intervenções foram aplicadas autorizaram a observação das intervenções e anotações sobre as interações entre os discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. Para isso, construímos um diário de campo considerando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [70, 71], bem como reflexões após as intervenções propriamente ditas sobre as possíveis relações entre tais aspectos, sobre as atividades para casa e interações imediatamente anteriores e posteriores às intervenções. A metodologia de estudo de caso partiu da vivência com o local onde as ações se desenvolveram, ou seja, em sala de aula, onde consideramos as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [72]. Os dados coletados focam na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores. Para manter o sigilo e preservar suas identidades, optamos por adotar nomes fictícios para os estudantes, de cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento. 3.4. Os indicadores de alfabetização científica e de engajamento A análise da viabilidade e da efetividade da sequência didática aplicada, bem como das potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro, considerou a incidência de indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrado pelos estudantes ao longo das aulas e suas atividades. Ressaltamos que as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que sua combinação com uma temática mais contemporânea da Física, a Física de Partículas, favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo [73, 74]. De acordo com [75], em qualquer processo de ensino-aprendizagem voltado à alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas a partir de ações que: envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, que estruturam o pensamento científico e que buscam o entendimento da situação analisada. Cada conjunto de ações resume uma série de elementos do fazer científico, como a seriação, a organização e a classificação de informações; o uso do raciocínio lógico e/ou proporcional; o levantamento e o teste de hipóteses; a previsão; entre outros. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 3. Cada um desses indicadores é independente dos demais e eles podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Para mais detalhes sobre o referencial teórico e considerações sobre os indicadores de alfabetização científica adotados, recomendamos a leitura do primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 3: Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica(Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidosem uma investigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação do pensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento da situação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação Apesar da natureza multifacetada que reflete a complexa interação social do estudante com o ambiente escolar, as situações vivenciadas e os outros sujeitos desse espaço, a literatura sobre engajamento escolar contempla três tipos de engajamento: o comportamental, o emocional e o cognitivo [76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89]. Todos se relacionam de forma dinâmica e não ocorrem em processos isolados. A partir desse referencial teórico, consideramos os indicadores de engajamento listados na Tabela 4 para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades de inserir a temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro. Para mais detalhes, novamente indicamos o primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 4: Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às ciências em geral Uso de estratégias 3.5. Resultados Nesta seção apresentamos os resultados referentes à incidência, durante a quarta e quinta aulas da sequência didática, dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento, apresentados na seção 3.4 acima. Uma publicação à parte aprofundará na análise da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência. A incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aula são apresentados na Figura 30. Figura 30: Incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aulas sobre Física Nuclear. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 14,45%). Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, houve uma incidência similar de todos os três indicadores: seriação de informações, organização de informações e classificação de informações. No entanto, quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas (as três primeiras aulas da sequência didática [1]), percebemos um aumento de, no mínimo, duas vezes nas incidências de organização e classificação de informações, o que é natural pois, à medida que os alunos se deparam com novos conhecimentos, há uma maior necessidade de arranjá-los em suas estruturas cognitivas e estabelecer relações entre eles. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico percebemos uma leve queda no raciocínio proporcional quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas. Esse elemento do fazer científico foi estimulado nos momentos 4 e 5 da quarta aula, sobre o experimento de Rutherford-Geiger-Marsden e durante a discussão sobre teste de hipóteses na ciência (ver Tabela 1). No entanto, a incidência foi menor do que nos momentos sobre as semelhanças e diferenças entre as leis de Coulomb e a da Gravitação, e sobre as equações de Maxwell do primeiro bloco de aulas da sequência didática [1]. Com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, observamos um aumento de quase 100% na incidência dos indicadores de justificativa e de explicação quando comparada à incidência desses mesmos indicadores no primeiro bloco de aulas [1]. Tal resultado foi devido, principalmente, à quinta aula pois, nela, os estudantes foram não só estimulados a incorporar ideias durante todas as discussões em sala de aula, fortalecendo com argumentação os aspectos abordados mas, também, os estudantes agiram com autonomia para trazer novas informações e fontes para as discussões. Inclusive, o indicador de explicação reúne uma série de ações do fazer científico e não foi mera coincidência obter sua maior incidência na quinta aula, justamente a que mais engajou os estudantes até o presente momento da sequência. Na Figura 31 apresentamos os indicadores de engajamento presentes nas aulas consideradas neste trabalho para cada um dos tipos de engajamento e para três dos cinco alunos mais presentes nas aulas – Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, que estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Não apresentamos os resultados para os estudantes Peter e Emmy, como fizemos em trabalho anterior [1] sobre as três primeiras aulas da sequência, pois eles não estiverem presentes justamente na quarta e quinta aulas, foco deste trabalho. Figura 31: Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo para os três estudantes mais presentes nas intervenções da quarta e da quinta aulas da sequência didática. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram dos estudantes Werner e Albert, todas com expressividade, ainda mais quando notamos que houve apenas 10 e 16 momentos na quarta e na quinta aula, respectivamente. Além disso, cabe ressaltar que o estudante Albert foi o menos participativo nas três primeiras aulas da sequência e, a partir da quarta aula, após se mostrar mais aberto e à vontade em sala, revelou um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. A partir da quinta aula, o mesmo estudante demonstrou ainda mais engajamento, iniciando pelo comportamental e se aprofundando no engajamento emocional e, principalmente, no engajamento cognitivo. De fato, enquanto nas três primeiras aulas da sequência Albert apresentou apenas 7, 14 e zero intervenções demonstrando engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente [1], esse mesmo estudante obteve, na quarta e quinta aulas, 64, 15 e 48 intervenções de engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, Albert apresentou uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento. Junto a Werner, com engajamento significativo ao longo de todas as aulas da sequência, Albert foi um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo nos índices de Albert é indicativo de que a sequência foi aplicada de maneira bem-sucedida com base na dialogicidade do docente aliada à temática contemporânea da Física e mostrou-se capaz de trazer os estudantes para as aulas, até mesmo aqueles mais inibidos ou inseguros nas primeiras aulas da sequência. , quando da aplicação desta sequência a uma turma mista de estudantes de 1a, 2a e 3a séries do ensino médio de um Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) no município de Vila Velha, estado do Espírito Santo. Usando indicadores presentes na literatura, avaliamos indícios de alfabetização científica e de engajamento da turma durante a aplicação da sequência.

As conclusões são apresentadas na seção 4 4. Conclusões Nesta segunda parte da série “Física de Partículas no ensino médio” exploramos a temática de Física Nuclear com ênfase em uma perspectiva CTSA. Na sequência proposta, o assunto é motivado pela busca da estrutura fundamental da matéria, mas logo se desenvolve rumo às aplicações tecnológicas que impactam a sociedade e o meio-ambiente. Mais do que isso, foi mostrado como cada subtópico pode ser discutido em sala sob um viés interdisciplinar, em diálogo com outros professores, fomentando a conjunção dos conhecimentos, em contraposição à compartimentação que frequentemente predomina nos currículos escolares. Parte do material discutido neste artigo compôs duas aulas da sequência didática, ministradas em, aproximadamente, 1 hora cada, a uma turma mista das três séries do ensino médio de uma escola estadual da cidade de Vila Velha, estado do Espírito Santo. Na ocasião, ficou patente o interesse agudo dos(as) estudantes pela temática, que se manifestou nos resultados da análise de engajamento discutidos na seção 3. Apresentamos, também, atividades que podem ser realizadas com a turma e que fomentam diversas habilidades em todas as competências norteadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) na área de Ciências da Natureza e suas tecnologias no ensino médio [10]. Trabalha-se, assim, não apenas o conteúdo desejado, mas também outras capacidades, saberes e talentos dos(as) estudantes. Assim como na primeira parte dessa série de artigos [1], o material contido aqui não precisa, necessariamente, ser aplicado na íntegra, e é até desejável que haja alguma seleção. O intuito não é fornecer um material formulaico, a ser seguido à risca pelo(a) professor(a), mas uma matéria bruta a ser por ele(a) lapidada. O objetivo jamais deve ser o “conteudismo” mas, sim, usar esse conteúdo para motivar o engajamento, proporcionar a alfabetização científica e a inclusão do(a) discente no mundo contemporâneo. Esperamos que o presente trabalho tenha demonstrado ao(à) leitor(a) o potencial da física nuclear em servir a esse propósito em sala de aula. . No apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades Apêndice A: Propostas de Atividades Seção 2.5 Um bom exercício, tanto para consolidar o conceito de energia de ligação nuclear, quanto para incentivar cálculos simples e com aplicação prática em discussões sobre energia nuclear, é usar a Figura 11 para determinar a quantidade de energia liberada em uma determinada reação nuclear. Por exemplo, conforme discutido na seção 2.7.3, uma das principais reações que poderiam ser usadas na geração de energia nuclear por fusão é a produção de hélio-4 por fusão de um deutério e um trítio, (24) H 2 + 3 H → 4 He + n + E liberada . A energia liberada é dada pela diferença entre a energia de repouso dos reagentes e do produto, (25) E liberada = ( m H 2 + m H 3 - m He 4 - m n ) ⁢ c 2 . Mas, pela equação (13), a massa do nuclídeo é a diferença da massa dos seus constituintes e de sua energia de ligação, (26) m H 2 ⁢ c 2 = ( m p + m n ) c 2 - E ( 2 H ) , m H 3 ⁢ c 2 = ( m p + 2 m n ) c 2 - E ( 3 H ) , m He 4 ⁢ c 2 = ( 2 m p + 2 m n ) c 2 - E ( 4 He ) , de modo que (27) E liberada = E ( 4 He ) - E ( 2 H ) - E ( 3 H ) . Os valores das energias de ligação podem ser lidos da Figura 11, lembrando que a figura dá a energia de ligação por núcleon. Dessa figura podemos ver que (28) E ( 4 He ) 4 ≈ 7.1 ⁢ MeV , E ( 3 H ) 3 ≈ 2.8 ⁢ MeV , E ( 2 H ) 2 ≈ 1.1 ⁢ MeV , resultando em Eliberada ≈17.8⁢MeV para cada reação, um valor muito próximo a ≈17.59⁢MeV calculado com valores tabelados para as energias de ligação. Da mesma forma é possível estimar, da Figura 11, a quantidade de energia liberada em uma fissão de U235. Para esse nuclídeo tem-se, da figura, (29) E ( 235 U ) 235 ≈ 7.6 ⁢ MeV . Essa fissão não ocorre sempre da mesma maneira, ou seja, o par de nuclídeos resultantes de uma fissão varia a cada vez que for realizada (vide Figura 15)49. Mas podemos estimar a energia liberada em média, supondo que o resultado serão dois nuclídeos idênticos, com número de massa ≈118. Da figura vê-se que a energia de ligação média para tal nuclídeo é ≈8.5⁢MeV, então Eliberada ≈235×(8.5-7.6)⁢MeV≈211⁢MeV. Seção 2.9 De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [10], uma habilidade que se almeja desenvolver com os estudantes no âmbito das ciências exatas é a análise e interpretação de dados em gráficos. Para esse propósito, uma atividade com base na Figura 20 mostra-se apropriada. A figura é simples, mas possui uma riqueza de informações que o(a) docente pode explorar em inúmeras atividades, que também servem para consolidar o conceito e os tipos de decaimentos nucleares. Algumas das questões que podem ser discutidas com base nesse gráfico são: Por que o “vale de estabilidade”, mostrado nos pontos pretos, desvia da curva Z=N? E por que esse desvio é tanto maior, quanto maior for o número de massa dos nuclídeos (i.e. quanto mais à direita do gráfico o nuclídeo estiver)? A resposta, como já discutido no corpo principal do texto (ver seção 2.9), é que nuclídeos mais pesados precisam de um ligeiro excesso de nêutrons sobre prótons, para que a atração nuclear compense a repulsão coulombiana. Por que a maioria dos pontos acima do vale de estabilidade são azuis (decaem por β-) e os pontos abaixo são, em sua maioria, laranjas (decaem por β+)? Pontos acima da curva de estabilidade possuem um excesso de nêutrons sobre prótons. O decaimento β- alivia esse excesso ao converter um nêutron em um próton. O oposto ocorre abaixo da curva, em que β+ converte um próton em um nêutron. Por que os pontos amarelos se tornam predominantes para nuclídeos muito pesados? Nesses casos a estabilidade do nuclídeo é prejudicada tanto pela repulsão coulombiana, quanto pelo tamanho do nuclídeo, que faz com que os núcleons estejam mutuamente afastados (em média), o que reduz a energia de ligação média por núcleon. O decaimento α resolve esses dois problemas simultaneamente, pois reduz o número de prótons e o número de massa (e portanto o raio do nuclídeo). A maior parte dos decaimentos α ocorre para nuclídeos mais pesados que o Pb126 (o último nuclídeo estável), ou para nuclídeos muito à direita do vale de estabilidade (ou seja, com muito mais prótons do que seria a quantidade ótima para a estabilidade). Contudo, existem alguns pontos amarelos na Figura 20 que estão bastante próximos do vale de estabilidade, ou até mesmo bem no meio desse vale. Por exemplo, o neodímio-144, Nd 60144, aparece na figura como um ponto amarelo bem em meio a pontos pretos que denotam outros isótopos estáveis do mesmo elemento. Por que isso ocorre? Se o Nd144 decair por emissão de α, transformar-se-á no cério-140, que possui 58 prótons e 82 nêutrons. O número “82” é um dos chamados números mágicos na física nuclear (por isso aparecem na Figura 20 como linhas verticais e horizontais), porque um nuclídeo que possui 82 prótons (como o chumbo) ou 82 nêutrons (como o cério-140 já citado) é excepcionalmente estável. Isso porque uma das camadas nucleares fica totalmente preenchida com esse número de núcleons (analogamente ao que ocorre com os gases nobres, que são quimicamente estáveis porque possuem uma camada eletrônica totalmente preenchida). Assim, é mais vantajoso ao Nd144 decair por α para chegar a esse estado mais estável. Note que o mesmo não acontece para o Nd145 ou Nd143. Nesses casos o decaimento αnão levaria a uma configuração com número mágico de nêutrons, e por isso esses decaimentos não são favorecidos, e esses nuclídeos são estáveis, como se vê na figura. Vários outros pontos amarelos na vizinhança da curva de estabilidade levam a uma sequência de decaimentos que resulta, ao final, em um nuclídeo com número mágico de nêutrons. Para ver isso, basta notar que, se um ponto amarelo da figura decair por α, o nuclídeo-filha estará dois pontos à esquerda e dois pontos abaixo da posição inicial. Seguindo-se a linha de decaimentos, vê-se que, para vários deles, a sequência termina na curva de estabilidade após um único decaimento (o que faz com que o decaimento α seja mais vantajoso que outra forma de decaimento), ou segue uma sequência de decaimentos que termina em um nuclídeo com 82 nêutrons. Vide, por exemplo, o caso Dy 66 154 ⟶ α 64 150 Gd ⟶ α 62 146 Sm ⟶ α 60 142 Nd . O resultado final é estável, com 82 nêutrons. sugerimos atividades que podem ser discutidas em sala de aula, além das mencionadas no corpo principal do texto.

2. Propostas de momentos didáticos

Como no trabalho anterior [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).], destacamos que os momentos didáticos apresentados abaixo não têm a pretensão de constituir um material formulaico, um receituário já pronto para ser seguido acriticamente pelo(a) docente, com um roteiro fixo das aulas. Preferimos elaborar um material que sirva como matéria-prima para que o(a) docente prepare sua aula como julgar mais adequada em seu contexto, um material de caráter sugestivo e maleável, adaptável às aspirações, necessidades e circunstâncias de cada docente e de cada turma.

Entretanto, o conjunto de momentos didáticos abaixo foi elaborado de modo a iniciar com um conteúdo já familiar a discentes e docentes, progredindo paulatinamente de modo a se construir a estrutura e a dinâmica do núcleo atômico de forma intuitiva, acessível à apreensão e sempre suscetível a debates entre os estudantes.

2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden

O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino.

2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson

Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1 1 Para uma abordagem desse experimento em sala de aula no ensino médio, ver [1]. , e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11[11] J.J. Thomson, Philosophical Magazine 7, 237 (1904).]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r10-10m, valor já conhecido na época2 2 O raio atômico pode ser estimado a partir do número de Avogadro, da densidade e da massa molar de uma determinada substância. Por exemplo, a densidade do carbono é ≈2.26⁢g/cm3, e a massa molar é 12g, portanto 1 mol de carbono ocupa um volume de 5.31⁢cm3. Como 1 mol possui ≈6.02×1023 átomos, cada átomo ocupa um volume de ∼10-23⁢cm3, o que corresponde a uma esfera de raio ∼10-10m. . Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas.

Figura 1:
(Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público.

Entre 1908 e 1913 [12[12] H. Geiger, Roy. Soc. Proc. A 83, 492 (1910)., 13[13] H. Geiger e E. Marsden, Philosophical Magazine 25, 604 (1913).], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143 3 À época, a maioria desses elementos radioativos não havia sido nomeada. Eles eram referenciados segundo a posição que ocupavam em certa cadeia de decaimento radioativo. Assim, os elementos oriundos de sucessivos decaimentos a partir do Rádio-226 eram chamados Rádio A, B, C, etc. Nos trabalhos originais de Rutherford, Geiger e Marsden, o elemento emissor das partículas α usadas no experimento é denominado Rádio C, que, hoje, sabemos tratar-se do 214Po, emissor de partículas α com energias de 7.7 MeV. . O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo.

Figura 2:
Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público.

Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo.

2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson

Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Ze, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4 4 Essa conclusão pode ser facilmente atingida usando conservação de momento linear, ou apelando-se para a intuição usando como analogia a colisão entre uma bola de basquete e uma bolinha de gude, situação em que é fácil ver que apenas a bolinha de gude é desviada significativamente. , e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a

(1) F max = - k Z e 2 r 2 .

Figura 3:
Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14[14] R. Nave, The Thomson model of the atom, disponível em: http://hyperphysics.phy-astr.gsu.edu/hbase/Nuclear/rutsca3.html, acesso em 21/06/2023.
http://hyperphysics.phy-astr.gsu.edu/hba...
], adaptado e publicado com autorização do autor.

Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é

(2) Δ K α - k Z e 2 r - 10 - 13 m r MeV ,

onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k9×109Jm/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1J=(1.6×10-19)-1eV.

A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas.

O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2r é

(3) Δ t 2 r v α .

Figura 4:
Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15[15] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 4.0 (BY-SA 4.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δpy da componente transversal da velocidade da partícula, dada por

(4) F Coulomb = m Δ v y Δ t = k 2 Z e 2 r 2 .

Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que

(5) sin θ = Δ v y v Δ v y v α ,

Figura 5:
Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público.

onde usamos o fato de que vvα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ1 e portanto sinθθ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que

(6) θ k 4 Z e 2 m v α 2 r k 2 Z e 2 K α r 0.02 o .

Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6m/10-10m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩θ2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5 5 O cálculo dessa probabilidade no caso em questão é demasiadamente complexo para ser apresentado no ensino médio, mas a noção de quão improvável é essa situação pode ser explicada da seguinte maneira. Suponha que, em cada colisão, a deflexão só pode ser a máxima, 0.02o, em uma direção ou na oposta (“para cima” ou “para baixo”, caso a partícula α passe acima ou abaixo do átomo, vide Figura 4). Para totalizar uma deflexão de 90o é necessário que haja 90o/0.02o=4500 deflexões a mais em uma direção do que em outra. Ou seja, é como se lançássemos 10000 moedas e requerêssemos ao menos 7250 “coroas”. A probabilidade disso ocorrer é 10000 ! 7250 ! ⁢ 2750 ! ⁢ ( 1 2 ) 10000 ≈ 10 - 450 . Uma aproximação ainda melhor seria supôr que a partícula pode ser desviada em quatro direções possíveis: “para cima”, “para baixo”, “para a esquerda” e “para a direita”. Nesse caso o fator 1/2 acima deve ser substituído por 1/4, resultando em uma probabilidade ≈10-3450. . De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16[16] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica (Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1979).], ou seja, efetivamente zero.

2.1.3. O modelo de Rutherford

Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado:

“Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.”

E. Rutherford

O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17[17] E. Rutherford, Philosophical Magazine 21, 669 (1911).]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, ΔKα7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r10-14m.

Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5.

A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a

(7) N ( θ ) 1 K α 2 sin 4 θ 2 .

A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico.

Figura 6:
Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo.
Figura 7:
(Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θλ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21[21] PPlato/FLAP (Flexible Learning Approach to Physics), PHYS 6.4: Optical instruments. Disponível em: http://www.met.reading.ac.uk/pplato2/h-flap/phys6_4.html, acesso em 21 de junho de 2023.
http://www.met.reading.ac.uk/pplato2/h-f...
]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público.

2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico?

Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima.

Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado.

O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões:

  • É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura?

  • Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências?

  • E qual é o papel dos modelos teóricos?

  • Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais?

  • Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico?

  • O que é uma teoria científica?

  • O que é ciência?

Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza.

2.2. Estrutura do núcleo atômico: prótons e nêutrons

Em 1919, continuando suas investigações a respeito da interação entre partículas α e a matéria, Rutherford notou que a passagem dessas partículas pelo ar produzia um fluxo de núcleos de hidrogênio detectados na chapa de ZnS [18[18] E. Rutherford, Philosophical Magazine 37, 581 (1919).]. O efeito desaparecia quando o ar era substituindo por gás oxigênio, O2, ou por dióxido de carbono, CO2, mas era ainda mais notável para gás nitrogênio, N2. Hoje, é sabido que Rutherford observara a reação nuclear

14 N + 4 He 17 O+ 1 H .

A partir desses resultados, Rutherford postulou que o núcleo de hidrogênio – o mais leve dentro todos os elementos – é um constituinte fundamental de todos os núcleos atômicos [19[19] E. Rutherford, Roy. Soc. Proc. A, 97, 374 (1920).], e que, no processo acima, um deles é ejetado do nitrogênio pela colisão com a partícula α. Com isso, Rutherford reavivou a tese proposta um século antes por William Prout, que notara que as massas molares de vários elementos eram múltiplos inteiros da massa molar do hidrogênio, e supôs ser esse o elemento primordial do qual todos são constituídos6 6 A tese de Prout foi abandonada poucos anos depois de proposta, ao se constatar a existência de vários elementos cujas massas molares não são múltiplos inteiros da massa molar do H, como o cloro (massa molar 35.45 g). Hoje se sabe que essa divergência é devida à existência de isótopos, i.e. variantes de um mesmo elemento com massas diferentes. A massa de cada isótopo obedece, em boa aproximação, a relação notada por Prout, mas a massa molar do elemento é a média das massas dos diferentes isótopos, ponderada por suas abundâncias, podendo portanto resultar em valores fracionários de massa. No entanto, a existência de isótopos de um mesmo elemento era desconhecida no século XIX, e a hipótese de Prout acabou não vingando, até ser revivida por Rutherford. . Prout designou de prótil esse elemento primordial, enquanto Rutherford chamou de próton o núcleo de H (ambas palavras advindas do grego antigo protos, que significa primeiro).

A partir dessa descoberta de Rutherford, o átomo passou a ser visto como constituído de prótons e elétrons. Como a massa do elétron é 1800 vezes menor que a do próton, sua contribuição à massa atômica é desprezível, de modo que se supunha que toda a massa fosse devida ao número de prótons no núcleo. Assim, um núcleo com número de massa A (i.e. cuja massa é A vezes a massa do H) era suposto composto de A prótons. Mas, como explicar a observação de que a carga de um núcleo é quase sempre menor do que a carga de A prótons? Para isso, supunha-se que, além dos elétrons da eletrosfera, havia também elétrons no interior do núcleo, tal que um núcleo de massa A e carga Z (em unidades da massa e carga do núcleo de H) era visto como composto de A prótons e A-Z elétrons. Por um lado, a existência de elétrons nucleares era uma hipótese bem-vinda, pois ajudava a explicar decaimentos radioativos que eram acompanhados pela emissão de elétrons – chamados decaimentos do tipo β, discutidos abaixo na seção 2.9.2 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. . Por outro lado, a existência de elétrons no interior do núcleo atômico engendra várias contradições com resultados experimentais. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg assegura que um elétron confinado em uma região de raio r10-14m teria uma energia cinética da ordem de 20MeV, muito acima da energia típica dos elétrons emitidos em decaimentos β, da ordem de 1 a 5 MeV. Ademais, medições do momento angular e momento magnético do núcleo de nitrogênio-14 indicam que ele deve ser constituído de um número par de partículas7 7 Experimentos apontam que o 14N tem momento angular inteiro (em unidades de ℏ), ao passo que o momento angular intrínseco de prótons e elétrons é semi-inteiro, igual a ℏ/2. O soma de um número ímpar de momentos angulares semi-inteiros é, também, semi-inteiro. Portanto, o 14N deve ser constituído de um número par de prótons e elétrons. , em contradição com a expectativa de 14 prótons + 7 elétrons.

Essas contradições foram resolvidas em 1932, quando James Chadwick demonstrou experimentalmente a existência do nêutron: partícula eletricamente neutra com massa muito semelhante à do próton. Assim, estabeleceu-se que um núcleo de carga Z e massa A é composto de Z prótons e A-Z nêutrons. Um núcleo de nitrogênio-14 é, portanto, constituído de 7 prótons + 7 nêutrons, totalizando um número par de constituintes, como requerido pelos experimentos. No ano seguinte, em 1933, Enrico Fermi explicou o decaimento β sob essa nova perspectiva: o elétron emitido não existia anteriormente no núcleo, mas surgiu do decaimento de um nêutron em um próton e um elétron – uma perspectiva revolucionária de transmutação de partículas que inaugurou uma nova era na Física de Altas Energias.

A descoberta dos nêutrons também possibilitou uma explicação simples à existência de isótopos. A natureza de um elemento é definida pelo número de prótons que existem no núcleo – i.e. pela sua carga elétrica –, pois é isso que define a quantidade de elétrons na eletrosfera, e portanto determina as suas possibilidades de ligações químicas, que nada mais são do que reminiscências da interação eletromagnética. Por outro lado, a massa do elemento é determinada pela quantidade de prótons e nêutrons no núcleo. Portanto é possível que um mesmo elemento possua variantes com diferentes massas, dada pela diferença no número de nêutrons no núcleo.

Prótons e nêutrons são coletivamente denominados núcleons , i.e. partículas do núcleo.

2.3. O raio nuclear

Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões 10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α.

Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] (veja a ref. [20[20] E.S. Lopes, E o elétron? É onda ou é partícula? – Uma proposta para promover a ocorrência da alfabetização científica de física moderna e contemporânea em estudantes do ensino médio. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2013).] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo.

De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento

(8) λ = h p ,

onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h4.136×10-21MeVs–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação

(9) θ λ D .

A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ500.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, mec20.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c3×108m/s, e vale a relação E=pc. O comprimento de onda é então λ=hc/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que

(10) D 3 fm ,

Figura 8:
No experimento de Ehrenberg et al. [23[23] H.F. Ehrenberg, R. Hofstadter, U. Meyer-Berkhout, D.G. Ravenhall e S.E. Sobottka, Phys. Rev. 113, 666 (1959).], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24[24] K. Krane, Introductory Nuclear Physics (Ed. John Wiley & Sons, Nova Jersey, 1988).], compilado a partir dos resultados de [23[23] H.F. Ehrenberg, R. Hofstadter, U. Meyer-Berkhout, D.G. Ravenhall e S.E. Sobottka, Phys. Rev. 113, 666 (1959).], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular.

com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é 2.47fm [22[22] I. Angeli e K. Marinova, Atomic Data and Nuclear Data Tables 99, 69 (2013).], portanto seu diâmetro é 5fm, não muito distante da estimativa acima.

Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio.

2.4. A força nuclear

2.4.1. Problema da estabilidade do núcleo

Como é possível que o núcleo atômico seja estável, se é composto somente de partículas neutras ou com carga positiva, todas confinadas a uma distância mútua da ordem de 10-15m e, portanto, com os prótons constantemente sujeitos a intensas forças eletrostáticas repulsivas?

Tal questão pode ser proposta à turma como ponto de partida de uma discussão que desemboque na conceituação da força nuclear.

Em um primeiro momento, os estudantes usualmente levantam duas propostas para explicar a estabilidade nuclear:

  • A força gravitacional é atrativa e talvez possa manter o núcleo estável diante da repulsão eletrostática. No entanto – e aqui entra novamente o valor da matemática para corroborar ou excluir hipóteses físicas –, como já discutido na sequência anterior [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).], a interação gravitacional é muito mais fraca do que a eletromagnética, e jamais seria suficiente para equilibrar a repulsão dos prótons. De fato, em um núcleo composto de Z prótons e A-Z nêutrons, cada próton é submetido a uma força repulsiva Fel devido às outras Z-1 cargas positivas, e a uma atração gravitacional Fgrav devido a A-1 prótons e nêutrons, dadas por

    (11) F el k ( Z - 1 ) e 2 r 2 , F grav G ( A - 1 ) m p 2 r 2 ,

    onde supomos que as massas dos prótons e nêutrons são iguais – o que é válido em boa aproximação –, e que a distância média de afastamento entre cada partícula é da mesma ordem de magnitude, r10-15m.

    Substituindo valores numéricos,

    k 8.98 × 10 9 N m 2 / C 2 , G 6.67 × 10 - 11 N m 2 / kg 2 , e 1.6 × 10 - 19 C , m p 1.67 × 10 - 27 kg ,

    vem que a condição de equilíbrio entre essas forças requer

    (12) A - 1 ( Z - 1 ) k e 2 G m p 2 A 10 36 Z ,

    ou seja, seria necessário um número imensamente maior de nêutrons do que de prótons, ao passo que o núcleo mais pesado observado na Natureza – i.e. não produzido artificialmente – é o 92238U, para o qual A2.6Z.

  • Os elétrons na eletrosfera atraem os prótons no núcleo. No entanto, mesmo que houvesse uma tal força efetiva8 8 Como os elétrons estão em órbita em torno do núcleo, em média essa força se anula. , ela tenderia a desestabilizar o núcleo ainda mais, pois atrai os prótons em direção à eletrosfera, para fora do núcleo.

2.4.2. Discussão e levantamento de hipóteses

A conclusão que a turma deve ser capaz de alcançar, nesse momento, é que, com as interações conhecidas até então, não é possível explicar a estabilidade do núcleo atômico. O(a) docente pode, então, estimular os(as) estudantes a discutir soluções para esse impasse, em um ótimo exercício de levantamento de hipóteses.

Note que, nesse exercício, não há respostas erradas. No desenvolvimento histórico-científico, em tais situações de impasse, é comum se propor hipóteses que, embora hoje descartadas, ou até consideradas absurdas, levaram a importantes desenvolvimentos teóricos e experimentais posteriores9 9 Exemplos abundam. Em 1917, ao notar que sua teoria da gravitação previa um Universo em constante contração, portanto dinâmico, Einstein alterou suas equações ad hoc, introduzindo um termo chamado constante cosmológica que levasse à predição de um Universo estático. Alguns anos depois, Hubble mostrou que o Universo está em expansão – e o próprio Einstein afirmou, então, que introduzir esse termo em suas equações foi o maior erro de sua vida profissional. Hoje se sabe, contudo, que essa constante cosmológica, embora proposta a partir de uma suposição incorreta, é considerada essencial para explicar o fato (descoberto posteriormente) de a expansão ser acelerada. Outro exemplo é a relutância de Einstein em aceitar a interpretação de Copenhagen da mecânica quântica, levando-o a postular a existência de “variáveis ocultas”, hipótese que deu origem ao importante teorema de Bell e a vários experimentos que visavam testá-lo. Ainda digno de menção é o impasse relativo à energia dos elétrons emitidos em decaimentos β: a conservação de energia-momento previa que os elétrons fossem emitidos com determinada energia cinética, mas a observação não condizia com a previsão. Niels Bohr chegou a supor que a própria conservação de energia fosse violada em nível quântico – uma hipótese hoje tida como ousada, até absurda –, enquanto Wolfgang Pauli propôs a existência de uma nova partícula que não era detectada no decaimento, e que carregava parte da energia. A hipótese de Pauli foi posteriormente verificada experimentalmente, salvaguardando o princípio da conservação da energia. E nos problemas descritos acima, quanto à existência de elétrons no interior do núcleo de 14N, tampouco faltavam propostas exóticas antes da descoberta dos nêutrons, como a suposição de que elétrons no interior do núcleo não contribuem ao momento angular e momento magnético total do núcleo, por motivos incógnitos. . O importante, nessa atividade, é que os(as) discentes exercitem sua criatividade e capacidade argumentativa na elaboração de suas teses e, indo ainda além, que também se empenhem na elaboração de possíveis maneiras de as testarem experimentalmente.

Por exemplo, um(a) estudante pode propor que a interação eletromagnética é modificada quando as partículas estão a distâncias muito pequenas, da ordem do raio do núcleo atômico, de modo a abrandar a repulsão. Tal hipótese poderia ser testada submetendo-se partículas carregadas à interação com prótons no interior do núcleo, como ocorre no espalhamento de elétrons altamente energéticos, discutido na seção 2.3 2.3. O raio nuclear Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões ≲10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α. Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1] (veja a ref. [20] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo. De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento (8) λ = h p , onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h≈4.136×10-21⁢MeV⋅s–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação (9) θ ∼ λ D . A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ≈50∘≈0.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E≈420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, me⁢c2≈0.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c≈3×108m/s, e vale a relação E=p⁢c. O comprimento de onda é então λ=h⁢c/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que (10) D ∼ 3 ⁢ fm , Figura 8: No experimento de Ehrenberg et al. [23], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24], compilado a partir dos resultados de [23], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular. com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é ≈2.47fm [22], portanto seu diâmetro é ∼5fm, não muito distante da estimativa acima. Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio. acima. O fato de os resultados se conformarem ao esperado para elétrons submetidos à interação coulombiana e ao fenômeno de difração – devido ao caráter ondulatório do feixe de elétrons – atesta contra essa hipótese. Para outros testes da validade da Lei de Coulomb vide ref. [25[25] L.C. Tu e J. Luo, Metrologia 41, S136 (2004).].

Ainda outra hipótese possivelmente levantada seria uma modificação da gravitação nessas escalas de distância. Entretanto, é difícil testar a gravitação nessas situações.

Outra possibilidade é se postular a existência de uma outra interação, que pode ser denominada de força nuclear .

2.4.3. A força nuclear

O(a) docente pode, então, estimular discussões sobre as propriedades que essa nova interação deve possuir para que solucione o problema da estabilidade nuclear sem engendrar outras contradições.

Em primeiro lugar, essa força deve possuir uma componente atrativa, e deve ser mais intensa do que a interação eletromagnética, para superar a repulsão e estabilizar o núcleo.

Além disso, não deve afetar os elétrons na eletrosfera, pois o átomo é bem descrito com base apenas na interação eletromagnética. O experimento de espalhamento de elétrons por prótons, discutido na seção 2.3 2.3. O raio nuclear Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões ≲10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α. Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1] (veja a ref. [20] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo. De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento (8) λ = h p , onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h≈4.136×10-21⁢MeV⋅s–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação (9) θ ∼ λ D . A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ≈50∘≈0.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E≈420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, me⁢c2≈0.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c≈3×108m/s, e vale a relação E=p⁢c. O comprimento de onda é então λ=h⁢c/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que (10) D ∼ 3 ⁢ fm , Figura 8: No experimento de Ehrenberg et al. [23], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24], compilado a partir dos resultados de [23], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular. com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é ≈2.47fm [22], portanto seu diâmetro é ∼5fm, não muito distante da estimativa acima. Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio. , também é muito bem descrito assumindo-se que a interação elétron-próton é inteiramente de natureza eletromagnética. Em outras palavras, não há evidência de que elétrons interajam com prótons ou nêutrons por meio dessa força nuclear.

Ademais, a atuação dessa força se dá apenas a distâncias da ordem do raio nuclear, 1fm. Por exemplo, as forças de ligação intermoleculares são exclusivamente de natureza eletromagnética, sendo desprezível a contribuição de outra forma de interação entre os núcleos dos átomos constituintes10 10 No terceiro artigo desta sequência discutiremos como esse curto alcance da interação nuclear se deve ao fato de a partícula mediadora da interação (o análogo do fóton na interação eletromagnética) ser massiva. .

2.5. Reações nucleares

Consolidando-se entre os(as) discentes o conceito de força nuclear, pode-se enveredar em discussões sobre diversos fenômenos e aplicações associadas à Física Nuclear. Trata-se de um fértil contexto para exploração interdisciplinar em uma abordagem CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) com temáticas como:

  • fissão nuclear e suas aplicações bélicas e pacíficas;

  • fusão nuclear como fonte de energia do Sol, e sua importância para o desenvolvimento da vida na Terra;

  • a formação da maioria dos elementos em processos de fusão no interior das estrelas, e por que “somos poeira das estrelas”;

  • a matriz energética no Brasil e no mundo: diversas fontes de energia e seus impactos ambientais;

  • decaimentos radioativos e aplicações.

2.5.1. Energia de ligação nuclear

Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear.

Figura 9:
Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público.

A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=mc2, garante que a massa de um nuclídeo11 A palavra “núcleo” sempre requer um predicado – núcleo do quê? –, de modo que seu uso já pressupõe a existência de um outro objeto maior, como o átomo, do qual esse “núcleo” constitui apenas a parte central. No entanto, em Física Nuclear, lidamos com esses entes – prótons e nêutrons ligados por uma força nuclear – à parte de qualquer contexto atômico, em uma situação em que sequer estão circundados por uma eletrosfera. Nesse caso, é comum referir-se a esses objetos como nuclídeos. é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que

(13) m nuc c 2 + E lig = Z m p c 2 + N m n c 2 ,

Figura 10:
Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes.

ou seja,

(14) E lig = ( Z m p + N m n - m nuc ) déficit de massa c 2 .

A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa.

A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades Apêndice A: Propostas de Atividades Seção 2.5 Um bom exercício, tanto para consolidar o conceito de energia de ligação nuclear, quanto para incentivar cálculos simples e com aplicação prática em discussões sobre energia nuclear, é usar a Figura 11 para determinar a quantidade de energia liberada em uma determinada reação nuclear. Por exemplo, conforme discutido na seção 2.7.3, uma das principais reações que poderiam ser usadas na geração de energia nuclear por fusão é a produção de hélio-4 por fusão de um deutério e um trítio, (24) H 2 + 3 H → 4 He + n + E liberada . A energia liberada é dada pela diferença entre a energia de repouso dos reagentes e do produto, (25) E liberada = ( m H 2 + m H 3 - m He 4 - m n ) ⁢ c 2 . Mas, pela equação (13), a massa do nuclídeo é a diferença da massa dos seus constituintes e de sua energia de ligação, (26) m H 2 ⁢ c 2 = ( m p + m n ) c 2 - E ( 2 H ) , m H 3 ⁢ c 2 = ( m p + 2 m n ) c 2 - E ( 3 H ) , m He 4 ⁢ c 2 = ( 2 m p + 2 m n ) c 2 - E ( 4 He ) , de modo que (27) E liberada = E ( 4 He ) - E ( 2 H ) - E ( 3 H ) . Os valores das energias de ligação podem ser lidos da Figura 11, lembrando que a figura dá a energia de ligação por núcleon. Dessa figura podemos ver que (28) E ( 4 He ) 4 ≈ 7.1 ⁢ MeV , E ( 3 H ) 3 ≈ 2.8 ⁢ MeV , E ( 2 H ) 2 ≈ 1.1 ⁢ MeV , resultando em Eliberada ≈17.8⁢MeV para cada reação, um valor muito próximo a ≈17.59⁢MeV calculado com valores tabelados para as energias de ligação. Da mesma forma é possível estimar, da Figura 11, a quantidade de energia liberada em uma fissão de U235. Para esse nuclídeo tem-se, da figura, (29) E ( 235 U ) 235 ≈ 7.6 ⁢ MeV . Essa fissão não ocorre sempre da mesma maneira, ou seja, o par de nuclídeos resultantes de uma fissão varia a cada vez que for realizada (vide Figura 15)49. Mas podemos estimar a energia liberada em média, supondo que o resultado serão dois nuclídeos idênticos, com número de massa ≈118. Da figura vê-se que a energia de ligação média para tal nuclídeo é ≈8.5⁢MeV, então Eliberada ≈235×(8.5-7.6)⁢MeV≈211⁢MeV. Seção 2.9 De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [10], uma habilidade que se almeja desenvolver com os estudantes no âmbito das ciências exatas é a análise e interpretação de dados em gráficos. Para esse propósito, uma atividade com base na Figura 20 mostra-se apropriada. A figura é simples, mas possui uma riqueza de informações que o(a) docente pode explorar em inúmeras atividades, que também servem para consolidar o conceito e os tipos de decaimentos nucleares. Algumas das questões que podem ser discutidas com base nesse gráfico são: Por que o “vale de estabilidade”, mostrado nos pontos pretos, desvia da curva Z=N? E por que esse desvio é tanto maior, quanto maior for o número de massa dos nuclídeos (i.e. quanto mais à direita do gráfico o nuclídeo estiver)? A resposta, como já discutido no corpo principal do texto (ver seção 2.9), é que nuclídeos mais pesados precisam de um ligeiro excesso de nêutrons sobre prótons, para que a atração nuclear compense a repulsão coulombiana. Por que a maioria dos pontos acima do vale de estabilidade são azuis (decaem por β-) e os pontos abaixo são, em sua maioria, laranjas (decaem por β+)? Pontos acima da curva de estabilidade possuem um excesso de nêutrons sobre prótons. O decaimento β- alivia esse excesso ao converter um nêutron em um próton. O oposto ocorre abaixo da curva, em que β+ converte um próton em um nêutron. Por que os pontos amarelos se tornam predominantes para nuclídeos muito pesados? Nesses casos a estabilidade do nuclídeo é prejudicada tanto pela repulsão coulombiana, quanto pelo tamanho do nuclídeo, que faz com que os núcleons estejam mutuamente afastados (em média), o que reduz a energia de ligação média por núcleon. O decaimento α resolve esses dois problemas simultaneamente, pois reduz o número de prótons e o número de massa (e portanto o raio do nuclídeo). A maior parte dos decaimentos α ocorre para nuclídeos mais pesados que o Pb126 (o último nuclídeo estável), ou para nuclídeos muito à direita do vale de estabilidade (ou seja, com muito mais prótons do que seria a quantidade ótima para a estabilidade). Contudo, existem alguns pontos amarelos na Figura 20 que estão bastante próximos do vale de estabilidade, ou até mesmo bem no meio desse vale. Por exemplo, o neodímio-144, Nd 60144, aparece na figura como um ponto amarelo bem em meio a pontos pretos que denotam outros isótopos estáveis do mesmo elemento. Por que isso ocorre? Se o Nd144 decair por emissão de α, transformar-se-á no cério-140, que possui 58 prótons e 82 nêutrons. O número “82” é um dos chamados números mágicos na física nuclear (por isso aparecem na Figura 20 como linhas verticais e horizontais), porque um nuclídeo que possui 82 prótons (como o chumbo) ou 82 nêutrons (como o cério-140 já citado) é excepcionalmente estável. Isso porque uma das camadas nucleares fica totalmente preenchida com esse número de núcleons (analogamente ao que ocorre com os gases nobres, que são quimicamente estáveis porque possuem uma camada eletrônica totalmente preenchida). Assim, é mais vantajoso ao Nd144 decair por α para chegar a esse estado mais estável. Note que o mesmo não acontece para o Nd145 ou Nd143. Nesses casos o decaimento αnão levaria a uma configuração com número mágico de nêutrons, e por isso esses decaimentos não são favorecidos, e esses nuclídeos são estáveis, como se vê na figura. Vários outros pontos amarelos na vizinhança da curva de estabilidade levam a uma sequência de decaimentos que resulta, ao final, em um nuclídeo com número mágico de nêutrons. Para ver isso, basta notar que, se um ponto amarelo da figura decair por α, o nuclídeo-filha estará dois pontos à esquerda e dois pontos abaixo da posição inicial. Seguindo-se a linha de decaimentos, vê-se que, para vários deles, a sequência termina na curva de estabilidade após um único decaimento (o que faz com que o decaimento α seja mais vantajoso que outra forma de decaimento), ou segue uma sequência de decaimentos que termina em um nuclídeo com 82 nêutrons. Vide, por exemplo, o caso Dy 66 154 ⟶ α 64 150 Gd ⟶ α 62 146 Sm ⟶ α 60 142 Nd . O resultado final é estável, com 82 nêutrons. ).

Figura 11:
Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons).

De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é 1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas 1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24[24] K. Krane, Introductory Nuclear Physics (Ed. John Wiley & Sons, Nova Jersey, 1988).].

2.5.2. Saturação da força nuclear

Já foi discutido acima (seção 2.4.3 2.4.3. A força nuclear O(a) docente pode, então, estimular discussões sobre as propriedades que essa nova interação deve possuir para que solucione o problema da estabilidade nuclear sem engendrar outras contradições. Em primeiro lugar, essa força deve possuir uma componente atrativa, e deve ser mais intensa do que a interação eletromagnética, para superar a repulsão e estabilizar o núcleo. Além disso, não deve afetar os elétrons na eletrosfera, pois o átomo é bem descrito com base apenas na interação eletromagnética. O experimento de espalhamento de elétrons por prótons, discutido na seção 2.3, também é muito bem descrito assumindo-se que a interação elétron-próton é inteiramente de natureza eletromagnética. Em outras palavras, não há evidência de que elétrons interajam com prótons ou nêutrons por meio dessa força nuclear. Ademais, a atuação dessa força se dá apenas a distâncias da ordem do raio nuclear, ∼1fm. Por exemplo, as forças de ligação intermoleculares são exclusivamente de natureza eletromagnética, sendo desprezível a contribuição de outra forma de interação entre os núcleos dos átomos constituintes10. ) que a força nuclear deve ter curto alcance, da ordem de 1fm. A Figura 11 oferece outra evidência a favor dessa afirmação.

Para entender por que, considere, primeiro, a energia associada à interação eletrostática entre Z prótons em um nuclídeo. Cada próton, de carga e, é repelido por Z-1 outros prótons, distantes um do outro de r1fm. A contribuição eletrostática à energia por próton é, então,

(15) E Coulomb Z - ( Z - 1 ) k e 2 r ,

ou seja, varia linearmente com o número de prótons no núcleo. O sinal negativo se deve ao fato de a força ser repulsiva, provocando uma redução na energia de ligação por constituir uma tendência natural à desintegração do nuclídeo.

Analogamente, para um nuclídeo com A núcleons existem A(A-1)/2 maneiras de se arranjá-los em pares, de modo que, se supusermos que cada núcleon interage com todos os demais via força nuclear, esperaríamos

(16) E nuclear A ( A - 1 ) ,

ou seja, Enuclear /A cresceria linearmente com o número de núcleons. Analogamente à equação (15), o coeficiente de proporcionalidade é indicativo da intensidade da interação nuclear.

Se olharmos, agora, para a Figura 11, veremos que esse crescimento linear é de fato observado para nuclídeos leves, com A4. Mas a taxa de crescimento – dada pelo coeficiente de proporcionalidade na equação (16) – diminui gradativamente, até que, para nuclídeos mais pesados, com A16, a curva tende a se aplainar em um patamar Eligação /A8MeV, atingindo um máximo para o 56Fe. Ou seja, a hipótese de que cada núcleon interage com todos seus vizinhos deixa de ser obedecida. Dito de outra forma, a intensidade média da interação nuclear atuante sobre cada núcleon diminui com o aumento do nuclídeo: outra evidência sustentando que a interação nuclear é de curto alcance. Disso podemos extrair, ainda, uma estimativa do alcance dessa interação, que deve ser da ordem de magnitude das dimensões nucleares, r1fm, uma vez que, mesmo para núcleons contidos no interior de um nuclídeo, essa interação já deixa de ser eficaz.

Podemos aprofundar ainda mais a análise da Figura 11 para extrair mais informações sobre a interação nuclear. Partindo de um único próton, e acrescentando-lhe nêutrons e outros prótons, nota-se que a energia de ligação por núcleon cresce drasticamente12 12 Interessante notar que ambos 3H e 3He possuem três núcleons, mas a energia de ligação do 3He é ligeiramente inferior, por causa da repulsão eletrostática entre os dois prótons ali presentes. Ou seja, requer-se menos energia para desintegrar o 3He, porque já existe uma força repulsiva contribuindo para isso no interior desse nuclídeo. No entanto, a diferença é de apenas ∼0.25MeV, ou 10% do valor total da energia de ligação desses nuclídeos, indicando que a interação nuclear é muito mais forte do que a eletromagnética – i.e. a maior parte da energia de ligação advém da força nuclear entre prótons e nêutrons, e apenas uma fração bem inferior vem da repulsão eletrostática entre prótons. até atingir um máximo local no 4He, que é um nuclídeo excepcionalmente estável13 13 Não é necessário elaborar, em sala, sobre o motivo dessa estabilidade, mas pensamos ser conveniente discuti-la brevemente aqui, caso surjam perguntas por parte dos(as) estudantes a esse respeito. Há duas maneiras quase equivalentes de se entender essa propriedade do 4He. Assim como os elétrons na eletrosfera, os núcleons também se arranjam em “camadas”, que, quando totalmente preenchidas, produzem nuclídeos altamente estáveis – similar ao mecanismo subjacente à estabilidade química dos gases nobres. A primeira camada nuclear comporta 2 partículas, mas prótons e nêutrons ocupam camadas distintas. Portanto o 4He é o primeiro nuclídeo para o qual há o preenchimento completo de uma camada tanto por parte dos prótons quanto dos nêutrons. Alternativamente, pode-se alegar que a interação nuclear é mais intensa quando: (i) tanto prótons quanto nêutrons estão emparelhados; (ii) há simetria entre número de prótons e nêutrons; (iii) o nuclídeo contém poucos núcleons, que portanto estão a uma curta distância e interagem fortemente entre si. .

Se acrescentamos ao 4He um próton e um nêutron, formando 6Li, a energia de ligação total aumenta – porque um maior número de núcleons implica em mais possibilidades de mútuas interações –, mas a energia média por núcleon diminui. É como se alguns dos núcleons de 6Li se aglomerassem em uma combinação altamente interagente de 2 prótons e 2 nêutrons, enquanto o próton e o nêutron adicionais, desemparelhados, interagissem com menor intensidade, reduzindo a energia de ligação média. Se seguirmos acrescentando núcleons, os prótons e nêutrons extras vão se emparelhando, provocando um aumento de Eligação /A. Mas esse crescimento ocorre a uma taxa inferior àquela entre 1H e 4He – a média da mútua interação entre os núcleons já é menor, devido à maior distância entre eles. Essa segunda reta de crescimento na Figura 11 culmina no 12C, um outro nuclídeo excepcionalmente estável por ser composto de um aglomerado14 14 O 8Be, composto de 24He, é instável, decaindo via Be8→2⁢α. O motivo é que, precisamente porque o 4He é tão estável, é mais energeticamente favorável manter dois 4He isolados do que ligados, enfrentando a repulsão eletrostática entre ambos. A instabilidade do 8Be desfavorece o decaimento C12→8Be+α, e o decaimento em 3⁢α simultaneamente é altamente improvável, o que faz com que o 12C seja altamente estável. de 34He. Analogamente, o 16O pode ser visto como um aglomerado de 44He e possui, também, grande energia de ligação por núcleon15 15 O 16O também corresponde ao nuclídeo em que os prótons e os nêutrons preenchem a segunda camada nuclear, e também por isso é bastante estável. .

Como já discutido nesta mesma subseção, à medida que o nuclídeo aumenta de tamanho, núcleons diametralmente opostos deixam de interagir um com o outro pela força nuclear – devido ao curto alcance dessa interação –, e o acréscimo de novos núcleons tende a aumentar cada vez menos a energia de ligação média de cada núcleon. Fala-se, então, da saturação da força nuclear, que é outra forma de expressar o curto alcance dessa interação.

Acontece que, quanto maior o nuclídeo, maior é seu número de prótons16 16 Um nuclídeo estável tende a ter aproximadamente o mesmo número de nêutrons que de prótons, mais especificamente N≈1.0-1.6Z. , e embora a interação nuclear tenda a saturar, a repulsão coulombiana continua atuante entre todos os prótons, contribuindo negativamente à energia de ligação, conforme a equação (15). É por isso que, a partir do ferro-56, a curva da Figura 11 apresenta uma inflexão, tornando-se decrescente.

2.6. Fissão nuclear

Devido ao comportamento decrescente da curva da Figura 11 para nuclídeos pesados, processos que ocasionam uma redução do tamanho do nuclídeo são energeticamente favorecidos.

Considere, por exemplo, um processo em que um nuclídeo pesado, como o urânio-235, se divide em dois nuclídeos mais leves após absorver um nêutron, como ilustrado na Figura 13. Esse tipo de processo é denominado fissão nuclear. Como os produtos da reação são nuclídeos menores – o que aumenta a interação nuclear entre núcleons – e possuem menos prótons – reduzindo a repulsão coulombiana –, eles são mais estáveis, com maior energia de ligação média por núcleon, como se nota pela Figura 11. Por ocorrer uma variação da energia potencial dos núcleons na reação, deve haver uma correspondente liberação de energia durante o processo, para que a energia total se conserve. Outra maneira de se entender isso é notando que, quanto maior a energia de ligação, menor é a massa total do nuclídeo, de acordo com a equação (14). Portanto, a formação de nuclídeos mais estáveis está associada à redução da energia do sistema em forma de massa17 17 Em uma reação de fissão, como a ilustrada na Figura 13, o número de prótons e nêutrons se conserva, e a diferença entre a massa dos reagentes e dos produtos é inteiramente devida à diferença das energias de ligação, ( m reagentes - m produtos ) c 2 = E ( 92 Kr ) + E ( 141 Ba ) - E ( 235 U ) > 0 . Como a energia total se conserva, deve-se ter m reagentes ⁢ c 2 = m produto ⁢ c 2 + E liberada . , e a diferença constitui-se em energia liberada em outras formas, como radiação ou energia cinética dos fragmentos (ou seja, calor). Este é o princípio fundamental subjacente à geração de energia por fissão nuclear.

Figura 12:
As forças atuantes sobre os núcleons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26[26] Chemistry LibreTexts, General Chemistry, Ch. 24: Nuclear Chemistry, disponível em https://chem.libretexts.org/Courses/Howard_University/General_Chemistry%3A_An_Atoms_First_Approach/Unit_8%3A__Materials/Chapter_24%3A_Nuclear_Chemistry, acesso em 21/06/2023.
https://chem.libretexts.org/Courses/Howa...
], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27[27] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Non-Commercial-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-NC-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].
Figura 13:
Fissão de 235U induzida pela captura de um nêutron termal. O nêutron incide com baixa energia cinética, 0.02eV, e é absorvido, resultando em um nuclídeo de U236, que é instável e se fissiona em dois nuclídeos mais leves. Neste caso o produto da reação inclui, ainda, três nêutrons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26[26] Chemistry LibreTexts, General Chemistry, Ch. 24: Nuclear Chemistry, disponível em https://chem.libretexts.org/Courses/Howard_University/General_Chemistry%3A_An_Atoms_First_Approach/Unit_8%3A__Materials/Chapter_24%3A_Nuclear_Chemistry, acesso em 21/06/2023.
https://chem.libretexts.org/Courses/Howa...
], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27[27] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Non-Commercial-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-NC-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

Mas há um detalhe a mais que merece ser discutido. Em reações de fissão induzidas por capturas de nêutrons, é comum que haja liberação de dois ou mais nêutrons no produto final, como ilustra a Figura 13. Esses novos nêutrons podem colidir com outros nuclídeos de 235U e induzir outras reações, liberando mais nêutrons, e assim sucessivamente, resultando em uma reação autossustentável, como ilustrado na Figura 14.

Figura 14:
Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público.

Ocorre que 99.3% do urânio encontrado na natureza está na forma do isótopo 238U, que não é facilmente fissionável, e apenas cerca de 0.7% é 235U. Para otimizar a quantidade de energia liberada e garantir a autossustentabilidade da cadeia de reações, é desejável que o material tenha uma concentração muito maior de 235U, de modo a aumentar a probabilidade de que os nêutrons emergentes em cada etapa de fissão encontrem outros nuclídeos desse isótopo. A esses processos que visam aumentar a concentração de 235U dá-se o nome de enriquecimento de urânio.

Diferentes propósitos requerem diferentes níveis de enriquecimento. Para a extração de energia nuclear, uma concentração de 3% de 235U já é suficiente [24[24] K. Krane, Introductory Nuclear Physics (Ed. John Wiley & Sons, Nova Jersey, 1988).]. Isso porque, nesse caso, não se é sequer desejável que todos os nêutrons resultantes de uma reação se encontrem com outro nuclídeo de 235U e provoquem outras fissões, pois isso provocaria um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada. Ao contrário, uma parte essencial no desenho de um reator nuclear são as chamadas barras de controle, constituídas de materiais altamente eficientes na absorção de nêutrons – como boro ou ligas de metais de terra rara –, justamente para que os nêutrons em excesso sejam capturados, como representado pelos “X” na Figura 14, permitindo que o operador da usina mantenha controle sobre a quantidade de energia extraída. Ainda outro elemento importante em um reator é a presença de um material moderador – como água ou carbono na forma de grafite –, que reduz a energia cinética dos nêutros secundários de 1MeV para 0.02eV, o que aumenta a probabilidade de fissão do urânio-23518 18 Há uma categoria de reatores, chamados Fast Neutron Reactors (FNRs) ou reatores de nêutrons rápidos, em que a fissão é promovida por nêutrons rápidos, e não há, portanto, material moderador. O combustível mais comum desse tipo de reator é plutônio-239, que passa por fissão mais facilmente quando colide com nêutrons altamente energéticos. Ademais, parte do 238U pode ser também fissionável por esses nêutrons, enquanto outra parte é capaz de absorvê-los e se converter em 239Pu via subsequentes decaimentos β, n + 238 U → 239 U ⁢ → β 239 ⁢ Np ⁢ → β 239 ⁢ Pu . Assim, FNRs são reatores altamente eficientes porque parte do combustível (plutônio) é gerado colateralmente durante a reação em cadeia a partir do isótopo mais comum de urânio (sem necessidade, portanto, de enriquecimento). Mais ainda, nêutrons rápidos podem induzir fissão de actinídeos, que são subprodutos da fissão de elementos pesados e considerados parte do chamado “lixo nuclear” (a ser discutido logo abaixo, na seção 2.8.3). Ou seja, em FNRs o “lixo nuclear” pode ser reciclado e utilizado como combustível. Infelizmente, FNRs ainda são uma tecnologia cara e pouco incentivada, visto que, dados os custos atuais de mineração e enriquecimento de urânio, é mais barato operar com usinas “tradicionais”, baseadas em nêutrons termais, i.e. lentos, pouco energéticos. Para mais informações vide refs. [28, 29] .

Para propósitos bélicos, o objetivo é a liberação da maior quantidade de energia possível. Nesse caso é preciso uma concentração muito maior de 235U, acima de 85%, para que a maioria dos nêutrons secundários seja absorvida por outro nuclídeo de 235U e induza outra fissão, gerando um crescimento exponencial da energia liberada, como ilustrado na Figura 15. Uma tal reação em cadeia é denominada supercrítica.

Figura 15:
Reação supercrítica de fissão nuclear em cadeia. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15[15] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 4.0 (BY-SA 4.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

2.7. Fusão nuclear e a origem dos elementos

Uma aula sobre fusão nuclear pode ser motivada pela seguinte questão-problema: como foram formados os elementos químicos que nos rodeiam? O(a) docente pode iniciar mostrando à turma o gráfico das abundâncias dos elementos no sistema solar, Figura 16, e pedir que os alunos discutam o comportamento da curva. Quais são suas características mais marcantes? Algum comportamento da curva lhes parece intuitivo? Algum parece contra-intuitivo? Acham estranho que haja um predomínio de hidrogênio e hélio no Universo? Podem oferecer uma explicação ao comportamento oscilatório da curva, i.e. ao fato de que elementos com número atômico par são 10 vezes mais abundantes que os elementos vizinhos, com Z ímpar?

Figura 16:
Abundância relativa de elementos no sistema solar, calculada como o número de átomos do elemento em questão para cada 106 átomos de Si. Dados extraídos da ref. [32[32] K. Lodders, The Astrophysical Journal 591, 1220 (2003).].

Ao instigar os alunos com essa problematização, deve-se esperar respostas que partam de uma perspectiva a-histórica, sugerindo que o Universo sempre teve a constituição que observamos atualmente. O principal propósito dessa aula deve ser desconstruir essa perspectiva, demonstrando que também na Física há historicidade, e que tampouco nas ciências naturais existe um status quo eterno e absoluto, mas que para entendermos a Natureza é preciso compreender os processos que resultaram em sua configuração atual. Mais ainda, a discussão culmina no vislumbre da história humana como apenas um capítulo de uma longa história universal, em que simples partículas elementares se organizam em estruturas cada vez mais complexas – núcleons, nuclídeos, átomos, moléculas, nuvens gasosas e protoestruturas rochosas, estrelas e planetas, moléculas orgânicas autorreplicantes, a vida complexa –, até chegar na gênese do ser humano e na história de nossas culturas. Com isso, o(a) estudante pode contemplar a interconexão entre todas as subáreas em que se divide o conhecimento humano – todas as “matérias” ou “disciplinas” escolares –, ao se enfatizar como cada uma lida com um capítulo específico de uma história universal que as conecta e que tudo abrange.

2.7.1. Nucleossíntese primordial

Para entender a gênese dos elementos sob a perspectiva histórica supracitada, basta introduzir um conceito muito simples, mas que é a base de toda a cosmologia contemporânea: o fato observável de que nosso Universo está em expansão [30[30] S. Dodelson, Modern Cosmology (Ed. Elsevier, Holanda, 2003)., 31[31] A. Liddle, An Introduction to Modern Cosmology (Ed. John Wiley & Sons, Chichester, 2003).]. Uma forte evidência em favor dessa asserção é a observação de que as galáxias distantes estão se afastando de nós. Se o Universo está se expandindo, isso implica que no passado toda sua matéria e energia estavam contidas em uma região muito menor do que ocupam atualmente, o que significa que as temperaturas deviam ser altíssimas – basta lembrar-se que um gás contraído adiabaticamente se aquece. Ou seja, o Universo primordial era muito quente, e à medida que evolui e se expande, ele se resfria.

Altas temperaturas significam alto poder dissociativo, ou seja, quanto maior a temperatura, mais difícil é manter estruturas complexas, pois elas tendem a se dissociar em partes mais elementares. Exemplos são a dissociação da estrutura cristalina de um sólido quando do derretimento do material, e das ligações intermoleculares de um líquido durante a vaporização, bem como a ionização de um gás, que, aquecido a temperaturas suficientemente elevadas, tem os elétrons atômicos dissociados dos núcleos, tornando-se um plasma. Assim, o Universo inicia sua história com matéria e energia em sua forma mais simplificada, mais rudimentar, como simples partículas elementares, e somente à medida que ele se expande e resfria é que estruturas mais complexas começam a se formar.

Mas por que os nuclídeos se formam como estruturas complexas estáveis durante essa história? A resposta vem novamente da Figura 11, especificamente do comportamento crescente da curva para nuclídeos leves. Esse comportamento indica que o processo denominado de fusão nuclear é energeticamente favorecido, em que a fusão de dois nuclídeos mais leves resulta em um mais estável, i.e. com maior energia de ligação, ocorrendo liberação de energia nesse processo. Ou, reciprocamente, a dissociação dessas estruturas não ocorre espontaneamente, mas requer que se forneça energia em quantidade que já não está disponível quando a temperatura do Universo torna-se suficientemente baixa.

Consideremos, então, o Universo nos primeiros segundos de sua história, quando já havia prótons e nêutrons19 19 Além de estarem presentes também outras partículas elementares, como elétrons, fótons, neutrinos, entre outras. , mas ainda não se haviam formado estruturas mais complexas – ou seja, não havia átomos ou sequer núcleos atômicos, e os prótons e nêutrons encontravam-se livres20 20 Já vimos anteriormente que a energia de ligação nuclear é muito maior que a atômica. Por isso, requer-se temperaturas muito maiores para dissociar um nuclídeo do que um átomo. Ou seja, na história de resfriamento do Universo, os nuclídeos formam-se primeiro, já nos primeiros minutos dessa história, e só após ∼380 mil anos a temperatura atinge níveis suficientemente baixos para que os elétrons capturados por esses nuclídeos não sejam mais dissociados, formando assim átomos neutros. . É claro que, nessa situação, suas energias de ligação são nulas, simplesmente por não estarem ligados a nada. Mas à medida que se aproximam o suficiente, entrando no alcance de atuação da interação nuclear, uma força os atrai de modo a formarem um estado ligado: um nuclídeo de 2H, também denominado dêuteron.

Como o processo de formação do dêuteron é espontâneo, há liberação de energia durante a reação. Ou, dito de outra forma: é mais energeticamente custoso manter prótons e nêutrons isolados do que ligados. A energia liberada nada mais é do que a energia de ligação do dêuteron21 21 A Figura 11 mostra que a energia de ligação do 2H por núcleon é aproximadamente 1.1 MeV. Como o dêuteron possui dois núcleons, a energia de ligação total é duas vezes esse valor. , e o processo é descrito por

(17) p + n 2 H + 2.2 MeV,

cuja ilustração seria análoga à Figura 9, porém vista da direita para a esquerda.

Essa reação ocorreu abundantemente quando o Universo tinha apenas poucos minutos de idade, e constitui o primeiro estágio do processo de formação de nuclídeos mais complexos a partir dos prótons e nêutrons que se encontravam inicialmente livres – processo que recebe o nome de nucleossíntese primordial. Esses processos primordiais de fusão nuclear continuam até culminarem na produção de 4He, como exemplificado na cadeia de reações da Figura 17. Esse nuclídeo é tão mais estável que seus vizinhos (i.e. os processos de fusão que lhe dão origem são tão energeticamente favoráveis) que praticamente todos os dêuterons, assim que formados, tendem a continuar se fundindo22 22 Dito de outra forma: todos os nêutrons que se encontravam livres nessa época do Universo primordial terminam ligados em núcleos de hélio. até formar 4He.

Figura 17:
Exemplo de processo de fusão de dêuterons e prótons para formação de 4He. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público.

Nesse ponto, o processo de fusão encontra um gargalo, por não existirem elementos estáveis de números de massa 5 ou 8 – por exemplo, uma eventual fusão de dois 4He produz 8Be, que logo decai novamente em 24He. A cadeia de fusão só pode prosseguir, portanto, passando pela produção de 12C – este, sim, altamente estável –, mas isso demanda um encontro quase simultâneo de 34He, o que é altamente improvável exceto em situações de altíssima densidade de matéria, que não é o caso durante essa época cosmológica.

Um outro fator importante a se considerar, nesse processo, é a elevada energia cinética que as partículas devem possuir23 23 A energia cinética média das partículas em um plasma ou gás está intimamente relacionada à temperatura de tal fluido via ⟨E⟩∼kB⁢T, onde kB≈8.617×10-5⁢eV⋅K-1 é a constante de Boltzmann, uma constante universal da Natureza. Ou seja, pode-se refrasear a condição acima afirmando-se que a fusão é um processo que usualmente requer altas temperaturas. para serem capazes de “superar” a intensa repulsão coulombiana e se aproximarem a uma distância 1fm, de modo a possibilitar a atuação da interação nuclear para promover a fusão. A energia potencial de duas cargas elementares e a uma distância r1fm é24 24 Um resultado dessa ordem de magnitude é esperado, porque: (i) da Figura 11 sabemos que essa é a ordem de grandeza da energia de ligação nuclear, e (ii) sabemos que a repulsão coulombiana entre núcleons é capaz de competir com a atração dos núcleons pela força nuclear, devido à inflexão na curva de energia de ligação para nuclídeos pesados (e também por causa da diferença observável entre as energias de ligações de pares de nuclídeos espelhados, i.e. que possuem mesmo número de massa mas diferentes números de prótons, como o 3H e o 3He). ke2/r1MeV, portanto a energia média das partículas não pode ser muito inferior a esse valor25 25 Note, entretanto, que devido à possibilidade de tunelamento quântico, os nuclídeos podem fusionar mesmo tendo energia ligeiramente menor do que a altura da barreira. . À época da nucleossíntese essa energia média era 0.1MeV [30[30] S. Dodelson, Modern Cosmology (Ed. Elsevier, Holanda, 2003).], o que corresponde a temperaturas da ordem de 1 bilhão de kelvins (!), muito acima da temperatura média do Universo atualmente, 3K.

Considerando-se todos os fatores acima, estima-se que, após concluída essa época de nucleossíntese primordial, cerca de 75% da massa do Universo encontrava-se na forma de prótons livres (i.e. 1H) e 25% era 4He, com 0.01% de deutério (2H) e 3He, e apenas traços de 7Li [24[24] K. Krane, Introductory Nuclear Physics (Ed. John Wiley & Sons, Nova Jersey, 1988)., 30[30] S. Dodelson, Modern Cosmology (Ed. Elsevier, Holanda, 2003).]. O excelente acordo entre essas previsões teóricas e as abundâncias observadas no meio interestelar constitui uma das mais robustas evidências de que o Universo já passou por uma fase extremamente quente, como prevê a teoria do Big Bang.

2.7.2. Nucleossíntese estelar

Mas como foram formados os elementos mais pesados? Os pré-requisitos listados acima, de altíssimas densidades e temperaturas, são satisfeitos no interior de estrelas supermassivas, como as chamadas gigantes vermelhas. Para entender um pouco esse processo, vale discutir brevemente sobre o ciclo de vida dessas estrelas.

O início da vida de uma estrela se dá quando um aglomerado de gases primordiais, constituído essencialmente de hidrogênio e hélio, em abundância não muito diferente daquelas resultantes da nucleossíntese primordial, colapsa devido à sua própria atração gravitacional. À medida que o gás é comprimido, sua temperatura aumenta, até que, eventualmente, torna-se alta o suficiente para ativar a fusão de hidrogênio em deutério26 26 Note que a formação de deutério no interior de estrelas não advém da captura de nêutrons livres, como descrito acima para a nucleossíntese primordial – pois nêutrons são escassos no meio estelar –, mas da fusão de dois prótons seguida de um decaimento do tipo β, i.e. p + p → 2 H + e + + ν e . O processo de decaimento de um próton em um nêutron (um decaimento β) é ditado pela interação fraca, e não pela força nuclear. Por isso, não entraremos em maiores detalhes neste artigo (ver seção 2.9), mas em trabalhos futuros sobre outras partes desta sequência didática. , e, em última instância, hélio, segundo a Figura 17. Essas reações predominam no primeiro estágio de vida estelar – como é o caso do Sol –, e delas decorre liberação de energia na forma de radiação (assim como toda fusão de elementos com A56). É da fusão nuclear que as estrelas obtêm sua energia – é por isso que elas têm “brilho próprio”. Mais ainda, a pressão dessa radiação contrabalanceia o colapso gravitacional da estrela e a mantém em equilíbrio.

O segundo estágio da vida estelar se inicia com o esgotamento do hidrogênio no núcleo. Os processos de fusão são temporariamente interrompidos, e, sem a pressão de radiação, o núcleo volta a colapsar gravitacionalmente. Isso faz com que suas temperatura e densidade aumentem novamente, até atingir um patamar que ativa a fusão de hélio. Quando a densidade de hélio-4 é suficientemente alta, ocorre fusão em 8Be e, antes que esse decaia, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao berílio, produzindo 12C, conforme ilustrado na Figura 18. Uma vez superado o gargalo causado pela instabilidade do berílio, outras absorções de 4He podem ocorrer, formando uma série de elementos mais pesados como

C 12 He 4 16 O He 4 20 Ne He 4 Mg 24

Figura 18:
Dois nuclídeos de 4He se fundem e formam 8Be, que é instável e decai após cerca de 10-16s. No entanto, no interior de estrelas muito massivas, a densidade de matéria pode ser tão alta que, antes de decorrido esse tempo, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao 8Be, produzindo 12C. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15[15] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 4.0 (BY-SA 4.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

Entretanto, à medida que se progride nessa cadeia, há um aumento do número de prótons nos nuclídeos envolvidos e, consequentemente, cresce a repulsão coulombiana, de modo que são necessárias temperaturas cada vez maiores (ou seja, estrelas mais massivas) para continuar a fusão.

Há, ainda, outros processos nucleares, como a absorção de prótons por nuclídeos pesados, decaimentos β, e emissões de prótons e nêutrons, que dão origem a outros isótopos e elementos de número atômico ímpar, como o nitrogênio. No entanto, são processos secundários relativamente à cadeia de fusão descrita acima, e portanto espera-se que a abundância de elementos com número atômico par seja relativamente maior do que para Z ímpar.

Essa predição é confirmada pela Figura 16. A abundância de elementos com número atômico par é pelo menos uma ordem de magnitude maior do que para Z ímpar. Note, também, a abundância excepcionalmente grande de ferro (e também de níquel), devido ao fato de serem elementos finais nas cadeias de fusão, após os quais a fusão deixa de ser exotérmica, i.e. deixa de liberar energia (vide Figura 11).

Quando, após essa sequência de fusões, o núcleo de uma estrela supermassiva passa a ser constituído majoritariamente de ferro e níquel (i.e. elementos com A56, que estão no ápice da curva da Figura 11), os processos de fusão são interrompidos, por não serem mais energeticamente favoráveis, e portanto não há mais energia liberada em radiação. O núcleo colapsa sob sua própria gravidade, a densidade aumenta drasticamente, até formar um buraco negro – se a massa for suficientemente grande para isso – ou uma explosão de supernova, em que a maior parte do material estelar é ejetado, restando somente uma estrela de nêutrons27 27 Durante o colapso do núcleo a densidade fica tão grande que há várias absorções de elétrons por parte dos prótons, que são convertidos em nêutrons. Muitos desses nêutrons são ejetados durante a explosão, e outros permanecem na região do núcleo que sobra, formando um objeto astrofísico denominado estrela de nêutrons. . A energia liberada nessa imensa explosão é parcialmente utilizada para realizar fusões posteriores (que são reações endotérmicas), resultando na formação de elementos mais pesados que A56 através da absorção de vários nêutrons, que posteriormente sofrem decaimento do tipo β e são convertidos em prótons, originando elementos de elevado número atômico. No entanto, supernovas são objetos bastante mais raros no Universo atual do que estrelas massivas ativas, e a abundância de elementos muito pesados é, por isso, comparativamente muito menor. Na Figura 16 consta apenas a soma de todas essas abundâncias.

A explosão de uma supernova é também o mecanismo pelo qual os elementos pesados, inicialmente produzidos no interior de estrelas, são lançados ao espaço. A poeira dessa explosão eventualmente se condensa, atraída pela sua própria força gravitacional, e pode vir a formar um novo sistema estelar, como o nosso. Tudo o que é formado de elementos mais pesados do que o hélio foi gerado no interior de uma estrela supermassiva e lançado ao espaço após uma tal explosão de supernova. É por isso que se pode afirmar que somos, todos, poeira de estrelas [2[2] C. Sagan, As ligações cósmicas: uma perspectiva extraterrestre (Ed. Gradiva, Lisboa, 2001).].

2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear

Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24[24] K. Krane, Introductory Nuclear Physics (Ed. John Wiley & Sons, Nova Jersey, 1988).], o que dá 8.2×1010J por grama de combustível28 28 O cálculo é simples, bastando converter 1 eV ≈1.6×10-19J e lembrar que 1 mol de 235U possui ≈6.02×1023 átomos e totaliza uma massa de aproximadamente 235 g. , ao passo que uma fusão deutério-trítio,

(18) H 2 + 3 H 4 He + n + 17.6 MeV ,

libera 3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear.

Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão.

2.8. Energia nuclear: uma aula de CTSA

Toda a discussão anterior culmina em uma oportunidade de se realizar um amplo debate com os(as) estudantes sobre os impactos socioambientais da energia nuclear.

2.8.1. Armas nucleares

Em colaboração com o(a) professor(a) de história de seu centro de ensino, o(a) docente pode discutir o contexto e as consequências do lançamento das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 – até hoje os únicos casos de uso militar de armamentos nucleares na história –, bem como a corrida armamentista subsequente que levou à proliferação desses artefatos, e os atuais acordos e negociações almejando a não-proliferação e o desmantelamento dos mísseis existentes. Imagens ilustrando o poder destrutivo desse tipo de armamentos, incluindo comparações das cidades japonesas atingidas, antes e depois da destruição, podem ser encontradas em [33[33] BBC News, In pictures: Hiroshima, the first atomic bomb, disponível em: https://www.bbc.com/news/in-pictures-33787169, acesso em 21/06/2023.
https://www.bbc.com/news/in-pictures-337...
, 34[34] Nuclear Darkness, Global Climate Change & Nuclear Famine, Hiroshima, disponível em: http://www.nucleardarkness.org/hiroshima/, acesso em 21/06/2023.
http://www.nucleardarkness.org/hiroshima...
, 35[35] I. Dickinson, 33 Photos of the Hiroshima aftermath that reveal the bombing’s true devastation, disponível em: https://allthatsinteresting.com/hiroshima-aftermath-pictures, acesso em 21/06/2023.
https://allthatsinteresting.com/hiroshim...
].

2.8.2. Ciência e Ética

Não é incomum, na história humana, que resultados de pesquisas científicas sejam utilizados para servir fins belicistas ou até mesmo propósitos genocidas. E, embora o senso-comum contemporâneo não hesite em trivialmente atribuir toda a responsabilidade aos políticos, fato é que nenhum desses projetos poderia ser bem sucedido se não fosse pela participação de cientistas extremamente competentes. Por outro lado, essas mesmas linhas de pesquisa frequentemente originam aplicações indiscutivelmente benéficas à humanidade, como aprimoramento de técnicas medicinais e farmacológicas. Nesse contexto, o(a) docente pode levantar uma salutar discussão interdisciplinar com algumas das questões: como a ciência e a sociedade civil poderiam/deveriam lidar com potenciais conflitos éticos advindos de uma determinada pesquisa científica? Como deve se portar o(a) cientista diante desses supostos dilemas? Há situações em que é desejável impor limites à nossa capacidade de exploração científica? Ou seja, existem casos em que a ignorância possa ser mais benéfica do que o conhecimento? Poderia ser essa ignorância um meio eficiente e desejável de se evitar catástrofes humanitárias?

Esse debate não se limita à Física. Atualmente há amplas discussões no meio científico, e na sociedade civil em geral, sobre dilemas éticos envolvendo a engenharia genética, e os limites que se poderia ou se deveria impôr ao desenvolvimento dessas técnicas de manipulação gênica.

Portanto essa atividade ofereceria uma excelente oportunidade de diálogo e interdisciplinaridade envolvendo também os(as) docentes de Filosofia, História, Sociologia e Biologia do centro de ensino em que atua o(a) docente de Física.

2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais

Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia.

  • Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3 2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24], o que dá ∼8.2×1010J por grama de combustível28, ao passo que uma fusão deutério-trítio, (18) H 2 + 3 H → 4 He + n + 17.6 ⁢ MeV , libera ∼3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear. Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão. , que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29[29] I.H. Lacy, Nuclear energy in the 21st century (Ed. Academic Press, Londres, 2007)., 36[36] World Nuclear Association, Heat Values of Various Fuels, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/facts-and-figures/heat-values-of-various-fuels.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29[29] I.H. Lacy, Nuclear energy in the 21st century (Ed. Academic Press, Londres, 2007)., 36[36] World Nuclear Association, Heat Values of Various Fuels, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/facts-and-figures/heat-values-of-various-fuels.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. .

    Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina.

  • A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos.

    O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes.

    Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29 29 Note que, devido ao baixo nível de enriquecimento do urânio usado em reatores, é impossível ocorrer uma explosão similar ao de uma bomba nuclear, mesmo nos acidentes em que a reação escapa de controle. As explosões de reatores, nesses casos, decorrem da elevada pressão de vapor que é produzida em quantidade maior do que a usina foi desenhada para suportar. . Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37[37] World Nuclear Association, Nuclear Power Reactors, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/nuclear-fuel-cycle/nuclear-power-reactors/nuclear-power-reactors.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ].

  • A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos.

    Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38[38] World Nuclear Association, CO2 Implications of Electricity Generation, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/energy-and-the-environment/co2-implications-of-electricity-generation.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39[39] H. Ritchie e M. Roser, CO2 and greenhouse gas emissions, disponível em: https://ourworldindata.org/co2-and-other-greenhouse-gas-emissions, acesso em 21/06/2023.
    https://ourworldindata.org/co2-and-other...
    ]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40[40] K. Menyah e Y.W. Rufael, Energy Policy 38, 2911 (2010)., 41[41] N. Apergis, J.E. Payne, K. Menyah e Y.W. Rufael, Ecological Economics 69, 2255 (2010).].

    Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42[42] H. Ritchie, What are the safest sources of energy?, disponível em: https://ourworldindata.org/safest-sources-of-energy, acesso em 21/06/2023.
    https://ourworldindata.org/safest-source...
    ].

    Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43[43] M. Hvistendahl, Coal Ash Is More Radioactive Than Nuclear Waste, disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/coal-ash-is-more-radioactive-than-nuclear-waste/, acesso em 21/06/2023.
    https://www.scientificamerican.com/artic...
    ].

    Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção.

  • O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44[44] World Nuclear Association, Radioactive Waste – Myths and Realities, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/nuclear-fuel-cycle/nuclear-wastes/radioactive-wastes-myths-and-realities.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45[45] P.W. Beck, Annual Review of Energy and the Environment 24, 113 (1999).].

  • Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 30 Os números exatos podem variar muito, a depender da região geográfica em que se encontra a usina em questão. mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46[46] J. Macknick, R. Newmark, G. Heath e K.C. Hallet, Environmental Research Letters 7, 045802 (2012).].

  • Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15.

    Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47[47] World Nuclear Association, Chernobyl Accident 1986, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/safety-and-security/safety-of-plants/chernobyl-accident.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ].

    O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48[48] World Nuclear Association, Fukushima Daiichi Accident, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/safety-and-security/safety-of-plants/fukushima-daiichi-accident.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    ]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados.

    A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6 2.6. Fissão nuclear Devido ao comportamento decrescente da curva da Figura 11 para nuclídeos pesados, processos que ocasionam uma redução do tamanho do nuclídeo são energeticamente favorecidos. Considere, por exemplo, um processo em que um nuclídeo pesado, como o urânio-235, se divide em dois nuclídeos mais leves após absorver um nêutron, como ilustrado na Figura 13. Esse tipo de processo é denominado fissão nuclear. Como os produtos da reação são nuclídeos menores – o que aumenta a interação nuclear entre núcleons – e possuem menos prótons – reduzindo a repulsão coulombiana –, eles são mais estáveis, com maior energia de ligação média por núcleon, como se nota pela Figura 11. Por ocorrer uma variação da energia potencial dos núcleons na reação, deve haver uma correspondente liberação de energia durante o processo, para que a energia total se conserve. Outra maneira de se entender isso é notando que, quanto maior a energia de ligação, menor é a massa total do nuclídeo, de acordo com a equação (14). Portanto, a formação de nuclídeos mais estáveis está associada à redução da energia do sistema em forma de massa17, e a diferença constitui-se em energia liberada em outras formas, como radiação ou energia cinética dos fragmentos (ou seja, calor). Este é o princípio fundamental subjacente à geração de energia por fissão nuclear. Figura 12: As forças atuantes sobre os núcleons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 13: Fissão de 235U induzida pela captura de um nêutron termal. O nêutron incide com baixa energia cinética, ∼0.02eV, e é absorvido, resultando em um nuclídeo de U236, que é instável e se fissiona em dois nuclídeos mais leves. Neste caso o produto da reação inclui, ainda, três nêutrons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Mas há um detalhe a mais que merece ser discutido. Em reações de fissão induzidas por capturas de nêutrons, é comum que haja liberação de dois ou mais nêutrons no produto final, como ilustra a Figura 13. Esses novos nêutrons podem colidir com outros nuclídeos de 235U e induzir outras reações, liberando mais nêutrons, e assim sucessivamente, resultando em uma reação autossustentável, como ilustrado na Figura 14. Figura 14: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Ocorre que 99.3% do urânio encontrado na natureza está na forma do isótopo 238U, que não é facilmente fissionável, e apenas cerca de 0.7% é 235U. Para otimizar a quantidade de energia liberada e garantir a autossustentabilidade da cadeia de reações, é desejável que o material tenha uma concentração muito maior de 235U, de modo a aumentar a probabilidade de que os nêutrons emergentes em cada etapa de fissão encontrem outros nuclídeos desse isótopo. A esses processos que visam aumentar a concentração de 235U dá-se o nome de enriquecimento de urânio. Diferentes propósitos requerem diferentes níveis de enriquecimento. Para a extração de energia nuclear, uma concentração de 3% de 235U já é suficiente [24]. Isso porque, nesse caso, não se é sequer desejável que todos os nêutrons resultantes de uma reação se encontrem com outro nuclídeo de 235U e provoquem outras fissões, pois isso provocaria um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada. Ao contrário, uma parte essencial no desenho de um reator nuclear são as chamadas barras de controle, constituídas de materiais altamente eficientes na absorção de nêutrons – como boro ou ligas de metais de terra rara –, justamente para que os nêutrons em excesso sejam capturados, como representado pelos “X” na Figura 14, permitindo que o operador da usina mantenha controle sobre a quantidade de energia extraída. Ainda outro elemento importante em um reator é a presença de um material moderador – como água ou carbono na forma de grafite –, que reduz a energia cinética dos nêutros secundários de ∼1MeV para ∼0.02eV, o que aumenta a probabilidade de fissão do urânio-23518. Para propósitos bélicos, o objetivo é a liberação da maior quantidade de energia possível. Nesse caso é preciso uma concentração muito maior de 235U, acima de 85%, para que a maioria dos nêutrons secundários seja absorvida por outro nuclídeo de 235U e induza outra fissão, gerando um crescimento exponencial da energia liberada, como ilustrado na Figura 15. Uma tal reação em cadeia é denominada supercrítica. Figura 15: Reação supercrítica de fissão nuclear em cadeia. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. ). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca.

  • Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido.

    Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global.

Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49[49] World Nuclear Association, Information Library, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library.aspx, acesso em 21/06/2023.
https://www.world-nuclear.org/informatio...
]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50[50] E.M. Cardoso. A energia nuclear (Apostila educativa). 3.ed. – Rio de Janeiro: CNEN, 2012. Disponível em: http://antigo.cnen.gov.br/images/cnen/documentos/educativo/apostila-educativa-aplicacoes.pdf, acesso em 21/06/2023.
http://antigo.cnen.gov.br/images/cnen/do...
, 51[51] R.P. de Carvalho e S.M.V. de Oliveira, Aplicações da energia nuclear na saúde, disponível em: https://www.gov.br/cnen/pt-br/material-divulgacao-videos-imagens-publicacoes/publicacoes-1/aplicacoesenergianuclearnasaude.pdf, acesso em 21/06/2023.
https://www.gov.br/cnen/pt-br/material-d...
].

Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52[52] Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-de-conteudos/relatorios-e-indicadores, acesso em 21/06/2023.
https://www.gov.br/aneel/pt-br/centrais-...
] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53[53] Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Anuário Estatístico de Energia Elétrica, disponível em: http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/anuario-estatistico-de-energia-eletrica, acesso em 21/06/2023.
http://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dad...
].

Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais.

2.9. Decaimentos nucleares

Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 31 O efeito é exatamente análogo ao que ocorre para elétrons na eletrosfera atômica. Cada orbital comporta apenas dois elétrons, devido ao princípio da exclusão, desde que estejam com spins desemparelhados. Assim, quanto mais elétrons o átomo possuir, mais externos serão os orbitais por eles ocupados, o que significa que eles são mais facilmente ionizáveis (i.e. possuem menor energia de ligação). Assim como a eletrosfera, o núcleo também possui camadas energéticas, e cada uma comporta dois nêutrons e dois prótons, desde que seus spins estejam desemparelhados. Em nuclídeos mais pesados que o He4, portanto com mais do que 2 prótons e 2 nêutrons, o excesso deve ocupar níveis de energia maiores, como mostrado na Figura 19. está ilustrado na Figura 19.

Figura 19:
Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54[54] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 3.0 (BY-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons.

O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática.

Figura 20:
Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que 150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades Apêndice A: Propostas de Atividades Seção 2.5 Um bom exercício, tanto para consolidar o conceito de energia de ligação nuclear, quanto para incentivar cálculos simples e com aplicação prática em discussões sobre energia nuclear, é usar a Figura 11 para determinar a quantidade de energia liberada em uma determinada reação nuclear. Por exemplo, conforme discutido na seção 2.7.3, uma das principais reações que poderiam ser usadas na geração de energia nuclear por fusão é a produção de hélio-4 por fusão de um deutério e um trítio, (24) H 2 + 3 H → 4 He + n + E liberada . A energia liberada é dada pela diferença entre a energia de repouso dos reagentes e do produto, (25) E liberada = ( m H 2 + m H 3 - m He 4 - m n ) ⁢ c 2 . Mas, pela equação (13), a massa do nuclídeo é a diferença da massa dos seus constituintes e de sua energia de ligação, (26) m H 2 ⁢ c 2 = ( m p + m n ) c 2 - E ( 2 H ) , m H 3 ⁢ c 2 = ( m p + 2 m n ) c 2 - E ( 3 H ) , m He 4 ⁢ c 2 = ( 2 m p + 2 m n ) c 2 - E ( 4 He ) , de modo que (27) E liberada = E ( 4 He ) - E ( 2 H ) - E ( 3 H ) . Os valores das energias de ligação podem ser lidos da Figura 11, lembrando que a figura dá a energia de ligação por núcleon. Dessa figura podemos ver que (28) E ( 4 He ) 4 ≈ 7.1 ⁢ MeV , E ( 3 H ) 3 ≈ 2.8 ⁢ MeV , E ( 2 H ) 2 ≈ 1.1 ⁢ MeV , resultando em Eliberada ≈17.8⁢MeV para cada reação, um valor muito próximo a ≈17.59⁢MeV calculado com valores tabelados para as energias de ligação. Da mesma forma é possível estimar, da Figura 11, a quantidade de energia liberada em uma fissão de U235. Para esse nuclídeo tem-se, da figura, (29) E ( 235 U ) 235 ≈ 7.6 ⁢ MeV . Essa fissão não ocorre sempre da mesma maneira, ou seja, o par de nuclídeos resultantes de uma fissão varia a cada vez que for realizada (vide Figura 15)49. Mas podemos estimar a energia liberada em média, supondo que o resultado serão dois nuclídeos idênticos, com número de massa ≈118. Da figura vê-se que a energia de ligação média para tal nuclídeo é ≈8.5⁢MeV, então Eliberada ≈235×(8.5-7.6)⁢MeV≈211⁢MeV. Seção 2.9 De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [10], uma habilidade que se almeja desenvolver com os estudantes no âmbito das ciências exatas é a análise e interpretação de dados em gráficos. Para esse propósito, uma atividade com base na Figura 20 mostra-se apropriada. A figura é simples, mas possui uma riqueza de informações que o(a) docente pode explorar em inúmeras atividades, que também servem para consolidar o conceito e os tipos de decaimentos nucleares. Algumas das questões que podem ser discutidas com base nesse gráfico são: Por que o “vale de estabilidade”, mostrado nos pontos pretos, desvia da curva Z=N? E por que esse desvio é tanto maior, quanto maior for o número de massa dos nuclídeos (i.e. quanto mais à direita do gráfico o nuclídeo estiver)? A resposta, como já discutido no corpo principal do texto (ver seção 2.9), é que nuclídeos mais pesados precisam de um ligeiro excesso de nêutrons sobre prótons, para que a atração nuclear compense a repulsão coulombiana. Por que a maioria dos pontos acima do vale de estabilidade são azuis (decaem por β-) e os pontos abaixo são, em sua maioria, laranjas (decaem por β+)? Pontos acima da curva de estabilidade possuem um excesso de nêutrons sobre prótons. O decaimento β- alivia esse excesso ao converter um nêutron em um próton. O oposto ocorre abaixo da curva, em que β+ converte um próton em um nêutron. Por que os pontos amarelos se tornam predominantes para nuclídeos muito pesados? Nesses casos a estabilidade do nuclídeo é prejudicada tanto pela repulsão coulombiana, quanto pelo tamanho do nuclídeo, que faz com que os núcleons estejam mutuamente afastados (em média), o que reduz a energia de ligação média por núcleon. O decaimento α resolve esses dois problemas simultaneamente, pois reduz o número de prótons e o número de massa (e portanto o raio do nuclídeo). A maior parte dos decaimentos α ocorre para nuclídeos mais pesados que o Pb126 (o último nuclídeo estável), ou para nuclídeos muito à direita do vale de estabilidade (ou seja, com muito mais prótons do que seria a quantidade ótima para a estabilidade). Contudo, existem alguns pontos amarelos na Figura 20 que estão bastante próximos do vale de estabilidade, ou até mesmo bem no meio desse vale. Por exemplo, o neodímio-144, Nd 60144, aparece na figura como um ponto amarelo bem em meio a pontos pretos que denotam outros isótopos estáveis do mesmo elemento. Por que isso ocorre? Se o Nd144 decair por emissão de α, transformar-se-á no cério-140, que possui 58 prótons e 82 nêutrons. O número “82” é um dos chamados números mágicos na física nuclear (por isso aparecem na Figura 20 como linhas verticais e horizontais), porque um nuclídeo que possui 82 prótons (como o chumbo) ou 82 nêutrons (como o cério-140 já citado) é excepcionalmente estável. Isso porque uma das camadas nucleares fica totalmente preenchida com esse número de núcleons (analogamente ao que ocorre com os gases nobres, que são quimicamente estáveis porque possuem uma camada eletrônica totalmente preenchida). Assim, é mais vantajoso ao Nd144 decair por α para chegar a esse estado mais estável. Note que o mesmo não acontece para o Nd145 ou Nd143. Nesses casos o decaimento αnão levaria a uma configuração com número mágico de nêutrons, e por isso esses decaimentos não são favorecidos, e esses nuclídeos são estáveis, como se vê na figura. Vários outros pontos amarelos na vizinhança da curva de estabilidade levam a uma sequência de decaimentos que resulta, ao final, em um nuclídeo com número mágico de nêutrons. Para ver isso, basta notar que, se um ponto amarelo da figura decair por α, o nuclídeo-filha estará dois pontos à esquerda e dois pontos abaixo da posição inicial. Seguindo-se a linha de decaimentos, vê-se que, para vários deles, a sequência termina na curva de estabilidade após um único decaimento (o que faz com que o decaimento α seja mais vantajoso que outra forma de decaimento), ou segue uma sequência de decaimentos que termina em um nuclídeo com 82 nêutrons. Vide, por exemplo, o caso Dy 66 154 ⟶ α 64 150 Gd ⟶ α 62 146 Sm ⟶ α 60 142 Nd . O resultado final é estável, com 82 nêutrons. . Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54[54] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 3.0 (BY-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55[55] International Atomic Energy Agency, Live Chart of Nuclides, disponível em: https://www-nds.iaea.org/relnsd/vcharthtml/VChartHTML.html, acesso em 21/06/2023.
https://www-nds.iaea.org/relnsd/vchartht...
].

Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo.

Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida.

2.9.1. Decaimento α

O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de 150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α.

Figura 21:
Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26[26] Chemistry LibreTexts, General Chemistry, Ch. 24: Nuclear Chemistry, disponível em https://chem.libretexts.org/Courses/Howard_University/General_Chemistry%3A_An_Atoms_First_Approach/Unit_8%3A__Materials/Chapter_24%3A_Nuclear_Chemistry, acesso em 21/06/2023.
https://chem.libretexts.org/Courses/Howa...
], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27[27] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Non-Commercial-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-NC-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0, acesso em 21/06/2023.
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].

Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32 32 Mais precisamente, o processo envolve o tunelamento quântico de uma partícula α através da barreira produzida pela atração nuclear e a repulsão coulombiana. Ou seja, nesse modelo a partícula α é vista como pré-existente e confinada no interior do nuclídeo, rebatendo em suas “paredes” até eventualmente tunelar. Esses detalhes esclarecem o caráter quântico do fenômeno – não se trata de uma repulsão clássica, até porque o evento é probabilístico. No entanto – e esse é o ponto central dessa série de artigos – a simples compreensão do mecanismo central por trás do decaimento α, como uma disputa entre as interações nuclear e eletrostática, já fundamenta uma compreensão sólida do fenômeno, além de fomentar o uso da intuição física por parte do(a) discente, demonstrando a aplicabilidade de conceitos simples, como a repulsão eletrostática, na compreensão de fenômenos da Física Contemporânea. .

A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade.

Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades Apêndice A: Propostas de Atividades Seção 2.5 Um bom exercício, tanto para consolidar o conceito de energia de ligação nuclear, quanto para incentivar cálculos simples e com aplicação prática em discussões sobre energia nuclear, é usar a Figura 11 para determinar a quantidade de energia liberada em uma determinada reação nuclear. Por exemplo, conforme discutido na seção 2.7.3, uma das principais reações que poderiam ser usadas na geração de energia nuclear por fusão é a produção de hélio-4 por fusão de um deutério e um trítio, (24) H 2 + 3 H → 4 He + n + E liberada . A energia liberada é dada pela diferença entre a energia de repouso dos reagentes e do produto, (25) E liberada = ( m H 2 + m H 3 - m He 4 - m n ) ⁢ c 2 . Mas, pela equação (13), a massa do nuclídeo é a diferença da massa dos seus constituintes e de sua energia de ligação, (26) m H 2 ⁢ c 2 = ( m p + m n ) c 2 - E ( 2 H ) , m H 3 ⁢ c 2 = ( m p + 2 m n ) c 2 - E ( 3 H ) , m He 4 ⁢ c 2 = ( 2 m p + 2 m n ) c 2 - E ( 4 He ) , de modo que (27) E liberada = E ( 4 He ) - E ( 2 H ) - E ( 3 H ) . Os valores das energias de ligação podem ser lidos da Figura 11, lembrando que a figura dá a energia de ligação por núcleon. Dessa figura podemos ver que (28) E ( 4 He ) 4 ≈ 7.1 ⁢ MeV , E ( 3 H ) 3 ≈ 2.8 ⁢ MeV , E ( 2 H ) 2 ≈ 1.1 ⁢ MeV , resultando em Eliberada ≈17.8⁢MeV para cada reação, um valor muito próximo a ≈17.59⁢MeV calculado com valores tabelados para as energias de ligação. Da mesma forma é possível estimar, da Figura 11, a quantidade de energia liberada em uma fissão de U235. Para esse nuclídeo tem-se, da figura, (29) E ( 235 U ) 235 ≈ 7.6 ⁢ MeV . Essa fissão não ocorre sempre da mesma maneira, ou seja, o par de nuclídeos resultantes de uma fissão varia a cada vez que for realizada (vide Figura 15)49. Mas podemos estimar a energia liberada em média, supondo que o resultado serão dois nuclídeos idênticos, com número de massa ≈118. Da figura vê-se que a energia de ligação média para tal nuclídeo é ≈8.5⁢MeV, então Eliberada ≈235×(8.5-7.6)⁢MeV≈211⁢MeV. Seção 2.9 De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [10], uma habilidade que se almeja desenvolver com os estudantes no âmbito das ciências exatas é a análise e interpretação de dados em gráficos. Para esse propósito, uma atividade com base na Figura 20 mostra-se apropriada. A figura é simples, mas possui uma riqueza de informações que o(a) docente pode explorar em inúmeras atividades, que também servem para consolidar o conceito e os tipos de decaimentos nucleares. Algumas das questões que podem ser discutidas com base nesse gráfico são: Por que o “vale de estabilidade”, mostrado nos pontos pretos, desvia da curva Z=N? E por que esse desvio é tanto maior, quanto maior for o número de massa dos nuclídeos (i.e. quanto mais à direita do gráfico o nuclídeo estiver)? A resposta, como já discutido no corpo principal do texto (ver seção 2.9), é que nuclídeos mais pesados precisam de um ligeiro excesso de nêutrons sobre prótons, para que a atração nuclear compense a repulsão coulombiana. Por que a maioria dos pontos acima do vale de estabilidade são azuis (decaem por β-) e os pontos abaixo são, em sua maioria, laranjas (decaem por β+)? Pontos acima da curva de estabilidade possuem um excesso de nêutrons sobre prótons. O decaimento β- alivia esse excesso ao converter um nêutron em um próton. O oposto ocorre abaixo da curva, em que β+ converte um próton em um nêutron. Por que os pontos amarelos se tornam predominantes para nuclídeos muito pesados? Nesses casos a estabilidade do nuclídeo é prejudicada tanto pela repulsão coulombiana, quanto pelo tamanho do nuclídeo, que faz com que os núcleons estejam mutuamente afastados (em média), o que reduz a energia de ligação média por núcleon. O decaimento α resolve esses dois problemas simultaneamente, pois reduz o número de prótons e o número de massa (e portanto o raio do nuclídeo). A maior parte dos decaimentos α ocorre para nuclídeos mais pesados que o Pb126 (o último nuclídeo estável), ou para nuclídeos muito à direita do vale de estabilidade (ou seja, com muito mais prótons do que seria a quantidade ótima para a estabilidade). Contudo, existem alguns pontos amarelos na Figura 20 que estão bastante próximos do vale de estabilidade, ou até mesmo bem no meio desse vale. Por exemplo, o neodímio-144, Nd 60144, aparece na figura como um ponto amarelo bem em meio a pontos pretos que denotam outros isótopos estáveis do mesmo elemento. Por que isso ocorre? Se o Nd144 decair por emissão de α, transformar-se-á no cério-140, que possui 58 prótons e 82 nêutrons. O número “82” é um dos chamados números mágicos na física nuclear (por isso aparecem na Figura 20 como linhas verticais e horizontais), porque um nuclídeo que possui 82 prótons (como o chumbo) ou 82 nêutrons (como o cério-140 já citado) é excepcionalmente estável. Isso porque uma das camadas nucleares fica totalmente preenchida com esse número de núcleons (analogamente ao que ocorre com os gases nobres, que são quimicamente estáveis porque possuem uma camada eletrônica totalmente preenchida). Assim, é mais vantajoso ao Nd144 decair por α para chegar a esse estado mais estável. Note que o mesmo não acontece para o Nd145 ou Nd143. Nesses casos o decaimento αnão levaria a uma configuração com número mágico de nêutrons, e por isso esses decaimentos não são favorecidos, e esses nuclídeos são estáveis, como se vê na figura. Vários outros pontos amarelos na vizinhança da curva de estabilidade levam a uma sequência de decaimentos que resulta, ao final, em um nuclídeo com número mágico de nêutrons. Para ver isso, basta notar que, se um ponto amarelo da figura decair por α, o nuclídeo-filha estará dois pontos à esquerda e dois pontos abaixo da posição inicial. Seguindo-se a linha de decaimentos, vê-se que, para vários deles, a sequência termina na curva de estabilidade após um único decaimento (o que faz com que o decaimento α seja mais vantajoso que outra forma de decaimento), ou segue uma sequência de decaimentos que termina em um nuclídeo com 82 nêutrons. Vide, por exemplo, o caso Dy 66 154 ⟶ α 64 150 Gd ⟶ α 62 146 Sm ⟶ α 60 142 Nd . O resultado final é estável, com 82 nêutrons. .

Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1 2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino. 2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1, e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r∼10-10m, valor já conhecido na época2. Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Figura 1: (Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público. Entre 1908 e 1913 [12, 13], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143. O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2⁢e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo. Figura 2: Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo. 2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r∼10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Z⁢e, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4, e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a (1) F max = - k ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Figura 3: Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14], adaptado e publicado com autorização do autor. Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é (2) Δ ⁢ K α ≲ - k ⁢ Z ⁢ e 2 r ∼ - 10 - 13 ⁢ m r ⁢ MeV , onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e≈1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k≈9×109⁢J⋅m/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1⁢J=(1.6×10-19)-1eV. A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r∼10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas. O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2⁢r é (3) Δ ⁢ t ≃ 2 ⁢ r v α . Figura 4: Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δ⁢py da componente transversal da velocidade da partícula, dada por (4) F Coulomb = m ⁢ Δ ⁢ v y Δ ⁢ t = k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que (5) sin ⁡ θ = Δ ⁢ v y v ′ ≃ Δ ⁢ v y v α , Figura 5: Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público. onde usamos o fato de que v′≃vα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ≪1 e portanto sin⁡θ≈θ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que (6) θ ≃ k ⁢ 4 ⁢ Z ⁢ e 2 m ⁢ v α 2 ⁢ r ≃ k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 K α ⁢ r ≃ 0.02 o . Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1⁢μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6⁢m/10-10⁢m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩⁢θ≃2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5. De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16], ou seja, efetivamente zero. 2.1.3. O modelo de Rutherford Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado: “Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.” E. Rutherford O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, Δ⁢Kα∼7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r≲10-14m. Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r∼10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5. A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a (7) N ⁢ ( θ ) ∝ 1 K α 2 ⁢ sin 4 ⁡ θ 2 . A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico. Figura 6: Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo. Figura 7: (Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θ∼λ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. 2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico? Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima. Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões: É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura? Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências? E qual é o papel dos modelos teóricos? Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais? Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico? O que é uma teoria científica? O que é ciência? Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza. , tem-se

(19) Po 214 210 Pb + α .

Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada 7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 33 No referencial de repouso do nuclídeo-mãe, o momento inicial é zero, portanto o momento final deve também se anular, ou seja, m filha ⁢ v filha = m α ⁢ v α . Por outro lado, por conservação de energia de repouso + cinética, m mãe ⁢ c 2 = m filha ⁢ c 2 + m filha ⁢ v filha 2 2 + m α ⁢ c 2 + m α ⁢ v α 2 2 , de onde se chega à equação (20). mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é

(20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) E liberada ,

que nesse caso dá Eα7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1 2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino. 2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1, e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r∼10-10m, valor já conhecido na época2. Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Figura 1: (Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público. Entre 1908 e 1913 [12, 13], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143. O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2⁢e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo. Figura 2: Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo. 2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r∼10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Z⁢e, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4, e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a (1) F max = - k ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Figura 3: Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14], adaptado e publicado com autorização do autor. Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é (2) Δ ⁢ K α ≲ - k ⁢ Z ⁢ e 2 r ∼ - 10 - 13 ⁢ m r ⁢ MeV , onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e≈1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k≈9×109⁢J⋅m/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1⁢J=(1.6×10-19)-1eV. A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r∼10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas. O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2⁢r é (3) Δ ⁢ t ≃ 2 ⁢ r v α . Figura 4: Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δ⁢py da componente transversal da velocidade da partícula, dada por (4) F Coulomb = m ⁢ Δ ⁢ v y Δ ⁢ t = k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que (5) sin ⁡ θ = Δ ⁢ v y v ′ ≃ Δ ⁢ v y v α , Figura 5: Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público. onde usamos o fato de que v′≃vα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ≪1 e portanto sin⁡θ≈θ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que (6) θ ≃ k ⁢ 4 ⁢ Z ⁢ e 2 m ⁢ v α 2 ⁢ r ≃ k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 K α ⁢ r ≃ 0.02 o . Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1⁢μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6⁢m/10-10⁢m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩⁢θ≃2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5. De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16], ou seja, efetivamente zero. 2.1.3. O modelo de Rutherford Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado: “Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.” E. Rutherford O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, Δ⁢Kα∼7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r≲10-14m. Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r∼10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5. A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a (7) N ⁢ ( θ ) ∝ 1 K α 2 ⁢ sin 4 ⁡ θ 2 . A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico. Figura 6: Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo. Figura 7: (Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θ∼λ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. 2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico? Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima. Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões: É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura? Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências? E qual é o papel dos modelos teóricos? Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais? Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico? O que é uma teoria científica? O que é ciência? Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza. .

2.9.2. Decaimentos β

Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34 34 Neutrinos e antineutrinos são partículas neutras e com massa muito pequena, desprezível para a maior parte dos efeitos. Essas partículas são tão elusivas que suas descobertas ocorreram décadas após os primeiros estudos sobre radioatividade. A história e as características dessas partículas são importantes na discussão sobre a interação fraca, que será tema de artigo posterior. Por isso, não falaremos muito sobre elas aqui. ),

(21) n p + e - + ν ¯ e ( decaimento β - ) .

Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20).

Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron.

O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja,

(22) p n + e + + ν e (decaimento β + ) .

Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica.

A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).].

Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35 35 Afinal, seria o nêutron composto de um próton + elétron, ou seria o próton composto de um nêutron + pósitron? A resposta não é nenhuma das duas opções: os elétrons e pósitrons não estão previamente presentes dentro desses núcleons. . O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=mc2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série.

2.9.3. Decaimento γ

O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons.

O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares.

A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. , que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos.

Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton.

Figura 22:
Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26[26] Chemistry LibreTexts, General Chemistry, Ch. 24: Nuclear Chemistry, disponível em https://chem.libretexts.org/Courses/Howard_University/General_Chemistry%3A_An_Atoms_First_Approach/Unit_8%3A__Materials/Chapter_24%3A_Nuclear_Chemistry, acesso em 21/06/2023.
https://chem.libretexts.org/Courses/Howa...
], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27[27] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Non-Commercial-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-NC-SA 3.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].
Figura 23:
Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26[26] Chemistry LibreTexts, General Chemistry, Ch. 24: Nuclear Chemistry, disponível em https://chem.libretexts.org/Courses/Howard_University/General_Chemistry%3A_An_Atoms_First_Approach/Unit_8%3A__Materials/Chapter_24%3A_Nuclear_Chemistry, acesso em 21/06/2023.
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].
Figura 24:
Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental.

2.9.4. Outros tipos de decaimentos

Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8 2.8. Energia nuclear: uma aula de CTSA Toda a discussão anterior culmina em uma oportunidade de se realizar um amplo debate com os(as) estudantes sobre os impactos socioambientais da energia nuclear. 2.8.1. Armas nucleares Em colaboração com o(a) professor(a) de história de seu centro de ensino, o(a) docente pode discutir o contexto e as consequências do lançamento das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 – até hoje os únicos casos de uso militar de armamentos nucleares na história –, bem como a corrida armamentista subsequente que levou à proliferação desses artefatos, e os atuais acordos e negociações almejando a não-proliferação e o desmantelamento dos mísseis existentes. Imagens ilustrando o poder destrutivo desse tipo de armamentos, incluindo comparações das cidades japonesas atingidas, antes e depois da destruição, podem ser encontradas em [33, 34, 35]. 2.8.2. Ciência e Ética Não é incomum, na história humana, que resultados de pesquisas científicas sejam utilizados para servir fins belicistas ou até mesmo propósitos genocidas. E, embora o senso-comum contemporâneo não hesite em trivialmente atribuir toda a responsabilidade aos políticos, fato é que nenhum desses projetos poderia ser bem sucedido se não fosse pela participação de cientistas extremamente competentes. Por outro lado, essas mesmas linhas de pesquisa frequentemente originam aplicações indiscutivelmente benéficas à humanidade, como aprimoramento de técnicas medicinais e farmacológicas. Nesse contexto, o(a) docente pode levantar uma salutar discussão interdisciplinar com algumas das questões: como a ciência e a sociedade civil poderiam/deveriam lidar com potenciais conflitos éticos advindos de uma determinada pesquisa científica? Como deve se portar o(a) cientista diante desses supostos dilemas? Há situações em que é desejável impor limites à nossa capacidade de exploração científica? Ou seja, existem casos em que a ignorância possa ser mais benéfica do que o conhecimento? Poderia ser essa ignorância um meio eficiente e desejável de se evitar catástrofes humanitárias? Esse debate não se limita à Física. Atualmente há amplas discussões no meio científico, e na sociedade civil em geral, sobre dilemas éticos envolvendo a engenharia genética, e os limites que se poderia ou se deveria impôr ao desenvolvimento dessas técnicas de manipulação gênica. Portanto essa atividade ofereceria uma excelente oportunidade de diálogo e interdisciplinaridade envolvendo também os(as) docentes de Filosofia, História, Sociologia e Biologia do centro de ensino em que atua o(a) docente de Física. 2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia. Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3, que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29, 36]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29, 36]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1. Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina. A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos. O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes. Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29. Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37]. A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos. Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40, 41]. Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42]. Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43]. Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção. O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45]. Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46]. Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15. Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47]. O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados. A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca. Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido. Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global. Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50, 51]. Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53]. Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais. ).

2.10. Aplicações de decaimentos radioativos

Os decaimentos radioativos descritos acima possuem uma série de aplicações tecnológicas presentes em nosso quotidiano, que possibilitam uma abordagem dessa temática em um contexto CTSA. Faremos aqui alguns apontamentos dessas aplicações, que obviamente não encerrarão o tema.

2.10.1. Datação radioativa

O decaimento radioativo é um processo quântico, portanto probabilístico. Isso significa que é impossível prever o momento exato em que um nuclídeo individual decairá. Mas a taxa de probabilidade de ele decair (i.e. a probabilidade por unidade de tempo) é mensurável, e, com isso, é possível determinar quanto tempo levará, em média, para que metade dos nuclídeos em uma amostra36 36 Lembrando que uma amostra com 1 mol da substância tem cerca de 1023 nuclídeos, que é um número imenso. tenha decaído. A situação é análoga ao do lançamento de uma moeda: se lançarmos uma a cada segundo, é impossível saber qual será o resultado de cada lançamento, mas sabemos que precisaremos esperar aproximadamente 1000 segundos para obtermos 500 caras ou 500 coroas (e essa estimativa é tanto mais precisa, quanto maior o número de lançamentos envolvidos).

Esse tempo para que metade da amostra tenha decaído é chamado de tempo de meia-vida, e cada elemento radioativo possui uma meia-vida característica. Por exemplo, o tempo de meia-vida do carbono-14 é 5730 anos. Isso significa que, se temos inicialmente uma amostra de 1g de 14C, após 5730 anos essa amostra conterá apenas 0.5g desse elemento, e após outros 5730 anos conterá apenas 0.25 g, e assim sucessivamente.

De todo carbono presente na atmosfera terrestre, uma pequena fração37 37 Há aproximadamente 1 átomo de radiocarbono para cada 1 trilhão de átomos de carbono na atmosfera. está na forma de carbono-14, também chamado de radiocarbono. Enquanto um organismo está vivo, respirando e se alimentando (seja realizando fotossíntese, produzindo açúcares a partir de gás carbônico absorvido da atmosfera, seja fazendo parte de uma cadeia alimentar em cuja base estão esses organismos realizadores de fotossíntese), os átomos de carbono de seu corpo são constantemente “reciclados”, substituídos por novos oriundos da atmosfera, e parte desses átomos são do isótopo carbono-14. Isso significa que a concentração de carbono-14 em um organismo vivo é a mesma que na atmosfera. Quando o organismo morre, o carbono-14 deixa de ser reposto, e sua concentração de radiocarbono apenas diminui devido ao decaimento. Assim, se medirmos a concentração38 38 Na verdade não se mede diretamente a concentração de radiocarbono, e sim a quantidade de decaimentos por cada grama de todo o carbono presente na amostra. Como a quantidade de decaimentos é obviamente proporcional à quantidade de átomos presentes, as duas medições são equivalentes. Em um organismo vivo, há cerca de 0.226 decaimentos por segundo e por cada grama de carbono da amostra. Então, se uma amostra tem 0.113 decaimentos por segundo e por grama de carbono, isso significa que o organismo morreu há 5730 anos. de radiocarbono em uma amostra de um organismo que já foi vivo, podemos determinar quanto tempo transcorreu desde sua morte.

Como se vê, uma aula sobre datação por radiocarbono é uma excelente oportunidade para trazer a interdisciplinaridade à sala de aula, discutindo ciclo de carbono na biosfera, fotossíntese e cadeia alimentar.

É importante ressaltar que a datação por radiocarbono só pode ser usada para datar matéria orgânica – por exemplo, ossos, restos de plantas, ou até artefatos arqueológicos, como cerâmicas enriquecidas por matéria orgânica. Ademais, não é possível datar com radiocarbono materiais com mais do que 50 mil anos de idade. Isso porque, após esse tempo, já transcorreram aproximadamente 10 meias-vidas do radiocarbono, e a fração desse elemento na amostra já é 1/2100.1% da concentração original. É claro que detectores mais precisos permitem extrapolar um pouco esse limite superior, mas não muito mais do que isso.

Isso significa que fósseis de dinossauros não podem ser datados por radiocarbono, (i) porque um fóssil de dinossauro não é matéria orgânica, mas material rochoso que se sedimentou sobre os ossos do animal (ou seja, um fóssil é uma rocha), e (ii) porque dinossauros foram extintos há cerca de 65 milhões de anos, portanto qualquer vestígio de carbono-14 no fóssil já teria desaparecido completamente após esse período.

Isso não quer dizer que não se pode fazer datação de rochas por meio de decaimentos radioativos. Ao contrário, essas datações são possíveis, desde que se use o decaimento de outros elementos como “régua”, como o rubídio-87, que decai via

(23) Rb 87 87 Sr + e - + ν ¯ e ,

com meia-vida 4.9×1010anos. O método é essencialmente o mesmo descrito acima, mas com algumas diferenças. Nesse caso não se conhece a abundância inicial de rubídio-87 na amostra inicial, então mede-se também a abundância do elemento-filha desse decaimento, o estrôncio-87, e também o outro isótopo estrôncio-86 (que é estável). Com essas informações é possível determinar a idade de meteoros e, a partir daí, inferir a idade do Sistema Solar (e, portanto, do planeta Terra) como 4.5×109 anos [56[56] W.M. White, Geochemistry (Ed. John Wiley & Sons, Chichester, 2013)., 57[57] R. Bowen, Isotopes in the earth sciences (Ed. Chapman & Hall, Londres, 1994).].

É importante mencionar que a datação radioativa não é a única forma de se datar um artefato, e nem sempre é a mais precisa. Na arqueologia, o mais comum é datar um objeto com base em outros itens encontrados em uma mesma escavação, como moedas, evidências textuais (em lápides ou cerâmicas), práticas culturais (por ex. a forma como o objeto foi fabricado ou o material utilizado), e outros indícios que apontem para o contexto histórico do objeto desenterrado. Ainda outra forma de datação muito precisa é a chamada dendrocronologia39 39 Da palavra grega δ⁢ϵ´⁢ν⁢δ⁢ρ⁢o⁢ν (“árvore”), ou seja, cronologia (através) das árvores. , tão precisa a ponto de ser usada para calibrar a datação feita por métodos radioativos descritos acima! Esse método baseia-se no fato de que os troncos das árvores são formados por vários anéis (vide Figura 25), produzidos (em média) um por ano, e cuja espessura, coloração e outras características dependem das condições climáticas e ambientais da região onde a árvore se desenvolveu. Assim, fazendo um estudo de diversas árvores de uma região em várias épocas diferentes, podemos fazer uma tabela de quais anos calendáricos correspondem a quais características de anéis. Tendo essa correspondência em mãos, ao encontrarmos um pedaço de madeira com uma determinada sequência de anéis, podemos inferir a época em que a árvore viveu (e, consequentemente, inferir a época em que um certo artefato arqueológico de madeira foi produzido). A dendrocronologia é muito usada, por exemplo, para datação de obras de arte com base em suas molduras40 40 Vale notar que, em caso de pinturas produzidas pós-Renascimento, i.e. nos últimos 500 anos, os métodos de datação radioativa não são tão eficientes, pois transcorreu-se ainda pouco tempo desde a produção do artefato (comparativamente à meia-vida do carbono-14) e não se detectaria ainda uma diferença significativa na abundância desse elemento relativamente ao que se espera para o organismo vivo. .

Figura 25:
Corte transversal de um tronco de árvore mostrando seus anéis. A quantidade de anéis indica a idade da árvore. A coloração, a espessura e outras caracterizações dos anéis indicam as condições ambientais em que a árvore se desenvolveu. Fazendo um levantamento estatístico com diversas árvores, é possível fazer uma associação de quais anos calendáricos correspondem a quais sequências de anéis. Uma vez estabelecida essa relação, qualquer artefato de madeira pode ser datado a partir da sequência de anéis da madeira. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 4.0 [15[15] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-Share Alike 4.0 (BY-SA 4.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
https://creativecommons.org/licenses/by-...
].

É interessante trazer a discussão do parágrafo acima para sala de aula, para evitar a disseminação do mito de que os métodos baseados em decaimentos radioativos são “os melhores” ou “mais precisos”41 41 Lembrando que a precisão da datação por radiocarbono depende crucialmente de conhecermos a concentração de carbono-14 na atmosfera na época em que o organismo viveu. Essa concentração é aproximadamente constante, mas pode flutuar devido a eventos climáticos ou até antropomórficos. Por exemplo, é sabido que os inúmeros testes com armamentos nucleares realizados desde a década de 1950 aumentaram drasticamente a concentração de radiocarbono na atmosfera. Portanto o valor que se mede hoje não corresponde à concentração de radiocarbono na época em que o organismo viveu há séculos. É preciso fazer uma correção para levar em conta esses efeitos, e para isso usa-se outros métodos de datação como referência, por exemplo a dendrocronologia. . Ao contrário, trata-se de um dentre muitos métodos de datação que se complementam. Novamente o convite à interdisciplinaridade faz-se presente, por se tratar de uma temática que envolve a física – na parte dos decaimentos –, a biologia – na dendrocronologia –, a história – na arqueologia – e também as artes – na medida em que essas técnicas são aplicadas para determinar a origem e a originalidade de pinturas e outras obras famosas.

2.10.2. Aplicações medicinais

Uma das aplicações medicinais de decaimentos radioativos já foi discutida na primeira parte desta série de artigos: trata-se do uso de decaimentos β+ para realização de exames como o PET scan[1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo (por ex. o 18F) que decai por β+, ou seja, emitindo pósitrons. Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com a glucose usual, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo decai42 42 Para o caso do 18F a meia-vida é de aproximadamente 109 minutos. Por isso o paciente deve chegar à clínica e tomar a injeção de contraste com alguma antecedência antes de realizar o exame. , emitindo um pósitron. Esse pósitron se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 26. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações.

Figura 26:
Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [58[58] A. Klotz, Physics Forums Insights, disponível em: www.physicsforums.com/insights/basics-positron-emission-tomography-pet, acesso em 21/06/2023.
www.physicsforums.com/insights/basics-po...
].

Outra aplicação medicinal desses decaimentos radioativos é a chamada radioterapia para combate a cânceres. As partículas emitidas em decaimentos radioativos (as partículas α, os elétrons e pósitrons ou a radiação γ) são tipicamente muito energéticas e, quando incidem sobre células de organismos vivos, podem desintegrar o DNA e danificar sua capacidade reprodutiva. As células cancerígenas são justamente aquelas que se reproduzem descontroladamente, a uma taxa muito maior que as células normais do organismo. Assim, atacando a região cancerígena com radiação e destruindo o DNA de suas células, a reprodução delas fica comprometida e o câncer pode ser reduzido ou até eliminado. Em geral, as células saudáveis em torno do câncer também serão afetadas pela radiação, mas se variarmos o ângulo de incidência da radiação, mantendo a região afetada no centro (como ilustrado na Figura 27) podemos minimizar o dano a regiões saudáveis enquanto maximizamos o bombardeamento ao tumor.

Figura 27:
Bombardeamento de um tumor por raios γ em sessão de radioterapia. O ângulo de incidência da radiação é variado a fim de maximizar o dano ao tumor, minimizando o dano às regiões saudáveis no seu entorno. Fonte: adaptado de [59[59] OpenStax College, College Physics, disponível em: https://openstax.org/books/college-physics/pages/32-introduction-to-applications-of-nuclear-physics, acesso em 21/06/2023.
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], distribuído sob licença Creative Commons BY 4.0 [60[60] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution 4.0 International (BY 4.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/, acesso em 21/06/2023.
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].

Outra forma de radioterapia é via implantes do tamanho de grãos de arroz, contendo material radioativo, que são inseridos na região do tumor. Esse material decai ao longo do tempo e danifica as células tumorosas vizinhas ao implante, atuando como uma radioterapia prolongada e constante [59[59] OpenStax College, College Physics, disponível em: https://openstax.org/books/college-physics/pages/32-introduction-to-applications-of-nuclear-physics, acesso em 21/06/2023.
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].

Por fim, nota-se que a radioterapia é apropriada para o caso de tumores bem localizados em uma região do corpo. Há, ainda, outros tratamentos contra câncer, como a quimioterapia, que consiste na administração de uma substância que inibe a divisão celular, fazendo com que as células cancerosas morram sem se reproduzir. Nesse caso, não se trata de uma terapia com materiais radioativos, e, sim, com substâncias químicas – daí o nome do tratamento.

Como se vê, uma aula sobre aplicações medicinais da radioatividade abre uma janela para a exploração interdisciplinar da física com a biologia, envolvendo tanto física nuclear quanto biologia celular, DNA e ciclo de reprodução da célula. Além disso, trata-se de uma excelente oportunidade para, nesse contexto interdisciplinar, utilizar uma abordagem CTSA em sala de aula.

2.10.3. Esterilização e conservação de alimentos

Como acabamos de mencionar, a radiação proveniente de decaimentos nucleares pode ser danosa a organismos vivos, a depender da energia da partícula emitida. Assim, outra utilidade prática desses decaimentos é na esterilização de equipamentos médicos (quando se deseja eliminar microorganismos) e também na conservação de alimentos, eliminando-se bactérias, fungos, larvas, insetos e demais agentes biológicos indesejáveis. Além disso, através da irradiação pode-se postergar a maturação desses alimentos, fazendo com que durem mais tempo e possam ser transportados por maiores distâncias sem que estraguem.

No Brasil, a irradiação de alimentos é uma técnica reconhecida e regulamentada pela ANVISA [61[61] Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Resolução da Diretoria Colegiada no. 21 de 26 de novembro de 2001, disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/legislacao#/visualizar/26672, acesso em 21/06/2023.
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]43 43 A regulamentação atual vigora desde o ano de 2001, mas uma atualização está prevista para 2023 [62]. . De acordo com essa regulação, a radiação permitida para esse fim são os raios γ provenientes de decaimentos do cobalto-60 e do césio-13744 44 O césio-137 é um dos produtos colaterais de fissões que ocorrem na produção de energia nuclear. Seu uso como fonte de radiação para preservação de alimentos constitui um reaproveitamento do que seria considerado “lixo nuclear”. , ou raios-X (que também são radiação eletromagnética, como os raios γ, mas nesse caso de energia até 5 MeV) ou até mesmo elétrons acelerados a energias de no máximo 10 MeV.

Assim como tudo o que envolve radioatividade, essa aplicação na indústria de alimentos gera preocupações que merecem ser endereçadas com cuidado.

A primeira preocupação imaginável é que o alimento possa se tornar radioativo. Isso é impossível, porque a irradiação é feita com elétrons ou radiação eletromagnética, que são incapazes de alterar os isótopos dos elementos presentes na comida45 45 Se o bombardeamento fosse feito com nêutrons ou prótons, essas partículas poderiam ser absorvidas por algum núcleo atômico presente no alimento, alterando sua estrutura e possivelmente tornando-o radioativo. Por exemplo, bombardeando-se o carbono-12 com nêutrons pode-se produzir o carbono-14, que é radioativo. Mas fótons não são capazes de converter um isótopo em outro. ,46 46 O(a) leitor(a) mais atento poderia pensar que o fóton bombardeado poderia excitar um núcleo atômico presente no alimento, executando o processo inverso ao descrito na Figura 24 (direita). Esse nuclídeo excitado tenderia a decair com nova emissão de γ, que, se ocorresse dentro de nosso corpo, poderia ser danoso às nossas células. Ocorre que o fóton incidente só pode ser absorvido se sua energia for exatamente igual à diferença de energia entre dois níveis nucleares mostrados na figura. Então o fóton só seria absorvido por um nuclídeo que tenha níveis com a mesma diferença de energia dos níveis do cobalto-60 ou do césio-137. Mas as energias dos níveis nucleares servem como a “impressão digital” do núcleo, e cada elemento tem níveis com espaçamentos característicos. Então a radiação γ emitida pelo cobalto-60 não seria absorvida por um núcleo de carbono, nitrogênio, oxigênio, ou outros elementos que encontramos na matéria orgânica. . Por exemplo, é impossível converter carbono-12 (estável) em carbono-14 (radioativo) com bombardeamento de fótons ou elétrons.

Uma preocupação mais pertinente diz respeito à possível degradação nutricional do alimento irradiado, bem como perdas de qualidades sensoriais, como sabor e aroma. Muitos estudos foram e continuam sendo realizados para investigar essa possibilidade. De fato, os estudos mostram que alguns nutrientes vitamínicos – como a vitamina C, por exemplo – são ligeiramente danificados pelo procedimento, a depender da temperatura em que eles são realizados47 47 A redução dos níveis de vitamina são menores quando a irradiação é feita a frio. , e da dosagem de radiação utilizada [63[63] Organização Mundial da Saúde, Safety and nutritional adequacy of irradiated food, disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/39463, acesso em 21/06/2023.
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, 64[64] Organização Mundial da Saúde, High-dose irradiation: wholesomeness of food irradiated with doses above 10 kGy: report of a Joint FAO/IAEA/WHO study group, disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/42203, acesso em 21/06/2023.
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]. Contudo, assim como na discussão sobre energia nuclear, é preciso comparar esse resultado com o que ocorre nos processos de esterilização alternativos. Por exemplo, a pasteurização a altas temperaturas também implica em perdas de nutrientes. Nessa perspectiva comparativa, as conclusões dos estudos são de que o método de esterilização por irradiação não é aplicável a todos os alimentos – até porque muitos têm o sabor afetado de modo a torná-los desagradáveis ao paladar, como é o caso do leite –, mas que em outros casos as possíveis perdas vitamínicas são comparáveis àquelas advindas dos outros métodos mais usuais de esterilização.

Importante mencionar que esse método não deve ser aplicado para substituir as boas práticas de higiene na produção e manuseio dos alimentos, e, sim, para complementá-las. Isso está determinado muito claramente até nas diretrizes da ANVISA [61[61] Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Resolução da Diretoria Colegiada no. 21 de 26 de novembro de 2001, disponível em: http://antigo.anvisa.gov.br/legislacao#/visualizar/26672, acesso em 21/06/2023.
http://antigo.anvisa.gov.br/legislacao#/...
]. Ademais, essas diretrizes também determinam que no rótulo do produto deve constar a frase “ALIMENTO TRATADO POR PROCESSO DE IRRADIAÇÃO”, a fim de que o consumidor possa fazer uma escolha informada e consciente.

Justamente por ser uma temática que instiga o debate, e que tem impacto direto em nossa vida quotidiana – por afetar nossa alimentação –, essa temática é ideal para uma aula CTSA em um contexto interdisciplinar envolvendo a física, a biologia – na discussão do aspecto nutricional dos alimentos –, a química – no debate sobre como a radiação pode destruir moléculas ou catalizar reações que produzam novas substâncias – e também a geografia – levantando a discussão sobre a importância de se ter técnicas de preservação e prolongamento do tempo de vida de um alimento, e o impacto socioeconômico dessas tecnologias na indústria alimentícia. Abordar essas temáticas em uma perspectiva de debate fomenta o desenvolvimento do raciocínio do(a) estudante e sua capacidade de elaborar uma opinião eloquentemente. Não há certo ou errado, desde que todas opiniões sejam fundamentadas em dados e fatos. Pode-se, assim, incentivar a pesquisa por parte dos(as) discentes, para que se preparem à discussão. O debate pode também servir para explorar a criatividade dos(as) estudantes, que podem apresentar suas falas em forma de um telejornal, peça teatral, música, ou outras formas que atraiam a atenção do(a)aluno(a).

2.10.4. Tecnologias quotidianas

A radioatividade encontra aplicações também em tecnologias quotidianas, presentes até mesmo em muitas residências. Um exemplo são os detectores de fumaça iônicos, ilustrados na Figura 28. No interior desses detectores há uma câmara de ionização, que consiste de duas placas paralelas conectadas a uma bateria e exposta a um elemento radioativo emissor de partículas α, tipicamente o amerício-241. Essas partículas α ionizam o ar entre as placas (i.e. removem elétrons dos átomos), fazendo surgir uma corrente no circuito. As partículas de fumaça, quando entram na câmara, desionizam o ar, reabsorvendo as partículas carregadas, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme.

Figura 28:
(Esquerda) Esquema do interior de uma câmara de ionização, parte integrante de um detector de fumaça iônico. A câmara contém um elemento emissor de α (tipicamente amerício-241), que ioniza o ar no interior da câmara, provocando uma corrente entre as placas conectadas à bateria. Quando há fumaça, os íons são parcialmente reabsorvidos e o ar é novamente neutralizado, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. (Direita) Interior de um detector de fumaça iônico. A câmara de ionização está marcada com a etiqueta amarela, que avisa sobre seu conteúdo radioativo. Abaixo dela está o alarme, e à direita a bateria que alimenta o circuito. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 2.0 [66[66] CREATIVE COMMONS, Licença Attribution-ShareAlike 2.0 Generic (BY-SA 2.0), disponível em: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/deed.en, acesso em 21/06/2023.
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].

Cabe mencionar que este não é o único tipo de detector de fumaça disponível no mercado. Há, ainda, os chamados detectores óticos, que funcionam à base do efeito fotoelétrico [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Uma ilustração do funcionamento desses detectores é dada na Figura 29.

Figura 29:
Esquema ilustrando o funcionamento de um detector de fumaça ótico. Em condições normais, um LED emite radiação infravermelha que não atinge o fotodetector. Na presença de fumaça, a luz é espalhada e desviada de sua trajetória retilínea inicial, incidindo no detector e ativando o alarme.

3. Análise das intervenções

3.1. O contexto: o local e os sujeitos

No ano de 2017, o Núcleo Cosmo-UFES da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) iniciou o projeto de extensão “Universo na Escola” [65[65] Núcleo Cosmo-UFES, Projeto Universo na Escola, disponível em: http://www.cosmo-ufes.org/universo-na-escola.html, acesso em 21/06/2023.
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], em que professores e pesquisadores são convidados a ministrar palestras sobre tópicos atuais de pesquisa em Física a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. O intuito do projeto é o de ampliar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas ciências em geral e, em particular, pela Física. Ministradas fora do período regular de aulas nas escolas participantes, as palestras se configuram como atividade complementar eletiva.

Para este trabalho, os autores optaram por extrapolar o formato usual das palestras do contexto do projeto de extensão. Para isso, elaboraram e ministraram uma sequência didática sobre Física de Partículas contemplando dez encontros com duração aproximada de uma hora cada, em horários extra-classe, durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, o que totalizou uma carga horária de dez horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os discentes. A sequência foi ministrada por um dos autores a uma turma mista com, no máximo, quatorze estudantes das 1a , 2a e 3a séries do ensino médio do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Alguns participantes integravam um grupo com interesse prévio em Física, que já era acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador de Física da escola. No entanto, no decorrer da sequência outros estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais que já participavam das aulas.

3.2. Das aulas

Na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Como no trabalho anterior [1], destacamos que os momentos didáticos apresentados abaixo não têm a pretensão de constituir um material formulaico, um receituário já pronto para ser seguido acriticamente pelo(a) docente, com um roteiro fixo das aulas. Preferimos elaborar um material que sirva como matéria-prima para que o(a) docente prepare sua aula como julgar mais adequada em seu contexto, um material de caráter sugestivo e maleável, adaptável às aspirações, necessidades e circunstâncias de cada docente e de cada turma. Entretanto, o conjunto de momentos didáticos abaixo foi elaborado de modo a iniciar com um conteúdo já familiar a discentes e docentes, progredindo paulatinamente de modo a se construir a estrutura e a dinâmica do núcleo atômico de forma intuitiva, acessível à apreensão e sempre suscetível a debates entre os estudantes. 2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino. 2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1, e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r∼10-10m, valor já conhecido na época2. Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Figura 1: (Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público. Entre 1908 e 1913 [12, 13], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143. O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2⁢e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo. Figura 2: Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo. 2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r∼10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Z⁢e, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4, e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a (1) F max = - k ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Figura 3: Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14], adaptado e publicado com autorização do autor. Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é (2) Δ ⁢ K α ≲ - k ⁢ Z ⁢ e 2 r ∼ - 10 - 13 ⁢ m r ⁢ MeV , onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e≈1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k≈9×109⁢J⋅m/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1⁢J=(1.6×10-19)-1eV. A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r∼10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas. O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2⁢r é (3) Δ ⁢ t ≃ 2 ⁢ r v α . Figura 4: Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δ⁢py da componente transversal da velocidade da partícula, dada por (4) F Coulomb = m ⁢ Δ ⁢ v y Δ ⁢ t = k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que (5) sin ⁡ θ = Δ ⁢ v y v ′ ≃ Δ ⁢ v y v α , Figura 5: Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público. onde usamos o fato de que v′≃vα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ≪1 e portanto sin⁡θ≈θ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que (6) θ ≃ k ⁢ 4 ⁢ Z ⁢ e 2 m ⁢ v α 2 ⁢ r ≃ k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 K α ⁢ r ≃ 0.02 o . Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1⁢μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6⁢m/10-10⁢m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩⁢θ≃2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5. De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16], ou seja, efetivamente zero. 2.1.3. O modelo de Rutherford Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado: “Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.” E. Rutherford O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, Δ⁢Kα∼7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r≲10-14m. Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r∼10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5. A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a (7) N ⁢ ( θ ) ∝ 1 K α 2 ⁢ sin 4 ⁡ θ 2 . A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico. Figura 6: Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo. Figura 7: (Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θ∼λ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. 2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico? Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima. Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões: É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura? Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências? E qual é o papel dos modelos teóricos? Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais? Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico? O que é uma teoria científica? O que é ciência? Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza. 2.2. Estrutura do núcleo atômico: prótons e nêutrons Em 1919, continuando suas investigações a respeito da interação entre partículas α e a matéria, Rutherford notou que a passagem dessas partículas pelo ar produzia um fluxo de núcleos de hidrogênio detectados na chapa de ZnS [18]. O efeito desaparecia quando o ar era substituindo por gás oxigênio, O2, ou por dióxido de carbono, CO2, mas era ainda mais notável para gás nitrogênio, N2. Hoje, é sabido que Rutherford observara a reação nuclear 14 N + 4 He → 17 O+ 1 H . A partir desses resultados, Rutherford postulou que o núcleo de hidrogênio – o mais leve dentro todos os elementos – é um constituinte fundamental de todos os núcleos atômicos [19], e que, no processo acima, um deles é ejetado do nitrogênio pela colisão com a partícula α. Com isso, Rutherford reavivou a tese proposta um século antes por William Prout, que notara que as massas molares de vários elementos eram múltiplos inteiros da massa molar do hidrogênio, e supôs ser esse o elemento primordial do qual todos são constituídos6. Prout designou de prótil esse elemento primordial, enquanto Rutherford chamou de próton o núcleo de H (ambas palavras advindas do grego antigo protos, que significa primeiro). A partir dessa descoberta de Rutherford, o átomo passou a ser visto como constituído de prótons e elétrons. Como a massa do elétron é ≈ 1800 vezes menor que a do próton, sua contribuição à massa atômica é desprezível, de modo que se supunha que toda a massa fosse devida ao número de prótons no núcleo. Assim, um núcleo com número de massa A (i.e. cuja massa é A vezes a massa do H) era suposto composto de A prótons. Mas, como explicar a observação de que a carga de um núcleo é quase sempre menor do que a carga de A prótons? Para isso, supunha-se que, além dos elétrons da eletrosfera, havia também elétrons no interior do núcleo, tal que um núcleo de massa A e carga Z (em unidades da massa e carga do núcleo de H) era visto como composto de A prótons e A-Z elétrons. Por um lado, a existência de elétrons nucleares era uma hipótese bem-vinda, pois ajudava a explicar decaimentos radioativos que eram acompanhados pela emissão de elétrons – chamados decaimentos do tipo β, discutidos abaixo na seção 2.9.2. Por outro lado, a existência de elétrons no interior do núcleo atômico engendra várias contradições com resultados experimentais. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg assegura que um elétron confinado em uma região de raio r≲10-14m teria uma energia cinética da ordem de 20MeV, muito acima da energia típica dos elétrons emitidos em decaimentos β, da ordem de 1 a 5 MeV. Ademais, medições do momento angular e momento magnético do núcleo de nitrogênio-14 indicam que ele deve ser constituído de um número par de partículas7, em contradição com a expectativa de 14 prótons + 7 elétrons. Essas contradições foram resolvidas em 1932, quando James Chadwick demonstrou experimentalmente a existência do nêutron: partícula eletricamente neutra com massa muito semelhante à do próton. Assim, estabeleceu-se que um núcleo de carga Z e massa A é composto de Z prótons e A-Z nêutrons. Um núcleo de nitrogênio-14 é, portanto, constituído de 7 prótons + 7 nêutrons, totalizando um número par de constituintes, como requerido pelos experimentos. No ano seguinte, em 1933, Enrico Fermi explicou o decaimento β sob essa nova perspectiva: o elétron emitido não existia anteriormente no núcleo, mas surgiu do decaimento de um nêutron em um próton e um elétron – uma perspectiva revolucionária de transmutação de partículas que inaugurou uma nova era na Física de Altas Energias. A descoberta dos nêutrons também possibilitou uma explicação simples à existência de isótopos. A natureza de um elemento é definida pelo número de prótons que existem no núcleo – i.e. pela sua carga elétrica –, pois é isso que define a quantidade de elétrons na eletrosfera, e portanto determina as suas possibilidades de ligações químicas, que nada mais são do que reminiscências da interação eletromagnética. Por outro lado, a massa do elemento é determinada pela quantidade de prótons e nêutrons no núcleo. Portanto é possível que um mesmo elemento possua variantes com diferentes massas, dada pela diferença no número de nêutrons no núcleo. Prótons e nêutrons são coletivamente denominados núcleons , i.e. partículas do núcleo. 2.3. O raio nuclear Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões ≲10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α. Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1] (veja a ref. [20] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo. De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento (8) λ = h p , onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h≈4.136×10-21⁢MeV⋅s–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação (9) θ ∼ λ D . A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ≈50∘≈0.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E≈420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, me⁢c2≈0.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c≈3×108m/s, e vale a relação E=p⁢c. O comprimento de onda é então λ=h⁢c/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que (10) D ∼ 3 ⁢ fm , Figura 8: No experimento de Ehrenberg et al. [23], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24], compilado a partir dos resultados de [23], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular. com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é ≈2.47fm [22], portanto seu diâmetro é ∼5fm, não muito distante da estimativa acima. Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio. 2.4. A força nuclear 2.4.1. Problema da estabilidade do núcleo Como é possível que o núcleo atômico seja estável, se é composto somente de partículas neutras ou com carga positiva, todas confinadas a uma distância mútua da ordem de 10-15m e, portanto, com os prótons constantemente sujeitos a intensas forças eletrostáticas repulsivas? Tal questão pode ser proposta à turma como ponto de partida de uma discussão que desemboque na conceituação da força nuclear. Em um primeiro momento, os estudantes usualmente levantam duas propostas para explicar a estabilidade nuclear: A força gravitacional é atrativa e talvez possa manter o núcleo estável diante da repulsão eletrostática. No entanto – e aqui entra novamente o valor da matemática para corroborar ou excluir hipóteses físicas –, como já discutido na sequência anterior [1], a interação gravitacional é muito mais fraca do que a eletromagnética, e jamais seria suficiente para equilibrar a repulsão dos prótons. De fato, em um núcleo composto de Z prótons e A-Z nêutrons, cada próton é submetido a uma força repulsiva Fel devido às outras Z-1 cargas positivas, e a uma atração gravitacional Fgrav devido a A-1 prótons e nêutrons, dadas por (11) F el ∼ k ⁢ ( Z - 1 ) ⁢ e 2 r 2 , F grav ∼ G ⁢ ( A - 1 ) ⁢ m p 2 r 2 , onde supomos que as massas dos prótons e nêutrons são iguais – o que é válido em boa aproximação –, e que a distância média de afastamento entre cada partícula é da mesma ordem de magnitude, r∼10-15m. Substituindo valores numéricos, k ≈ 8.98 × 10 9 ⁢ N ⋅ m 2 / C 2 , G ≈ 6.67 × 10 - 11 ⁢ N ⋅ m 2 / kg 2 , e ≈ 1.6 × 10 - 19 ⁢ C , m p ≈ 1.67 × 10 - 27 ⁢ kg , vem que a condição de equilíbrio entre essas forças requer (12) A - 1 ∼ ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 G ⁢ m p 2 ⟹ A ∼ 10 36 ⁢ Z , ou seja, seria necessário um número imensamente maior de nêutrons do que de prótons, ao passo que o núcleo mais pesado observado na Natureza – i.e. não produzido artificialmente – é o 92238U, para o qual A≈2.6⁢Z. Os elétrons na eletrosfera atraem os prótons no núcleo. No entanto, mesmo que houvesse uma tal força efetiva8, ela tenderia a desestabilizar o núcleo ainda mais, pois atrai os prótons em direção à eletrosfera, para fora do núcleo. 2.4.2. Discussão e levantamento de hipóteses A conclusão que a turma deve ser capaz de alcançar, nesse momento, é que, com as interações conhecidas até então, não é possível explicar a estabilidade do núcleo atômico. O(a) docente pode, então, estimular os(as) estudantes a discutir soluções para esse impasse, em um ótimo exercício de levantamento de hipóteses. Note que, nesse exercício, não há respostas erradas. No desenvolvimento histórico-científico, em tais situações de impasse, é comum se propor hipóteses que, embora hoje descartadas, ou até consideradas absurdas, levaram a importantes desenvolvimentos teóricos e experimentais posteriores9. O importante, nessa atividade, é que os(as) discentes exercitem sua criatividade e capacidade argumentativa na elaboração de suas teses e, indo ainda além, que também se empenhem na elaboração de possíveis maneiras de as testarem experimentalmente. Por exemplo, um(a) estudante pode propor que a interação eletromagnética é modificada quando as partículas estão a distâncias muito pequenas, da ordem do raio do núcleo atômico, de modo a abrandar a repulsão. Tal hipótese poderia ser testada submetendo-se partículas carregadas à interação com prótons no interior do núcleo, como ocorre no espalhamento de elétrons altamente energéticos, discutido na seção 2.3 acima. O fato de os resultados se conformarem ao esperado para elétrons submetidos à interação coulombiana e ao fenômeno de difração – devido ao caráter ondulatório do feixe de elétrons – atesta contra essa hipótese. Para outros testes da validade da Lei de Coulomb vide ref. [25]. Ainda outra hipótese possivelmente levantada seria uma modificação da gravitação nessas escalas de distância. Entretanto, é difícil testar a gravitação nessas situações. Outra possibilidade é se postular a existência de uma outra interação, que pode ser denominada de força nuclear . 2.4.3. A força nuclear O(a) docente pode, então, estimular discussões sobre as propriedades que essa nova interação deve possuir para que solucione o problema da estabilidade nuclear sem engendrar outras contradições. Em primeiro lugar, essa força deve possuir uma componente atrativa, e deve ser mais intensa do que a interação eletromagnética, para superar a repulsão e estabilizar o núcleo. Além disso, não deve afetar os elétrons na eletrosfera, pois o átomo é bem descrito com base apenas na interação eletromagnética. O experimento de espalhamento de elétrons por prótons, discutido na seção 2.3, também é muito bem descrito assumindo-se que a interação elétron-próton é inteiramente de natureza eletromagnética. Em outras palavras, não há evidência de que elétrons interajam com prótons ou nêutrons por meio dessa força nuclear. Ademais, a atuação dessa força se dá apenas a distâncias da ordem do raio nuclear, ∼1fm. Por exemplo, as forças de ligação intermoleculares são exclusivamente de natureza eletromagnética, sendo desprezível a contribuição de outra forma de interação entre os núcleos dos átomos constituintes10. 2.5. Reações nucleares Consolidando-se entre os(as) discentes o conceito de força nuclear, pode-se enveredar em discussões sobre diversos fenômenos e aplicações associadas à Física Nuclear. Trata-se de um fértil contexto para exploração interdisciplinar em uma abordagem CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) com temáticas como: fissão nuclear e suas aplicações bélicas e pacíficas; fusão nuclear como fonte de energia do Sol, e sua importância para o desenvolvimento da vida na Terra; a formação da maioria dos elementos em processos de fusão no interior das estrelas, e por que “somos poeira das estrelas”; a matriz energética no Brasil e no mundo: diversas fontes de energia e seus impactos ambientais; decaimentos radioativos e aplicações. 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. 2.5.2. Saturação da força nuclear Já foi discutido acima (seção 2.4.3) que a força nuclear deve ter curto alcance, da ordem de 1fm. A Figura 11 oferece outra evidência a favor dessa afirmação. Para entender por que, considere, primeiro, a energia associada à interação eletrostática entre Z prótons em um nuclídeo. Cada próton, de carga e, é repelido por Z-1 outros prótons, distantes um do outro de r∼1fm. A contribuição eletrostática à energia por próton é, então, (15) E Coulomb Z ∼ - ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 r , ou seja, varia linearmente com o número de prótons no núcleo. O sinal negativo se deve ao fato de a força ser repulsiva, provocando uma redução na energia de ligação por constituir uma tendência natural à desintegração do nuclídeo. Analogamente, para um nuclídeo com A núcleons existem A⁢(A-1)/2 maneiras de se arranjá-los em pares, de modo que, se supusermos que cada núcleon interage com todos os demais via força nuclear, esperaríamos (16) E nuclear ∝ A ⁢ ( A - 1 ) , ou seja, Enuclear /A cresceria linearmente com o número de núcleons. Analogamente à equação (15), o coeficiente de proporcionalidade é indicativo da intensidade da interação nuclear. Se olharmos, agora, para a Figura 11, veremos que esse crescimento linear é de fato observado para nuclídeos leves, com A≤4. Mas a taxa de crescimento – dada pelo coeficiente de proporcionalidade na equação (16) – diminui gradativamente, até que, para nuclídeos mais pesados, com A≳16, a curva tende a se aplainar em um patamar Eligação /A∼8MeV, atingindo um máximo para o 56Fe. Ou seja, a hipótese de que cada núcleon interage com todos seus vizinhos deixa de ser obedecida. Dito de outra forma, a intensidade média da interação nuclear atuante sobre cada núcleon diminui com o aumento do nuclídeo: outra evidência sustentando que a interação nuclear é de curto alcance. Disso podemos extrair, ainda, uma estimativa do alcance dessa interação, que deve ser da ordem de magnitude das dimensões nucleares, r∼1fm, uma vez que, mesmo para núcleons contidos no interior de um nuclídeo, essa interação já deixa de ser eficaz. Podemos aprofundar ainda mais a análise da Figura 11 para extrair mais informações sobre a interação nuclear. Partindo de um único próton, e acrescentando-lhe nêutrons e outros prótons, nota-se que a energia de ligação por núcleon cresce drasticamente12 até atingir um máximo local no 4He, que é um nuclídeo excepcionalmente estável13. Se acrescentamos ao 4He um próton e um nêutron, formando 6Li, a energia de ligação total aumenta – porque um maior número de núcleons implica em mais possibilidades de mútuas interações –, mas a energia média por núcleon diminui. É como se alguns dos núcleons de 6Li se aglomerassem em uma combinação altamente interagente de 2 prótons e 2 nêutrons, enquanto o próton e o nêutron adicionais, desemparelhados, interagissem com menor intensidade, reduzindo a energia de ligação média. Se seguirmos acrescentando núcleons, os prótons e nêutrons extras vão se emparelhando, provocando um aumento de Eligação /A. Mas esse crescimento ocorre a uma taxa inferior àquela entre 1H e 4He – a média da mútua interação entre os núcleons já é menor, devido à maior distância entre eles. Essa segunda reta de crescimento na Figura 11 culmina no 12C, um outro nuclídeo excepcionalmente estável por ser composto de um aglomerado14 de 34He. Analogamente, o 16O pode ser visto como um aglomerado de 44He e possui, também, grande energia de ligação por núcleon15. Como já discutido nesta mesma subseção, à medida que o nuclídeo aumenta de tamanho, núcleons diametralmente opostos deixam de interagir um com o outro pela força nuclear – devido ao curto alcance dessa interação –, e o acréscimo de novos núcleons tende a aumentar cada vez menos a energia de ligação média de cada núcleon. Fala-se, então, da saturação da força nuclear, que é outra forma de expressar o curto alcance dessa interação. Acontece que, quanto maior o nuclídeo, maior é seu número de prótons16, e embora a interação nuclear tenda a saturar, a repulsão coulombiana continua atuante entre todos os prótons, contribuindo negativamente à energia de ligação, conforme a equação (15). É por isso que, a partir do ferro-56, a curva da Figura 11 apresenta uma inflexão, tornando-se decrescente. 2.6. Fissão nuclear Devido ao comportamento decrescente da curva da Figura 11 para nuclídeos pesados, processos que ocasionam uma redução do tamanho do nuclídeo são energeticamente favorecidos. Considere, por exemplo, um processo em que um nuclídeo pesado, como o urânio-235, se divide em dois nuclídeos mais leves após absorver um nêutron, como ilustrado na Figura 13. Esse tipo de processo é denominado fissão nuclear. Como os produtos da reação são nuclídeos menores – o que aumenta a interação nuclear entre núcleons – e possuem menos prótons – reduzindo a repulsão coulombiana –, eles são mais estáveis, com maior energia de ligação média por núcleon, como se nota pela Figura 11. Por ocorrer uma variação da energia potencial dos núcleons na reação, deve haver uma correspondente liberação de energia durante o processo, para que a energia total se conserve. Outra maneira de se entender isso é notando que, quanto maior a energia de ligação, menor é a massa total do nuclídeo, de acordo com a equação (14). Portanto, a formação de nuclídeos mais estáveis está associada à redução da energia do sistema em forma de massa17, e a diferença constitui-se em energia liberada em outras formas, como radiação ou energia cinética dos fragmentos (ou seja, calor). Este é o princípio fundamental subjacente à geração de energia por fissão nuclear. Figura 12: As forças atuantes sobre os núcleons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 13: Fissão de 235U induzida pela captura de um nêutron termal. O nêutron incide com baixa energia cinética, ∼0.02eV, e é absorvido, resultando em um nuclídeo de U236, que é instável e se fissiona em dois nuclídeos mais leves. Neste caso o produto da reação inclui, ainda, três nêutrons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Mas há um detalhe a mais que merece ser discutido. Em reações de fissão induzidas por capturas de nêutrons, é comum que haja liberação de dois ou mais nêutrons no produto final, como ilustra a Figura 13. Esses novos nêutrons podem colidir com outros nuclídeos de 235U e induzir outras reações, liberando mais nêutrons, e assim sucessivamente, resultando em uma reação autossustentável, como ilustrado na Figura 14. Figura 14: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Ocorre que 99.3% do urânio encontrado na natureza está na forma do isótopo 238U, que não é facilmente fissionável, e apenas cerca de 0.7% é 235U. Para otimizar a quantidade de energia liberada e garantir a autossustentabilidade da cadeia de reações, é desejável que o material tenha uma concentração muito maior de 235U, de modo a aumentar a probabilidade de que os nêutrons emergentes em cada etapa de fissão encontrem outros nuclídeos desse isótopo. A esses processos que visam aumentar a concentração de 235U dá-se o nome de enriquecimento de urânio. Diferentes propósitos requerem diferentes níveis de enriquecimento. Para a extração de energia nuclear, uma concentração de 3% de 235U já é suficiente [24]. Isso porque, nesse caso, não se é sequer desejável que todos os nêutrons resultantes de uma reação se encontrem com outro nuclídeo de 235U e provoquem outras fissões, pois isso provocaria um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada. Ao contrário, uma parte essencial no desenho de um reator nuclear são as chamadas barras de controle, constituídas de materiais altamente eficientes na absorção de nêutrons – como boro ou ligas de metais de terra rara –, justamente para que os nêutrons em excesso sejam capturados, como representado pelos “X” na Figura 14, permitindo que o operador da usina mantenha controle sobre a quantidade de energia extraída. Ainda outro elemento importante em um reator é a presença de um material moderador – como água ou carbono na forma de grafite –, que reduz a energia cinética dos nêutros secundários de ∼1MeV para ∼0.02eV, o que aumenta a probabilidade de fissão do urânio-23518. Para propósitos bélicos, o objetivo é a liberação da maior quantidade de energia possível. Nesse caso é preciso uma concentração muito maior de 235U, acima de 85%, para que a maioria dos nêutrons secundários seja absorvida por outro nuclídeo de 235U e induza outra fissão, gerando um crescimento exponencial da energia liberada, como ilustrado na Figura 15. Uma tal reação em cadeia é denominada supercrítica. Figura 15: Reação supercrítica de fissão nuclear em cadeia. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. 2.7. Fusão nuclear e a origem dos elementos Uma aula sobre fusão nuclear pode ser motivada pela seguinte questão-problema: como foram formados os elementos químicos que nos rodeiam? O(a) docente pode iniciar mostrando à turma o gráfico das abundâncias dos elementos no sistema solar, Figura 16, e pedir que os alunos discutam o comportamento da curva. Quais são suas características mais marcantes? Algum comportamento da curva lhes parece intuitivo? Algum parece contra-intuitivo? Acham estranho que haja um predomínio de hidrogênio e hélio no Universo? Podem oferecer uma explicação ao comportamento oscilatório da curva, i.e. ao fato de que elementos com número atômico par são ≈10 vezes mais abundantes que os elementos vizinhos, com Z ímpar? Figura 16: Abundância relativa de elementos no sistema solar, calculada como o número de átomos do elemento em questão para cada 106 átomos de Si. Dados extraídos da ref. [32]. Ao instigar os alunos com essa problematização, deve-se esperar respostas que partam de uma perspectiva a-histórica, sugerindo que o Universo sempre teve a constituição que observamos atualmente. O principal propósito dessa aula deve ser desconstruir essa perspectiva, demonstrando que também na Física há historicidade, e que tampouco nas ciências naturais existe um status quo eterno e absoluto, mas que para entendermos a Natureza é preciso compreender os processos que resultaram em sua configuração atual. Mais ainda, a discussão culmina no vislumbre da história humana como apenas um capítulo de uma longa história universal, em que simples partículas elementares se organizam em estruturas cada vez mais complexas – núcleons, nuclídeos, átomos, moléculas, nuvens gasosas e protoestruturas rochosas, estrelas e planetas, moléculas orgânicas autorreplicantes, a vida complexa –, até chegar na gênese do ser humano e na história de nossas culturas. Com isso, o(a) estudante pode contemplar a interconexão entre todas as subáreas em que se divide o conhecimento humano – todas as “matérias” ou “disciplinas” escolares –, ao se enfatizar como cada uma lida com um capítulo específico de uma história universal que as conecta e que tudo abrange. 2.7.1. Nucleossíntese primordial Para entender a gênese dos elementos sob a perspectiva histórica supracitada, basta introduzir um conceito muito simples, mas que é a base de toda a cosmologia contemporânea: o fato observável de que nosso Universo está em expansão [30, 31]. Uma forte evidência em favor dessa asserção é a observação de que as galáxias distantes estão se afastando de nós. Se o Universo está se expandindo, isso implica que no passado toda sua matéria e energia estavam contidas em uma região muito menor do que ocupam atualmente, o que significa que as temperaturas deviam ser altíssimas – basta lembrar-se que um gás contraído adiabaticamente se aquece. Ou seja, o Universo primordial era muito quente, e à medida que evolui e se expande, ele se resfria. Altas temperaturas significam alto poder dissociativo, ou seja, quanto maior a temperatura, mais difícil é manter estruturas complexas, pois elas tendem a se dissociar em partes mais elementares. Exemplos são a dissociação da estrutura cristalina de um sólido quando do derretimento do material, e das ligações intermoleculares de um líquido durante a vaporização, bem como a ionização de um gás, que, aquecido a temperaturas suficientemente elevadas, tem os elétrons atômicos dissociados dos núcleos, tornando-se um plasma. Assim, o Universo inicia sua história com matéria e energia em sua forma mais simplificada, mais rudimentar, como simples partículas elementares, e somente à medida que ele se expande e resfria é que estruturas mais complexas começam a se formar. Mas por que os nuclídeos se formam como estruturas complexas estáveis durante essa história? A resposta vem novamente da Figura 11, especificamente do comportamento crescente da curva para nuclídeos leves. Esse comportamento indica que o processo denominado de fusão nuclear é energeticamente favorecido, em que a fusão de dois nuclídeos mais leves resulta em um mais estável, i.e. com maior energia de ligação, ocorrendo liberação de energia nesse processo. Ou, reciprocamente, a dissociação dessas estruturas não ocorre espontaneamente, mas requer que se forneça energia em quantidade que já não está disponível quando a temperatura do Universo torna-se suficientemente baixa. Consideremos, então, o Universo nos primeiros segundos de sua história, quando já havia prótons e nêutrons19, mas ainda não se haviam formado estruturas mais complexas – ou seja, não havia átomos ou sequer núcleos atômicos, e os prótons e nêutrons encontravam-se livres20. É claro que, nessa situação, suas energias de ligação são nulas, simplesmente por não estarem ligados a nada. Mas à medida que se aproximam o suficiente, entrando no alcance de atuação da interação nuclear, uma força os atrai de modo a formarem um estado ligado: um nuclídeo de 2H, também denominado dêuteron. Como o processo de formação do dêuteron é espontâneo, há liberação de energia durante a reação. Ou, dito de outra forma: é mais energeticamente custoso manter prótons e nêutrons isolados do que ligados. A energia liberada nada mais é do que a energia de ligação do dêuteron21, e o processo é descrito por (17) p + n → 2 H + 2.2 MeV, cuja ilustração seria análoga à Figura 9, porém vista da direita para a esquerda. Essa reação ocorreu abundantemente quando o Universo tinha apenas poucos minutos de idade, e constitui o primeiro estágio do processo de formação de nuclídeos mais complexos a partir dos prótons e nêutrons que se encontravam inicialmente livres – processo que recebe o nome de nucleossíntese primordial. Esses processos primordiais de fusão nuclear continuam até culminarem na produção de 4He, como exemplificado na cadeia de reações da Figura 17. Esse nuclídeo é tão mais estável que seus vizinhos (i.e. os processos de fusão que lhe dão origem são tão energeticamente favoráveis) que praticamente todos os dêuterons, assim que formados, tendem a continuar se fundindo22 até formar 4He. Figura 17: Exemplo de processo de fusão de dêuterons e prótons para formação de 4He. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Nesse ponto, o processo de fusão encontra um gargalo, por não existirem elementos estáveis de números de massa 5 ou 8 – por exemplo, uma eventual fusão de dois 4He produz 8Be, que logo decai novamente em 24He. A cadeia de fusão só pode prosseguir, portanto, passando pela produção de 12C – este, sim, altamente estável –, mas isso demanda um encontro quase simultâneo de 34He, o que é altamente improvável exceto em situações de altíssima densidade de matéria, que não é o caso durante essa época cosmológica. Um outro fator importante a se considerar, nesse processo, é a elevada energia cinética que as partículas devem possuir23 para serem capazes de “superar” a intensa repulsão coulombiana e se aproximarem a uma distância ≲1fm, de modo a possibilitar a atuação da interação nuclear para promover a fusão. A energia potencial de duas cargas elementares e a uma distância r∼1fm é24k⁢e2/r∼1⁢MeV, portanto a energia média das partículas não pode ser muito inferior a esse valor25. À época da nucleossíntese essa energia média era ∼0.1MeV [30], o que corresponde a temperaturas da ordem de 1 bilhão de kelvins (!), muito acima da temperatura média do Universo atualmente, ∼3K. Considerando-se todos os fatores acima, estima-se que, após concluída essa época de nucleossíntese primordial, cerca de 75% da massa do Universo encontrava-se na forma de prótons livres (i.e. 1H) e 25% era 4He, com 0.01% de deutério (2H) e 3He, e apenas traços de 7Li [24, 30]. O excelente acordo entre essas previsões teóricas e as abundâncias observadas no meio interestelar constitui uma das mais robustas evidências de que o Universo já passou por uma fase extremamente quente, como prevê a teoria do Big Bang. 2.7.2. Nucleossíntese estelar Mas como foram formados os elementos mais pesados? Os pré-requisitos listados acima, de altíssimas densidades e temperaturas, são satisfeitos no interior de estrelas supermassivas, como as chamadas gigantes vermelhas. Para entender um pouco esse processo, vale discutir brevemente sobre o ciclo de vida dessas estrelas. O início da vida de uma estrela se dá quando um aglomerado de gases primordiais, constituído essencialmente de hidrogênio e hélio, em abundância não muito diferente daquelas resultantes da nucleossíntese primordial, colapsa devido à sua própria atração gravitacional. À medida que o gás é comprimido, sua temperatura aumenta, até que, eventualmente, torna-se alta o suficiente para ativar a fusão de hidrogênio em deutério26, e, em última instância, hélio, segundo a Figura 17. Essas reações predominam no primeiro estágio de vida estelar – como é o caso do Sol –, e delas decorre liberação de energia na forma de radiação (assim como toda fusão de elementos com A≲56). É da fusão nuclear que as estrelas obtêm sua energia – é por isso que elas têm “brilho próprio”. Mais ainda, a pressão dessa radiação contrabalanceia o colapso gravitacional da estrela e a mantém em equilíbrio. O segundo estágio da vida estelar se inicia com o esgotamento do hidrogênio no núcleo. Os processos de fusão são temporariamente interrompidos, e, sem a pressão de radiação, o núcleo volta a colapsar gravitacionalmente. Isso faz com que suas temperatura e densidade aumentem novamente, até atingir um patamar que ativa a fusão de hélio. Quando a densidade de hélio-4 é suficientemente alta, ocorre fusão em 8Be e, antes que esse decaia, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao berílio, produzindo 12C, conforme ilustrado na Figura 18. Uma vez superado o gargalo causado pela instabilidade do berílio, outras absorções de 4He podem ocorrer, formando uma série de elementos mais pesados como C 12 ⁢ ⟶ He 4 16 ⁢ O ⁢ ⟶ He 4 20 ⁢ Ne ⁢ ⟶ He 4 ⁢ Mg 24 ⁢ … Figura 18: Dois nuclídeos de 4He se fundem e formam 8Be, que é instável e decai após cerca de 10-16s. No entanto, no interior de estrelas muito massivas, a densidade de matéria pode ser tão alta que, antes de decorrido esse tempo, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao 8Be, produzindo 12C. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Entretanto, à medida que se progride nessa cadeia, há um aumento do número de prótons nos nuclídeos envolvidos e, consequentemente, cresce a repulsão coulombiana, de modo que são necessárias temperaturas cada vez maiores (ou seja, estrelas mais massivas) para continuar a fusão. Há, ainda, outros processos nucleares, como a absorção de prótons por nuclídeos pesados, decaimentos β, e emissões de prótons e nêutrons, que dão origem a outros isótopos e elementos de número atômico ímpar, como o nitrogênio. No entanto, são processos secundários relativamente à cadeia de fusão descrita acima, e portanto espera-se que a abundância de elementos com número atômico par seja relativamente maior do que para Z ímpar. Essa predição é confirmada pela Figura 16. A abundância de elementos com número atômico par é pelo menos uma ordem de magnitude maior do que para Z ímpar. Note, também, a abundância excepcionalmente grande de ferro (e também de níquel), devido ao fato de serem elementos finais nas cadeias de fusão, após os quais a fusão deixa de ser exotérmica, i.e. deixa de liberar energia (vide Figura 11). Quando, após essa sequência de fusões, o núcleo de uma estrela supermassiva passa a ser constituído majoritariamente de ferro e níquel (i.e. elementos com A∼56, que estão no ápice da curva da Figura 11), os processos de fusão são interrompidos, por não serem mais energeticamente favoráveis, e portanto não há mais energia liberada em radiação. O núcleo colapsa sob sua própria gravidade, a densidade aumenta drasticamente, até formar um buraco negro – se a massa for suficientemente grande para isso – ou uma explosão de supernova, em que a maior parte do material estelar é ejetado, restando somente uma estrela de nêutrons27. A energia liberada nessa imensa explosão é parcialmente utilizada para realizar fusões posteriores (que são reações endotérmicas), resultando na formação de elementos mais pesados que A≳56 através da absorção de vários nêutrons, que posteriormente sofrem decaimento do tipo β e são convertidos em prótons, originando elementos de elevado número atômico. No entanto, supernovas são objetos bastante mais raros no Universo atual do que estrelas massivas ativas, e a abundância de elementos muito pesados é, por isso, comparativamente muito menor. Na Figura 16 consta apenas a soma de todas essas abundâncias. A explosão de uma supernova é também o mecanismo pelo qual os elementos pesados, inicialmente produzidos no interior de estrelas, são lançados ao espaço. A poeira dessa explosão eventualmente se condensa, atraída pela sua própria força gravitacional, e pode vir a formar um novo sistema estelar, como o nosso. Tudo o que é formado de elementos mais pesados do que o hélio foi gerado no interior de uma estrela supermassiva e lançado ao espaço após uma tal explosão de supernova. É por isso que se pode afirmar que somos, todos, poeira de estrelas [2]. 2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24], o que dá ∼8.2×1010J por grama de combustível28, ao passo que uma fusão deutério-trítio, (18) H 2 + 3 H → 4 He + n + 17.6 ⁢ MeV , libera ∼3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear. Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão. 2.8. Energia nuclear: uma aula de CTSA Toda a discussão anterior culmina em uma oportunidade de se realizar um amplo debate com os(as) estudantes sobre os impactos socioambientais da energia nuclear. 2.8.1. Armas nucleares Em colaboração com o(a) professor(a) de história de seu centro de ensino, o(a) docente pode discutir o contexto e as consequências do lançamento das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 – até hoje os únicos casos de uso militar de armamentos nucleares na história –, bem como a corrida armamentista subsequente que levou à proliferação desses artefatos, e os atuais acordos e negociações almejando a não-proliferação e o desmantelamento dos mísseis existentes. Imagens ilustrando o poder destrutivo desse tipo de armamentos, incluindo comparações das cidades japonesas atingidas, antes e depois da destruição, podem ser encontradas em [33, 34, 35]. 2.8.2. Ciência e Ética Não é incomum, na história humana, que resultados de pesquisas científicas sejam utilizados para servir fins belicistas ou até mesmo propósitos genocidas. E, embora o senso-comum contemporâneo não hesite em trivialmente atribuir toda a responsabilidade aos políticos, fato é que nenhum desses projetos poderia ser bem sucedido se não fosse pela participação de cientistas extremamente competentes. Por outro lado, essas mesmas linhas de pesquisa frequentemente originam aplicações indiscutivelmente benéficas à humanidade, como aprimoramento de técnicas medicinais e farmacológicas. Nesse contexto, o(a) docente pode levantar uma salutar discussão interdisciplinar com algumas das questões: como a ciência e a sociedade civil poderiam/deveriam lidar com potenciais conflitos éticos advindos de uma determinada pesquisa científica? Como deve se portar o(a) cientista diante desses supostos dilemas? Há situações em que é desejável impor limites à nossa capacidade de exploração científica? Ou seja, existem casos em que a ignorância possa ser mais benéfica do que o conhecimento? Poderia ser essa ignorância um meio eficiente e desejável de se evitar catástrofes humanitárias? Esse debate não se limita à Física. Atualmente há amplas discussões no meio científico, e na sociedade civil em geral, sobre dilemas éticos envolvendo a engenharia genética, e os limites que se poderia ou se deveria impôr ao desenvolvimento dessas técnicas de manipulação gênica. Portanto essa atividade ofereceria uma excelente oportunidade de diálogo e interdisciplinaridade envolvendo também os(as) docentes de Filosofia, História, Sociologia e Biologia do centro de ensino em que atua o(a) docente de Física. 2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia. Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3, que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29, 36]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29, 36]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1. Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina. A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos. O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes. Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29. Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37]. A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos. Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40, 41]. Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42]. Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43]. Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção. O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45]. Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46]. Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15. Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47]. O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados. A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca. Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido. Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global. Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50, 51]. Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53]. Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais. 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8). 2.10. Aplicações de decaimentos radioativos Os decaimentos radioativos descritos acima possuem uma série de aplicações tecnológicas presentes em nosso quotidiano, que possibilitam uma abordagem dessa temática em um contexto CTSA. Faremos aqui alguns apontamentos dessas aplicações, que obviamente não encerrarão o tema. 2.10.1. Datação radioativa O decaimento radioativo é um processo quântico, portanto probabilístico. Isso significa que é impossível prever o momento exato em que um nuclídeo individual decairá. Mas a taxa de probabilidade de ele decair (i.e. a probabilidade por unidade de tempo) é mensurável, e, com isso, é possível determinar quanto tempo levará, em média, para que metade dos nuclídeos em uma amostra36 tenha decaído. A situação é análoga ao do lançamento de uma moeda: se lançarmos uma a cada segundo, é impossível saber qual será o resultado de cada lançamento, mas sabemos que precisaremos esperar aproximadamente 1000 segundos para obtermos 500 caras ou 500 coroas (e essa estimativa é tanto mais precisa, quanto maior o número de lançamentos envolvidos). Esse tempo para que metade da amostra tenha decaído é chamado de tempo de meia-vida, e cada elemento radioativo possui uma meia-vida característica. Por exemplo, o tempo de meia-vida do carbono-14 é 5730 anos. Isso significa que, se temos inicialmente uma amostra de 1g de 14C, após 5730 anos essa amostra conterá apenas 0.5g desse elemento, e após outros 5730 anos conterá apenas 0.25 g, e assim sucessivamente. De todo carbono presente na atmosfera terrestre, uma pequena fração37 está na forma de carbono-14, também chamado de radiocarbono. Enquanto um organismo está vivo, respirando e se alimentando (seja realizando fotossíntese, produzindo açúcares a partir de gás carbônico absorvido da atmosfera, seja fazendo parte de uma cadeia alimentar em cuja base estão esses organismos realizadores de fotossíntese), os átomos de carbono de seu corpo são constantemente “reciclados”, substituídos por novos oriundos da atmosfera, e parte desses átomos são do isótopo carbono-14. Isso significa que a concentração de carbono-14 em um organismo vivo é a mesma que na atmosfera. Quando o organismo morre, o carbono-14 deixa de ser reposto, e sua concentração de radiocarbono apenas diminui devido ao decaimento. Assim, se medirmos a concentração38 de radiocarbono em uma amostra de um organismo que já foi vivo, podemos determinar quanto tempo transcorreu desde sua morte. Como se vê, uma aula sobre datação por radiocarbono é uma excelente oportunidade para trazer a interdisciplinaridade à sala de aula, discutindo ciclo de carbono na biosfera, fotossíntese e cadeia alimentar. É importante ressaltar que a datação por radiocarbono só pode ser usada para datar matéria orgânica – por exemplo, ossos, restos de plantas, ou até artefatos arqueológicos, como cerâmicas enriquecidas por matéria orgânica. Ademais, não é possível datar com radiocarbono materiais com mais do que ∼50 mil anos de idade. Isso porque, após esse tempo, já transcorreram aproximadamente 10 meias-vidas do radiocarbono, e a fração desse elemento na amostra já é 1/210∼0.1% da concentração original. É claro que detectores mais precisos permitem extrapolar um pouco esse limite superior, mas não muito mais do que isso. Isso significa que fósseis de dinossauros não podem ser datados por radiocarbono, (i) porque um fóssil de dinossauro não é matéria orgânica, mas material rochoso que se sedimentou sobre os ossos do animal (ou seja, um fóssil é uma rocha), e (ii) porque dinossauros foram extintos há cerca de 65 milhões de anos, portanto qualquer vestígio de carbono-14 no fóssil já teria desaparecido completamente após esse período. Isso não quer dizer que não se pode fazer datação de rochas por meio de decaimentos radioativos. Ao contrário, essas datações são possíveis, desde que se use o decaimento de outros elementos como “régua”, como o rubídio-87, que decai via (23) Rb 87 → 87 Sr + e - + ν ¯ e , com meia-vida 4.9×1010anos. O método é essencialmente o mesmo descrito acima, mas com algumas diferenças. Nesse caso não se conhece a abundância inicial de rubídio-87 na amostra inicial, então mede-se também a abundância do elemento-filha desse decaimento, o estrôncio-87, e também o outro isótopo estrôncio-86 (que é estável). Com essas informações é possível determinar a idade de meteoros e, a partir daí, inferir a idade do Sistema Solar (e, portanto, do planeta Terra) como 4.5×109 anos [56, 57]. É importante mencionar que a datação radioativa não é a única forma de se datar um artefato, e nem sempre é a mais precisa. Na arqueologia, o mais comum é datar um objeto com base em outros itens encontrados em uma mesma escavação, como moedas, evidências textuais (em lápides ou cerâmicas), práticas culturais (por ex. a forma como o objeto foi fabricado ou o material utilizado), e outros indícios que apontem para o contexto histórico do objeto desenterrado. Ainda outra forma de datação muito precisa é a chamada dendrocronologia39, tão precisa a ponto de ser usada para calibrar a datação feita por métodos radioativos descritos acima! Esse método baseia-se no fato de que os troncos das árvores são formados por vários anéis (vide Figura 25), produzidos (em média) um por ano, e cuja espessura, coloração e outras características dependem das condições climáticas e ambientais da região onde a árvore se desenvolveu. Assim, fazendo um estudo de diversas árvores de uma região em várias épocas diferentes, podemos fazer uma tabela de quais anos calendáricos correspondem a quais características de anéis. Tendo essa correspondência em mãos, ao encontrarmos um pedaço de madeira com uma determinada sequência de anéis, podemos inferir a época em que a árvore viveu (e, consequentemente, inferir a época em que um certo artefato arqueológico de madeira foi produzido). A dendrocronologia é muito usada, por exemplo, para datação de obras de arte com base em suas molduras40. Figura 25: Corte transversal de um tronco de árvore mostrando seus anéis. A quantidade de anéis indica a idade da árvore. A coloração, a espessura e outras caracterizações dos anéis indicam as condições ambientais em que a árvore se desenvolveu. Fazendo um levantamento estatístico com diversas árvores, é possível fazer uma associação de quais anos calendáricos correspondem a quais sequências de anéis. Uma vez estabelecida essa relação, qualquer artefato de madeira pode ser datado a partir da sequência de anéis da madeira. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 4.0 [15]. É interessante trazer a discussão do parágrafo acima para sala de aula, para evitar a disseminação do mito de que os métodos baseados em decaimentos radioativos são “os melhores” ou “mais precisos”41. Ao contrário, trata-se de um dentre muitos métodos de datação que se complementam. Novamente o convite à interdisciplinaridade faz-se presente, por se tratar de uma temática que envolve a física – na parte dos decaimentos –, a biologia – na dendrocronologia –, a história – na arqueologia – e também as artes – na medida em que essas técnicas são aplicadas para determinar a origem e a originalidade de pinturas e outras obras famosas. 2.10.2. Aplicações medicinais Uma das aplicações medicinais de decaimentos radioativos já foi discutida na primeira parte desta série de artigos: trata-se do uso de decaimentos β+ para realização de exames como o PET scan[1]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo (por ex. o 18F) que decai por β+, ou seja, emitindo pósitrons. Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com a glucose usual, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo decai42, emitindo um pósitron. Esse pósitron se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 26. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 26: Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [58]. Outra aplicação medicinal desses decaimentos radioativos é a chamada radioterapia para combate a cânceres. As partículas emitidas em decaimentos radioativos (as partículas α, os elétrons e pósitrons ou a radiação γ) são tipicamente muito energéticas e, quando incidem sobre células de organismos vivos, podem desintegrar o DNA e danificar sua capacidade reprodutiva. As células cancerígenas são justamente aquelas que se reproduzem descontroladamente, a uma taxa muito maior que as células normais do organismo. Assim, atacando a região cancerígena com radiação e destruindo o DNA de suas células, a reprodução delas fica comprometida e o câncer pode ser reduzido ou até eliminado. Em geral, as células saudáveis em torno do câncer também serão afetadas pela radiação, mas se variarmos o ângulo de incidência da radiação, mantendo a região afetada no centro (como ilustrado na Figura 27) podemos minimizar o dano a regiões saudáveis enquanto maximizamos o bombardeamento ao tumor. Figura 27: Bombardeamento de um tumor por raios γ em sessão de radioterapia. O ângulo de incidência da radiação é variado a fim de maximizar o dano ao tumor, minimizando o dano às regiões saudáveis no seu entorno. Fonte: adaptado de [59], distribuído sob licença Creative Commons BY 4.0 [60]. Outra forma de radioterapia é via implantes do tamanho de grãos de arroz, contendo material radioativo, que são inseridos na região do tumor. Esse material decai ao longo do tempo e danifica as células tumorosas vizinhas ao implante, atuando como uma radioterapia prolongada e constante [59]. Por fim, nota-se que a radioterapia é apropriada para o caso de tumores bem localizados em uma região do corpo. Há, ainda, outros tratamentos contra câncer, como a quimioterapia, que consiste na administração de uma substância que inibe a divisão celular, fazendo com que as células cancerosas morram sem se reproduzir. Nesse caso, não se trata de uma terapia com materiais radioativos, e, sim, com substâncias químicas – daí o nome do tratamento. Como se vê, uma aula sobre aplicações medicinais da radioatividade abre uma janela para a exploração interdisciplinar da física com a biologia, envolvendo tanto física nuclear quanto biologia celular, DNA e ciclo de reprodução da célula. Além disso, trata-se de uma excelente oportunidade para, nesse contexto interdisciplinar, utilizar uma abordagem CTSA em sala de aula. 2.10.3. Esterilização e conservação de alimentos Como acabamos de mencionar, a radiação proveniente de decaimentos nucleares pode ser danosa a organismos vivos, a depender da energia da partícula emitida. Assim, outra utilidade prática desses decaimentos é na esterilização de equipamentos médicos (quando se deseja eliminar microorganismos) e também na conservação de alimentos, eliminando-se bactérias, fungos, larvas, insetos e demais agentes biológicos indesejáveis. Além disso, através da irradiação pode-se postergar a maturação desses alimentos, fazendo com que durem mais tempo e possam ser transportados por maiores distâncias sem que estraguem. No Brasil, a irradiação de alimentos é uma técnica reconhecida e regulamentada pela ANVISA [61]43. De acordo com essa regulação, a radiação permitida para esse fim são os raios γ provenientes de decaimentos do cobalto-60 e do césio-13744, ou raios-X (que também são radiação eletromagnética, como os raios γ, mas nesse caso de energia até 5 MeV) ou até mesmo elétrons acelerados a energias de no máximo 10 MeV. Assim como tudo o que envolve radioatividade, essa aplicação na indústria de alimentos gera preocupações que merecem ser endereçadas com cuidado. A primeira preocupação imaginável é que o alimento possa se tornar radioativo. Isso é impossível, porque a irradiação é feita com elétrons ou radiação eletromagnética, que são incapazes de alterar os isótopos dos elementos presentes na comida45,46. Por exemplo, é impossível converter carbono-12 (estável) em carbono-14 (radioativo) com bombardeamento de fótons ou elétrons. Uma preocupação mais pertinente diz respeito à possível degradação nutricional do alimento irradiado, bem como perdas de qualidades sensoriais, como sabor e aroma. Muitos estudos foram e continuam sendo realizados para investigar essa possibilidade. De fato, os estudos mostram que alguns nutrientes vitamínicos – como a vitamina C, por exemplo – são ligeiramente danificados pelo procedimento, a depender da temperatura em que eles são realizados47, e da dosagem de radiação utilizada [63, 64]. Contudo, assim como na discussão sobre energia nuclear, é preciso comparar esse resultado com o que ocorre nos processos de esterilização alternativos. Por exemplo, a pasteurização a altas temperaturas também implica em perdas de nutrientes. Nessa perspectiva comparativa, as conclusões dos estudos são de que o método de esterilização por irradiação não é aplicável a todos os alimentos – até porque muitos têm o sabor afetado de modo a torná-los desagradáveis ao paladar, como é o caso do leite –, mas que em outros casos as possíveis perdas vitamínicas são comparáveis àquelas advindas dos outros métodos mais usuais de esterilização. Importante mencionar que esse método não deve ser aplicado para substituir as boas práticas de higiene na produção e manuseio dos alimentos, e, sim, para complementá-las. Isso está determinado muito claramente até nas diretrizes da ANVISA [61]. Ademais, essas diretrizes também determinam que no rótulo do produto deve constar a frase “ALIMENTO TRATADO POR PROCESSO DE IRRADIAÇÃO”, a fim de que o consumidor possa fazer uma escolha informada e consciente. Justamente por ser uma temática que instiga o debate, e que tem impacto direto em nossa vida quotidiana – por afetar nossa alimentação –, essa temática é ideal para uma aula CTSA em um contexto interdisciplinar envolvendo a física, a biologia – na discussão do aspecto nutricional dos alimentos –, a química – no debate sobre como a radiação pode destruir moléculas ou catalizar reações que produzam novas substâncias – e também a geografia – levantando a discussão sobre a importância de se ter técnicas de preservação e prolongamento do tempo de vida de um alimento, e o impacto socioeconômico dessas tecnologias na indústria alimentícia. Abordar essas temáticas em uma perspectiva de debate fomenta o desenvolvimento do raciocínio do(a) estudante e sua capacidade de elaborar uma opinião eloquentemente. Não há certo ou errado, desde que todas opiniões sejam fundamentadas em dados e fatos. Pode-se, assim, incentivar a pesquisa por parte dos(as) discentes, para que se preparem à discussão. O debate pode também servir para explorar a criatividade dos(as) estudantes, que podem apresentar suas falas em forma de um telejornal, peça teatral, música, ou outras formas que atraiam a atenção do(a)aluno(a). 2.10.4. Tecnologias quotidianas A radioatividade encontra aplicações também em tecnologias quotidianas, presentes até mesmo em muitas residências. Um exemplo são os detectores de fumaça iônicos, ilustrados na Figura 28. No interior desses detectores há uma câmara de ionização, que consiste de duas placas paralelas conectadas a uma bateria e exposta a um elemento radioativo emissor de partículas α, tipicamente o amerício-241. Essas partículas α ionizam o ar entre as placas (i.e. removem elétrons dos átomos), fazendo surgir uma corrente no circuito. As partículas de fumaça, quando entram na câmara, desionizam o ar, reabsorvendo as partículas carregadas, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. Figura 28: (Esquerda) Esquema do interior de uma câmara de ionização, parte integrante de um detector de fumaça iônico. A câmara contém um elemento emissor de α (tipicamente amerício-241), que ioniza o ar no interior da câmara, provocando uma corrente entre as placas conectadas à bateria. Quando há fumaça, os íons são parcialmente reabsorvidos e o ar é novamente neutralizado, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. (Direita) Interior de um detector de fumaça iônico. A câmara de ionização está marcada com a etiqueta amarela, que avisa sobre seu conteúdo radioativo. Abaixo dela está o alarme, e à direita a bateria que alimenta o circuito. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 2.0 [66]. Cabe mencionar que este não é o único tipo de detector de fumaça disponível no mercado. Há, ainda, os chamados detectores óticos, que funcionam à base do efeito fotoelétrico [1]. Uma ilustração do funcionamento desses detectores é dada na Figura 29. Figura 29: Esquema ilustrando o funcionamento de um detector de fumaça ótico. Em condições normais, um LED emite radiação infravermelha que não atinge o fotodetector. Na presença de fumaça, a luz é espalhada e desviada de sua trajetória retilínea inicial, incidindo no detector e ativando o alarme. apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física Nuclear, organizados de maneira fluida em continuidade à primeira parte da sequência didática, cujo foco foi a introdução à Física de Partículas e a Eletrodinâmica Quântica [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Da mesma forma que na primeira parte desta sequência didática, os conceitos relevantes à temática eram construídos em conjunto aos discentes a partir de conexões com seus conhecimentos prévios, de forma que o engajamento dos estudantes presentes nas aulas foi mantido ou aumentou consideravelmente, como veremos na seção 3.5 3.5. Resultados Nesta seção apresentamos os resultados referentes à incidência, durante a quarta e quinta aulas da sequência didática, dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento, apresentados na seção 3.4 acima. Uma publicação à parte aprofundará na análise da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência. A incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aula são apresentados na Figura 30. Figura 30: Incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aulas sobre Física Nuclear. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 14,45%). Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, houve uma incidência similar de todos os três indicadores: seriação de informações, organização de informações e classificação de informações. No entanto, quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas (as três primeiras aulas da sequência didática [1]), percebemos um aumento de, no mínimo, duas vezes nas incidências de organização e classificação de informações, o que é natural pois, à medida que os alunos se deparam com novos conhecimentos, há uma maior necessidade de arranjá-los em suas estruturas cognitivas e estabelecer relações entre eles. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico percebemos uma leve queda no raciocínio proporcional quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas. Esse elemento do fazer científico foi estimulado nos momentos 4 e 5 da quarta aula, sobre o experimento de Rutherford-Geiger-Marsden e durante a discussão sobre teste de hipóteses na ciência (ver Tabela 1). No entanto, a incidência foi menor do que nos momentos sobre as semelhanças e diferenças entre as leis de Coulomb e a da Gravitação, e sobre as equações de Maxwell do primeiro bloco de aulas da sequência didática [1]. Com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, observamos um aumento de quase 100% na incidência dos indicadores de justificativa e de explicação quando comparada à incidência desses mesmos indicadores no primeiro bloco de aulas [1]. Tal resultado foi devido, principalmente, à quinta aula pois, nela, os estudantes foram não só estimulados a incorporar ideias durante todas as discussões em sala de aula, fortalecendo com argumentação os aspectos abordados mas, também, os estudantes agiram com autonomia para trazer novas informações e fontes para as discussões. Inclusive, o indicador de explicação reúne uma série de ações do fazer científico e não foi mera coincidência obter sua maior incidência na quinta aula, justamente a que mais engajou os estudantes até o presente momento da sequência. Na Figura 31 apresentamos os indicadores de engajamento presentes nas aulas consideradas neste trabalho para cada um dos tipos de engajamento e para três dos cinco alunos mais presentes nas aulas – Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, que estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Não apresentamos os resultados para os estudantes Peter e Emmy, como fizemos em trabalho anterior [1] sobre as três primeiras aulas da sequência, pois eles não estiverem presentes justamente na quarta e quinta aulas, foco deste trabalho. Figura 31: Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo para os três estudantes mais presentes nas intervenções da quarta e da quinta aulas da sequência didática. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram dos estudantes Werner e Albert, todas com expressividade, ainda mais quando notamos que houve apenas 10 e 16 momentos na quarta e na quinta aula, respectivamente. Além disso, cabe ressaltar que o estudante Albert foi o menos participativo nas três primeiras aulas da sequência e, a partir da quarta aula, após se mostrar mais aberto e à vontade em sala, revelou um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. A partir da quinta aula, o mesmo estudante demonstrou ainda mais engajamento, iniciando pelo comportamental e se aprofundando no engajamento emocional e, principalmente, no engajamento cognitivo. De fato, enquanto nas três primeiras aulas da sequência Albert apresentou apenas 7, 14 e zero intervenções demonstrando engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente [1], esse mesmo estudante obteve, na quarta e quinta aulas, 64, 15 e 48 intervenções de engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, Albert apresentou uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento. Junto a Werner, com engajamento significativo ao longo de todas as aulas da sequência, Albert foi um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo nos índices de Albert é indicativo de que a sequência foi aplicada de maneira bem-sucedida com base na dialogicidade do docente aliada à temática contemporânea da Física e mostrou-se capaz de trazer os estudantes para as aulas, até mesmo aqueles mais inibidos ou inseguros nas primeiras aulas da sequência. .

Na intervenção realizada na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Física Nuclear, serviu como base para a elaboração da segunda parte da sequência didática sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em duas aulas, a quarta e quinta aulas, ministradas nos dias 7 e 10 de outubro do ano de 2019, com duração de 52 e 65 minutos, respectivamente.

A primeira aula do bloco de aulas sobre Física Nuclear, em análise neste trabalho, foi a quarta aula da sequência didática de dez aulas48 48 Ressaltamos que as três primeiras aulas da sequência didática versaram sobre uma introdução à Física de Partículas e a interação eletromagnética, cujo material e análise podem ser consultados no primeiro artigo desta série [1]. . O primeiro momento da quarta aula foi de breve revisão da terceira aula da sequência. Na terceira aula, tópicos introdutórios de Mecânica Quântica foram abordados para a construção dialógica da dualidade onda-partícula, do fóton como mediador da interação eletromagnética e do conceito de antipartícula ou antimatéria a partir do pósitron, finalizando com um debate sobre aplicações na Medicina, como nos raios-X e na tomografia PET-scan. Mais detalhes sobre a terceira aula da sequência didática podem ser encontrados em [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Os principais tópicos abordados em sala no restante da quarta e da quinta aulas, com as respectivas subseções discutidas detalhadamente na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Como no trabalho anterior [1], destacamos que os momentos didáticos apresentados abaixo não têm a pretensão de constituir um material formulaico, um receituário já pronto para ser seguido acriticamente pelo(a) docente, com um roteiro fixo das aulas. Preferimos elaborar um material que sirva como matéria-prima para que o(a) docente prepare sua aula como julgar mais adequada em seu contexto, um material de caráter sugestivo e maleável, adaptável às aspirações, necessidades e circunstâncias de cada docente e de cada turma. Entretanto, o conjunto de momentos didáticos abaixo foi elaborado de modo a iniciar com um conteúdo já familiar a discentes e docentes, progredindo paulatinamente de modo a se construir a estrutura e a dinâmica do núcleo atômico de forma intuitiva, acessível à apreensão e sempre suscetível a debates entre os estudantes. 2.1. O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden O ponto de partida natural para uma discussão sobre a dinâmica do núcleo atômico é a própria descoberta da existência do núcleo, ou seja, um estudo sobre o experimento de Geiger e Marsden, bem como sobre a proposta de modelo atômico de Rutherford visando explicar os dados observados. Além de essa abordagem explicitar o desenvolvimento histórico de nosso conhecimento sobre o átomo, o experimento da folha de ouro de Geiger-Marsden e o modelo de Rutherford são assuntos já comumente discutidos no ensino médio, e também por isso constituem um ponto de partida ideal para o aprofundamento da discussão rumo a outras temáticas de Física Nuclear e de Partículas nesse nível deensino. 2.1.1. O modelo atômico de J. J. Thomson Em seu experimento de 1897, J. J. Thomson demonstrou a existência de partículas de massa menor do que a do átomo mais leve1, e argumentou que tais corpúsculos devem ser constituintes fundamentais de todos os elementos químicos, pois as propriedades dessas partículas independiam do material do eletrodo de onde elas eram emitidos. Imediatamente se impôs a questão de como esses corpúsculos – os elétrons – estariam organizados no interior dos átomos, para a qual Thomson ofereceu uma proposta de solução em artigo datado de 1904 [11]. No chamado “modelo atômico de Thomson”, os elétrons, que possuem carga elétrica negativa, estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total do átomo se anula, como ilustrado na Figura 1. O raio da esfera positiva é o raio atômico, r∼10-10m, valor já conhecido na época2. Importante ressaltar que, embora usualmente o modelo de Thomson seja imaginado e apresentado como estático, o artigo de 1904 considerava os elétrons girando em circunferências de diversos raios, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons ditada pelas condições de estabilidade eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson já fazia algumas previsões a respeito de um comportamento periódico de propriedades atômicas, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Figura 1: (Esquerda) Ilustração do modelo atômico de Thomson. Os elétrons estão imersos em uma esfera uniforme de carga positiva, de modo que a carga total se anula. (Direita) Uma analogia é uma melancia, em que as sementes são elétrons e a polpa é a substância de carga positiva. Entretanto, cabe ressaltar que, no modelo proposto por Thomson, os elétrons não estão estáticos no interior da esfera, mas giram em circunferências de raios diversos, cada uma com uma capacidade máxima de elétrons, determinada por condições de estabilidade diante da mútua interação eletromagnética. Assim, o modelo de Thomson prevê um comportamento periódico para os átomos, dado pelo preenchimento de consecutivas camadas eletrônicas. Fonte: Domínio Público. Entre 1908 e 1913 [12, 13], visando testar o modelo de Thomson para o átomo, Rutherford sugeriu a Geiger e Marsden que realizassem uma série de experimentos bombardeando uma fina folha de ouro com partículas α altamente energéticas, oriundas do decaimento radioativo do Polônio-2143. O experimento está ilustrado na Figura 2. A fonte radioativa emite partículas α, que são núcleos de Hélio, com carga +2⁢e e massa de aproximadamente quatro vezes a massa de um próton, e 8000 vezes a massa de um elétron. Essas partículas incidem sobre a folha de ouro e são espalhadas, repelidas pela carga positiva do átomo. Figura 2: Esquematização do experimento de Rutherford-Geiger-Marsden. (1) Fonte radioativa emissora de partículasα. (2) Invólucro de chumbo com um pequeno orifício para colimar o feixe. (3) Feixe de partículasα. (4) Tela de sulfeto de zinco (ZnS) que fluoresce quando atingida por uma partícula α. (5) Folha de ouro. (6) Ponto de impacto do feixe na folha de ouro. (7) Feixes de partículas α espalhadas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Modelos diferentes para a estrutura atômica fazem previsões distintas sobre a probabilidade de as partículas incidentes serem defletidas a um determinado ângulo. Assim, realizando-se uma contagem do número de partículas espalhadas como fração do número de partículas incidentes no alvo, é possível testar diferentes modelos atômicos. O primeiro passo, portanto, é investigar a previsão de cada modelo quanto à fração de partículas desviadas a um dado ângulo. 2.1.2. Deflexão das partículas α no modelo de Thomson Qual é a predição para o espalhamento do feixe incidente segundo o modelo atômico de Thomson? Nesse modelo a carga positiva do átomo está distribuída por todo seu volume, ocupando uma esfera de raio r∼10-10m. Pelo fato de essa carga estar assim “diluída”, o efeito repulsivo é baixo e a partícula α incidente é muito pouco desviada. Esse resultado pode ser obtido mediante uma aplicação simples da conservação da energia, e oferece a possibilidade de se discutir esse princípio fundamental em uma situação diversa dos sistemas mecânicos simples em que esse assunto é usualmente introduzido, como blocos em rampas ou em queda livre. A Figura 3 ilustra a incidência frontal de uma partícula α em um átomo de Thomson, i.e. uma esfera uniformemente carregada com carga +Z⁢e, e contendo em seu interior Z elétrons de carga -e cada, de maneira que a carga total é nula. Enquanto a partícula α está longe do átomo, a força repulsiva não atua, pois o átomo é efetivamente neutro. Precisamos apenas considerar o que ocorre quando a partícula α começa a adentrar a esfera. Como os elétrons são muito mais leves do que a partícula α, suas contribuições ao desvio ou frenagem da partícula α são desprezíveis4, e podemos restringir a análise à interação com a carga positiva uniformemente distribuída no átomo. Nesse caso, à medida que a partícula α adentra o átomo, a carga positiva que a repele é efetivamente menor, até ser igual a zero no centro da esfera. Portanto a partícula α está submetida a uma maior força de repulsão quando ela começa a adentrar a esfera, igual a (1) F max = - k ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Figura 3: Incidência frontal de uma partícula α em uma esfera uniformemente carregada, como um átomo de Thomson. Fonte: Hyperphysics © Rod Nave [14], adaptado e publicado com autorização do autor. Portanto o trabalho realizado pela força repulsiva quando a partícula atravessa da extremidade ao centro da esfera, percorrendo uma distância r, certamente é inferior à Fmax ×r, de modo que a variação da energia cinética da partícula α é (2) Δ ⁢ K α ≲ - k ⁢ Z ⁢ e 2 r ∼ - 10 - 13 ⁢ m r ⁢ MeV , onde substituímos os valores numéricos Z=79 (correspondendo ao elemento ouro), e≈1.6×10-19C a carga elétrica elementar, k≈9×109⁢J⋅m/C2 a constante de Coulomb, e convertemos 1⁢J=(1.6×10-19)-1eV. A energia cinética de uma partícula α emitida por 214Po é 7.7 MeV. Ou seja, para r∼10-10m, a partícula α perde apenas cerca de 0.1% de sua energia cinética ao atravessar o átomo, uma variação desprezível, de modo que o átomo de Thomson é essencialmente transparente às partículas α altamente energéticas. O que ocorre no caso de uma colisão não-frontal? O maior desvio se dá quando a colisão é tangencial, como ilustrada na Figura 4. Isso porque uma partícula α que penetra a esfera, chegando a uma distância d<r de seu centro, interage somente com a carga contida no interior da esfera de raio d (pela lei de Gauss), portanto inferior à carga total do átomo, o que reduz o efeito repulsivo. Sendo vα a velocidade inicial da partícula α, o intervalo de tempo necessário para atravessar a esfera de diâmetro 2⁢r é (3) Δ ⁢ t ≃ 2 ⁢ r v α . Figura 4: Partícula α colidindo tangencialmente com uma esfera uniforme. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Durante esse intervalo de tempo, a partícula está submetida à repulsão coulombiana, que causa uma variação Δ⁢py da componente transversal da velocidade da partícula, dada por (4) F Coulomb = m ⁢ Δ ⁢ v y Δ ⁢ t = k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 r 2 . Da Figura 4 vê-se que o ângulo θ de desvio é tal que (5) sin ⁡ θ = Δ ⁢ v y v ′ ≃ Δ ⁢ v y v α , Figura 5: Esquematização do modelo de Rutherford para o átomo, com a carga positiva concentrada no núcleo ao centro, circundada pelas órbitas dos elétrons, que constituem a região denominada eletrosfera. Fonte: Domínio Público. onde usamos o fato de que v′≃vα, como já esperado devido à análise energética discutida acima. Dessa mesma análise segue-se que o ângulo de desvio é pequeno, θ≪1 e portanto sin⁡θ≈θ. Logo, das eqs. (3) e (5), vem que (6) θ ≃ k ⁢ 4 ⁢ Z ⁢ e 2 m ⁢ v α 2 ⁢ r ≃ k ⁢ 2 ⁢ Z ⁢ e 2 K α ⁢ r ≃ 0.02 o . Em suma, o desvio máximo da trajetória da partícula α, após interagir com um átomo de Thomson, é 0.02o. No experimento de Geiger-Marsden a folha de ouro tinha espessura da ordem de 1⁢μm, o que significa que o número de camadas de átomos da folha é 𝒩=10-6⁢m/10-10⁢m=104. Na colisão aleatória com muitos átomos, alguns desvios ocorrerão em uma direção, e outros na direção oposta. Nessa situação, o valor médio da deflexão total é 𝒩⁢θ≃2o, e é necessário uma combinação extremamente improvável de deflexões numa mesma direção para que se totalize um desvio maior que 90o5. De fato, a probabilidade de que isso ocorra é da ordem de 10-3500[16], ou seja, efetivamente zero. 2.1.3. O modelo de Rutherford Após realizarem o experimento, Geiger e Marsden notaram que cerca de 1 em cada 8000 partículas α eram defletidas de um ângulo maior que 90o, em flagrante desacordo com a expectativa do modelo de Thomson. Rutherford assim expressou seu espanto diante de tal resultado: “Foi a coisa mais incrível que já vi em minha vida. Foi quase tão incrível quanto se lançássemos um míssil contra um lenço de papel, e ele rebatesse e voltasse para nos atingir.” E. Rutherford O resultado do experimento demandava uma reformulação da estrutura atômica, que Rutherford completou em 1911 [17]. Sua solução pode ser compreendida a partir da equação (2): para que a repulsão eletrostática seja suficiente para frear completamente uma partícula α frontalmente incidente e fazê-la retornar no sentido oposto, é necessário que a variação da energia cinética seja da ordem da energia cinética incidente, Δ⁢Kα∼7.7MeV, o que demanda que a carga positiva do átomo esteja concentrada em uma região de raio r≲10-14m. Rutherford propôs, então, que toda a carga positiva do átomo estivesse contida em um único ponto, em torno do qual os elétrons orbitam a uma distância do centro da ordem do raio atômico, r∼10-10m. Essa região da carga positiva do átomo foi posteriormente denominada “núcleo atômico”. Um esquema do modelo do átomo proposto por Rutherford está ilustrado na Figura 5. A partir desse modelo, é possível computar o número de partículas incidentes na placa de ZnS como função do ângulo θ de espalhamento, que é proporcional a (7) N ⁢ ( θ ) ∝ 1 K α 2 ⁢ sin 4 ⁡ θ 2 . A Figura 6 ilustra os dados experimentais obtidos por Geiger-Marsden, a curva teórica predita pelo modelo de Rutherford, dada pela equação (7), bem como a curva esperada para o modelo de Thomson. O acordo entre o modelo de Rutherford e os dados experimentais é surpreendente, indicando a validade da hipótese do núcleo atômico. Figura 6: Contagem de partículas α incidentes sobre a placa de ZnS em função do ângulo de espalhamento. São mostradas as curvas teóricas para o modelo de Thomson (tracejada) e o modelo de Rutherford (linha sólida azul), bem como os pontos experimentais obtidos por Geiger e Marsden. O acordo entre o experimento e o modelo de Rutherford é impressionante, corroborando a hipótese de que a carga positiva do átomo se concentra em um pequeno núcleo. Figura 7: (Esquerda) Ilustração do padrão de difração produzido por uma onda de comprimento λ ao atravessar um orifício de diâmetro D. O disco luminoso no centro da imagem é circundado de anéis concêntricos, alternando regiões sombreadas e luminosas. O gráfico ilustra a intensidade da luz nessas regiões, em padrão característico da difração por um orifício. O ângulo θ referente à localização do primeiro anel sombreado é da ordem de θ∼λ/D. Fonte: Plato/University of Reading [21]. (Direita) Padrão de difração obtido pela passagem de um laser por um orifício. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. 2.1.4. Discussão: como se constrói conhecimento científico? Os momentos didáticos sugeridos acima culminam em uma excelente oportunidade de se discutir, em sala, sobre a natureza da ciência e o “método científico”. Nota-se, no processo descrito acima, as seguintes etapas: (i) construção de um modelo teórico para representação de um objeto físico, como o modelo de Thomson para o átomo; (ii) elaboração de um experimento capaz de testar as previsões teóricas do modelo, como o experimento de Geiger-Marsden no caso presente; note que, para isso, é essencial que o modelo seja capaz de prever o resultado de algum experimento, e que saibamos determinar essa previsão, como fizemos acima para o átomo de Thomson; (iii) realiza-se o experimento e, se o resultado contradiz a expectativa do modelo, ele deve ser modificado; (iv) um novo modelo é formulado de modo a explicar o resultado dos experimentos; com isso, retorna-se ao item (i) acima. Esse processo, embora extremamente simplificado, ilustra bem a dialética entre teoria e experimento, fundamental para o desenvolvimento científico. Assim como não basta formular uma teoria que não se sustente frente a resultados experimentais, é igualmente ilusório imaginar que a ciência possa progredir pela simples observação passiva de fenômenos, sem uma estrutura teórica prévia que sirva de orientação para o desenvolvimento de experimentos voltados a testá-la. Ressalta-se, a esse respeito, que a ideia do experimento de Geiger-Marsden surgiu após a formulação do modelo atômico de Thomson. Antes disso, o átomo era visto como uma esfera neutra, e não se esperaria nenhum desvio das partículas α por forças eletrostáticas, portanto o experimento jamais teria sido elaborado. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes debatam em sala as seguintes questões: É necessário enxergarmos o átomo para entendermos sua estrutura? Qual é o papel dos experimentos no desenvolvimento das ciências? E qual é o papel dos modelos teóricos? Por que é importante que uma teoria faça previsões concretas sobre resultados experimentais? Qual o papel da predição teórica no desenvolvimento científico? O que é uma teoria científica? O que é ciência? Enfim, essa discussão também demonstra a importância da matemática para o desenvolvimento da Física. É somente através desses cálculos que podemos determinar o ângulo de desvio esperado para o átomo de Thomson e a probabilidade de se observar um desvio total maior do que 90o. E é somente devido à discrepância radical entre a previsão teórica e o resultado experimental que podemos considerar o modelo de Thomson como insatisfatório. Aos estudantes deve restar claro, nesse caso, que a matemática não aparece como mero exercício abstrato para a obtenção de números que servem como resposta de uma questão de prova. Ela exerce um papel essencial na falsificação de um modelo e no consequente desenvolvimento da Física, para um melhor entendimento dos fenômenos da Natureza. 2.2. Estrutura do núcleo atômico: prótons e nêutrons Em 1919, continuando suas investigações a respeito da interação entre partículas α e a matéria, Rutherford notou que a passagem dessas partículas pelo ar produzia um fluxo de núcleos de hidrogênio detectados na chapa de ZnS [18]. O efeito desaparecia quando o ar era substituindo por gás oxigênio, O2, ou por dióxido de carbono, CO2, mas era ainda mais notável para gás nitrogênio, N2. Hoje, é sabido que Rutherford observara a reação nuclear 14 N + 4 He → 17 O+ 1 H . A partir desses resultados, Rutherford postulou que o núcleo de hidrogênio – o mais leve dentro todos os elementos – é um constituinte fundamental de todos os núcleos atômicos [19], e que, no processo acima, um deles é ejetado do nitrogênio pela colisão com a partícula α. Com isso, Rutherford reavivou a tese proposta um século antes por William Prout, que notara que as massas molares de vários elementos eram múltiplos inteiros da massa molar do hidrogênio, e supôs ser esse o elemento primordial do qual todos são constituídos6. Prout designou de prótil esse elemento primordial, enquanto Rutherford chamou de próton o núcleo de H (ambas palavras advindas do grego antigo protos, que significa primeiro). A partir dessa descoberta de Rutherford, o átomo passou a ser visto como constituído de prótons e elétrons. Como a massa do elétron é ≈ 1800 vezes menor que a do próton, sua contribuição à massa atômica é desprezível, de modo que se supunha que toda a massa fosse devida ao número de prótons no núcleo. Assim, um núcleo com número de massa A (i.e. cuja massa é A vezes a massa do H) era suposto composto de A prótons. Mas, como explicar a observação de que a carga de um núcleo é quase sempre menor do que a carga de A prótons? Para isso, supunha-se que, além dos elétrons da eletrosfera, havia também elétrons no interior do núcleo, tal que um núcleo de massa A e carga Z (em unidades da massa e carga do núcleo de H) era visto como composto de A prótons e A-Z elétrons. Por um lado, a existência de elétrons nucleares era uma hipótese bem-vinda, pois ajudava a explicar decaimentos radioativos que eram acompanhados pela emissão de elétrons – chamados decaimentos do tipo β, discutidos abaixo na seção 2.9.2. Por outro lado, a existência de elétrons no interior do núcleo atômico engendra várias contradições com resultados experimentais. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg assegura que um elétron confinado em uma região de raio r≲10-14m teria uma energia cinética da ordem de 20MeV, muito acima da energia típica dos elétrons emitidos em decaimentos β, da ordem de 1 a 5 MeV. Ademais, medições do momento angular e momento magnético do núcleo de nitrogênio-14 indicam que ele deve ser constituído de um número par de partículas7, em contradição com a expectativa de 14 prótons + 7 elétrons. Essas contradições foram resolvidas em 1932, quando James Chadwick demonstrou experimentalmente a existência do nêutron: partícula eletricamente neutra com massa muito semelhante à do próton. Assim, estabeleceu-se que um núcleo de carga Z e massa A é composto de Z prótons e A-Z nêutrons. Um núcleo de nitrogênio-14 é, portanto, constituído de 7 prótons + 7 nêutrons, totalizando um número par de constituintes, como requerido pelos experimentos. No ano seguinte, em 1933, Enrico Fermi explicou o decaimento β sob essa nova perspectiva: o elétron emitido não existia anteriormente no núcleo, mas surgiu do decaimento de um nêutron em um próton e um elétron – uma perspectiva revolucionária de transmutação de partículas que inaugurou uma nova era na Física de Altas Energias. A descoberta dos nêutrons também possibilitou uma explicação simples à existência de isótopos. A natureza de um elemento é definida pelo número de prótons que existem no núcleo – i.e. pela sua carga elétrica –, pois é isso que define a quantidade de elétrons na eletrosfera, e portanto determina as suas possibilidades de ligações químicas, que nada mais são do que reminiscências da interação eletromagnética. Por outro lado, a massa do elemento é determinada pela quantidade de prótons e nêutrons no núcleo. Portanto é possível que um mesmo elemento possua variantes com diferentes massas, dada pela diferença no número de nêutrons no núcleo. Prótons e nêutrons são coletivamente denominados núcleons , i.e. partículas do núcleo. 2.3. O raio nuclear Qual é o tamanho do núcleo atômico? Os resultados do experimento de Geiger-Marsden, aliados à análise energética que resultou na equação (2) acima, já indicam que prótons e nêutrons devem estar confinados em uma região de dimensões ≲10-14m. Mas essa estimativa é apenas um limite superior. Uma determinação mais precisa do raio nuclear pode ser obtida através de experimentos de espalhamento de elétrons altamente energéticos incidentes sobre o núcleo – semelhantes ao experimento de Geiger-Marsden, mas com elétrons ao invés de partículas α. Uma discussão desses experimentos em sala apresenta uma excelente oportunidade de se abordar temas como a dualidade onda-partícula[1] (veja a ref. [20] para uma sequência didática investigativa sobre esse tópico) e a difração de ondas ao atravessar um obstáculo. De fato, devido à dualidade onda-partícula, o feixe de elétrons incidentes no alvo comporta-se como uma onda de comprimento (8) λ = h p , onde h é a constante de Planck – uma constante fundamental da Natureza, de valor h≈4.136×10-21⁢MeV⋅s–, e p o momento linear dos elétrons. Ao incidir sobre o núcleo atômico, essa onda sofre difração, tal como a luz difrata ao atravessar um orifício circular, vide Figura 7. Se o elétron for suficientemente energético, seu comprimento de onda associado será suficientemente pequeno para que se observe um mínimo de difração no padrão de espalhamento. A posição θ desse mínimo permite determinar a dimensão D do obstáculo a partir da relação (9) θ ∼ λ D . A Figura 8 demonstra a existência de um tal mínimo na intensidade do feixe resultante após o espalhamento de elétrons altamente energéticos sobre alvos de 12C e 16O. Nesse caso, os núcleos agem como o orifício na Figura 7, e o feixe eletrônico também sofre difração. Por exemplo, para o 12C o mínimo ocorre em θ≈50∘≈0.873rad quando se incide elétrons de energia cinética E≈420MeV. Note que essa energia é muito maior que a energia de repouso dos elétrons, me⁢c2≈0.511MeV, portanto esses elétrons se movem a uma velocidade próxima à da luz, c≈3×108m/s, e vale a relação E=p⁢c. O comprimento de onda é então λ=h⁢c/E=2.95×10-15m, e, da equação (9), vem que (10) D ∼ 3 ⁢ fm , Figura 8: No experimento de Ehrenberg et al. [23], feixes de elétrons com energias 360MeV e 420MeV são espalhados por núcleos de carbono e oxigênio. O gráfico acima [24], compilado a partir dos resultados de [23], mostra a intensidade do feixe incidente no detector em função do ângulo de deflexão. A existência de um mínimo se deve ao fenômeno de difração dos elétrons ao atravessarem os núcleos, similar aos anéis sombreados no padrão de difração da luz ao passar por um obstáculo circular. com 1 fm = 10-15m. O valor tabelado para o raio do núcleo de 12C é ≈2.47fm [22], portanto seu diâmetro é ∼5fm, não muito distante da estimativa acima. Ao contrário do padrão de difração da luz por um orifício circular, a intensidade do mínimo na Figura 8 não é exatamente zero porque o núcleo não possui bordas bem definidas. Ademais, o cálculo acima é apenas uma estimativa da dimensão do núcleo, que é, em geral, da ordem de 1 fm. Para a obtenção de um valor mais preciso, é necessário uma modelagem mais detalhada da forma do núcleo, que foge do escopo de uma discussão no ensino médio. 2.4. A força nuclear 2.4.1. Problema da estabilidade do núcleo Como é possível que o núcleo atômico seja estável, se é composto somente de partículas neutras ou com carga positiva, todas confinadas a uma distância mútua da ordem de 10-15m e, portanto, com os prótons constantemente sujeitos a intensas forças eletrostáticas repulsivas? Tal questão pode ser proposta à turma como ponto de partida de uma discussão que desemboque na conceituação da força nuclear. Em um primeiro momento, os estudantes usualmente levantam duas propostas para explicar a estabilidade nuclear: A força gravitacional é atrativa e talvez possa manter o núcleo estável diante da repulsão eletrostática. No entanto – e aqui entra novamente o valor da matemática para corroborar ou excluir hipóteses físicas –, como já discutido na sequência anterior [1], a interação gravitacional é muito mais fraca do que a eletromagnética, e jamais seria suficiente para equilibrar a repulsão dos prótons. De fato, em um núcleo composto de Z prótons e A-Z nêutrons, cada próton é submetido a uma força repulsiva Fel devido às outras Z-1 cargas positivas, e a uma atração gravitacional Fgrav devido a A-1 prótons e nêutrons, dadas por (11) F el ∼ k ⁢ ( Z - 1 ) ⁢ e 2 r 2 , F grav ∼ G ⁢ ( A - 1 ) ⁢ m p 2 r 2 , onde supomos que as massas dos prótons e nêutrons são iguais – o que é válido em boa aproximação –, e que a distância média de afastamento entre cada partícula é da mesma ordem de magnitude, r∼10-15m. Substituindo valores numéricos, k ≈ 8.98 × 10 9 ⁢ N ⋅ m 2 / C 2 , G ≈ 6.67 × 10 - 11 ⁢ N ⋅ m 2 / kg 2 , e ≈ 1.6 × 10 - 19 ⁢ C , m p ≈ 1.67 × 10 - 27 ⁢ kg , vem que a condição de equilíbrio entre essas forças requer (12) A - 1 ∼ ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 G ⁢ m p 2 ⟹ A ∼ 10 36 ⁢ Z , ou seja, seria necessário um número imensamente maior de nêutrons do que de prótons, ao passo que o núcleo mais pesado observado na Natureza – i.e. não produzido artificialmente – é o 92238U, para o qual A≈2.6⁢Z. Os elétrons na eletrosfera atraem os prótons no núcleo. No entanto, mesmo que houvesse uma tal força efetiva8, ela tenderia a desestabilizar o núcleo ainda mais, pois atrai os prótons em direção à eletrosfera, para fora do núcleo. 2.4.2. Discussão e levantamento de hipóteses A conclusão que a turma deve ser capaz de alcançar, nesse momento, é que, com as interações conhecidas até então, não é possível explicar a estabilidade do núcleo atômico. O(a) docente pode, então, estimular os(as) estudantes a discutir soluções para esse impasse, em um ótimo exercício de levantamento de hipóteses. Note que, nesse exercício, não há respostas erradas. No desenvolvimento histórico-científico, em tais situações de impasse, é comum se propor hipóteses que, embora hoje descartadas, ou até consideradas absurdas, levaram a importantes desenvolvimentos teóricos e experimentais posteriores9. O importante, nessa atividade, é que os(as) discentes exercitem sua criatividade e capacidade argumentativa na elaboração de suas teses e, indo ainda além, que também se empenhem na elaboração de possíveis maneiras de as testarem experimentalmente. Por exemplo, um(a) estudante pode propor que a interação eletromagnética é modificada quando as partículas estão a distâncias muito pequenas, da ordem do raio do núcleo atômico, de modo a abrandar a repulsão. Tal hipótese poderia ser testada submetendo-se partículas carregadas à interação com prótons no interior do núcleo, como ocorre no espalhamento de elétrons altamente energéticos, discutido na seção 2.3 acima. O fato de os resultados se conformarem ao esperado para elétrons submetidos à interação coulombiana e ao fenômeno de difração – devido ao caráter ondulatório do feixe de elétrons – atesta contra essa hipótese. Para outros testes da validade da Lei de Coulomb vide ref. [25]. Ainda outra hipótese possivelmente levantada seria uma modificação da gravitação nessas escalas de distância. Entretanto, é difícil testar a gravitação nessas situações. Outra possibilidade é se postular a existência de uma outra interação, que pode ser denominada de força nuclear . 2.4.3. A força nuclear O(a) docente pode, então, estimular discussões sobre as propriedades que essa nova interação deve possuir para que solucione o problema da estabilidade nuclear sem engendrar outras contradições. Em primeiro lugar, essa força deve possuir uma componente atrativa, e deve ser mais intensa do que a interação eletromagnética, para superar a repulsão e estabilizar o núcleo. Além disso, não deve afetar os elétrons na eletrosfera, pois o átomo é bem descrito com base apenas na interação eletromagnética. O experimento de espalhamento de elétrons por prótons, discutido na seção 2.3, também é muito bem descrito assumindo-se que a interação elétron-próton é inteiramente de natureza eletromagnética. Em outras palavras, não há evidência de que elétrons interajam com prótons ou nêutrons por meio dessa força nuclear. Ademais, a atuação dessa força se dá apenas a distâncias da ordem do raio nuclear, ∼1fm. Por exemplo, as forças de ligação intermoleculares são exclusivamente de natureza eletromagnética, sendo desprezível a contribuição de outra forma de interação entre os núcleos dos átomos constituintes10. 2.5. Reações nucleares Consolidando-se entre os(as) discentes o conceito de força nuclear, pode-se enveredar em discussões sobre diversos fenômenos e aplicações associadas à Física Nuclear. Trata-se de um fértil contexto para exploração interdisciplinar em uma abordagem CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) com temáticas como: fissão nuclear e suas aplicações bélicas e pacíficas; fusão nuclear como fonte de energia do Sol, e sua importância para o desenvolvimento da vida na Terra; a formação da maioria dos elementos em processos de fusão no interior das estrelas, e por que “somos poeira das estrelas”; a matriz energética no Brasil e no mundo: diversas fontes de energia e seus impactos ambientais; decaimentos radioativos e aplicações. 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. 2.5.2. Saturação da força nuclear Já foi discutido acima (seção 2.4.3) que a força nuclear deve ter curto alcance, da ordem de 1fm. A Figura 11 oferece outra evidência a favor dessa afirmação. Para entender por que, considere, primeiro, a energia associada à interação eletrostática entre Z prótons em um nuclídeo. Cada próton, de carga e, é repelido por Z-1 outros prótons, distantes um do outro de r∼1fm. A contribuição eletrostática à energia por próton é, então, (15) E Coulomb Z ∼ - ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 r , ou seja, varia linearmente com o número de prótons no núcleo. O sinal negativo se deve ao fato de a força ser repulsiva, provocando uma redução na energia de ligação por constituir uma tendência natural à desintegração do nuclídeo. Analogamente, para um nuclídeo com A núcleons existem A⁢(A-1)/2 maneiras de se arranjá-los em pares, de modo que, se supusermos que cada núcleon interage com todos os demais via força nuclear, esperaríamos (16) E nuclear ∝ A ⁢ ( A - 1 ) , ou seja, Enuclear /A cresceria linearmente com o número de núcleons. Analogamente à equação (15), o coeficiente de proporcionalidade é indicativo da intensidade da interação nuclear. Se olharmos, agora, para a Figura 11, veremos que esse crescimento linear é de fato observado para nuclídeos leves, com A≤4. Mas a taxa de crescimento – dada pelo coeficiente de proporcionalidade na equação (16) – diminui gradativamente, até que, para nuclídeos mais pesados, com A≳16, a curva tende a se aplainar em um patamar Eligação /A∼8MeV, atingindo um máximo para o 56Fe. Ou seja, a hipótese de que cada núcleon interage com todos seus vizinhos deixa de ser obedecida. Dito de outra forma, a intensidade média da interação nuclear atuante sobre cada núcleon diminui com o aumento do nuclídeo: outra evidência sustentando que a interação nuclear é de curto alcance. Disso podemos extrair, ainda, uma estimativa do alcance dessa interação, que deve ser da ordem de magnitude das dimensões nucleares, r∼1fm, uma vez que, mesmo para núcleons contidos no interior de um nuclídeo, essa interação já deixa de ser eficaz. Podemos aprofundar ainda mais a análise da Figura 11 para extrair mais informações sobre a interação nuclear. Partindo de um único próton, e acrescentando-lhe nêutrons e outros prótons, nota-se que a energia de ligação por núcleon cresce drasticamente12 até atingir um máximo local no 4He, que é um nuclídeo excepcionalmente estável13. Se acrescentamos ao 4He um próton e um nêutron, formando 6Li, a energia de ligação total aumenta – porque um maior número de núcleons implica em mais possibilidades de mútuas interações –, mas a energia média por núcleon diminui. É como se alguns dos núcleons de 6Li se aglomerassem em uma combinação altamente interagente de 2 prótons e 2 nêutrons, enquanto o próton e o nêutron adicionais, desemparelhados, interagissem com menor intensidade, reduzindo a energia de ligação média. Se seguirmos acrescentando núcleons, os prótons e nêutrons extras vão se emparelhando, provocando um aumento de Eligação /A. Mas esse crescimento ocorre a uma taxa inferior àquela entre 1H e 4He – a média da mútua interação entre os núcleons já é menor, devido à maior distância entre eles. Essa segunda reta de crescimento na Figura 11 culmina no 12C, um outro nuclídeo excepcionalmente estável por ser composto de um aglomerado14 de 34He. Analogamente, o 16O pode ser visto como um aglomerado de 44He e possui, também, grande energia de ligação por núcleon15. Como já discutido nesta mesma subseção, à medida que o nuclídeo aumenta de tamanho, núcleons diametralmente opostos deixam de interagir um com o outro pela força nuclear – devido ao curto alcance dessa interação –, e o acréscimo de novos núcleons tende a aumentar cada vez menos a energia de ligação média de cada núcleon. Fala-se, então, da saturação da força nuclear, que é outra forma de expressar o curto alcance dessa interação. Acontece que, quanto maior o nuclídeo, maior é seu número de prótons16, e embora a interação nuclear tenda a saturar, a repulsão coulombiana continua atuante entre todos os prótons, contribuindo negativamente à energia de ligação, conforme a equação (15). É por isso que, a partir do ferro-56, a curva da Figura 11 apresenta uma inflexão, tornando-se decrescente. 2.6. Fissão nuclear Devido ao comportamento decrescente da curva da Figura 11 para nuclídeos pesados, processos que ocasionam uma redução do tamanho do nuclídeo são energeticamente favorecidos. Considere, por exemplo, um processo em que um nuclídeo pesado, como o urânio-235, se divide em dois nuclídeos mais leves após absorver um nêutron, como ilustrado na Figura 13. Esse tipo de processo é denominado fissão nuclear. Como os produtos da reação são nuclídeos menores – o que aumenta a interação nuclear entre núcleons – e possuem menos prótons – reduzindo a repulsão coulombiana –, eles são mais estáveis, com maior energia de ligação média por núcleon, como se nota pela Figura 11. Por ocorrer uma variação da energia potencial dos núcleons na reação, deve haver uma correspondente liberação de energia durante o processo, para que a energia total se conserve. Outra maneira de se entender isso é notando que, quanto maior a energia de ligação, menor é a massa total do nuclídeo, de acordo com a equação (14). Portanto, a formação de nuclídeos mais estáveis está associada à redução da energia do sistema em forma de massa17, e a diferença constitui-se em energia liberada em outras formas, como radiação ou energia cinética dos fragmentos (ou seja, calor). Este é o princípio fundamental subjacente à geração de energia por fissão nuclear. Figura 12: As forças atuantes sobre os núcleons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 13: Fissão de 235U induzida pela captura de um nêutron termal. O nêutron incide com baixa energia cinética, ∼0.02eV, e é absorvido, resultando em um nuclídeo de U236, que é instável e se fissiona em dois nuclídeos mais leves. Neste caso o produto da reação inclui, ainda, três nêutrons. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Mas há um detalhe a mais que merece ser discutido. Em reações de fissão induzidas por capturas de nêutrons, é comum que haja liberação de dois ou mais nêutrons no produto final, como ilustra a Figura 13. Esses novos nêutrons podem colidir com outros nuclídeos de 235U e induzir outras reações, liberando mais nêutrons, e assim sucessivamente, resultando em uma reação autossustentável, como ilustrado na Figura 14. Figura 14: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Ocorre que 99.3% do urânio encontrado na natureza está na forma do isótopo 238U, que não é facilmente fissionável, e apenas cerca de 0.7% é 235U. Para otimizar a quantidade de energia liberada e garantir a autossustentabilidade da cadeia de reações, é desejável que o material tenha uma concentração muito maior de 235U, de modo a aumentar a probabilidade de que os nêutrons emergentes em cada etapa de fissão encontrem outros nuclídeos desse isótopo. A esses processos que visam aumentar a concentração de 235U dá-se o nome de enriquecimento de urânio. Diferentes propósitos requerem diferentes níveis de enriquecimento. Para a extração de energia nuclear, uma concentração de 3% de 235U já é suficiente [24]. Isso porque, nesse caso, não se é sequer desejável que todos os nêutrons resultantes de uma reação se encontrem com outro nuclídeo de 235U e provoquem outras fissões, pois isso provocaria um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada. Ao contrário, uma parte essencial no desenho de um reator nuclear são as chamadas barras de controle, constituídas de materiais altamente eficientes na absorção de nêutrons – como boro ou ligas de metais de terra rara –, justamente para que os nêutrons em excesso sejam capturados, como representado pelos “X” na Figura 14, permitindo que o operador da usina mantenha controle sobre a quantidade de energia extraída. Ainda outro elemento importante em um reator é a presença de um material moderador – como água ou carbono na forma de grafite –, que reduz a energia cinética dos nêutros secundários de ∼1MeV para ∼0.02eV, o que aumenta a probabilidade de fissão do urânio-23518. Para propósitos bélicos, o objetivo é a liberação da maior quantidade de energia possível. Nesse caso é preciso uma concentração muito maior de 235U, acima de 85%, para que a maioria dos nêutrons secundários seja absorvida por outro nuclídeo de 235U e induza outra fissão, gerando um crescimento exponencial da energia liberada, como ilustrado na Figura 15. Uma tal reação em cadeia é denominada supercrítica. Figura 15: Reação supercrítica de fissão nuclear em cadeia. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. 2.7. Fusão nuclear e a origem dos elementos Uma aula sobre fusão nuclear pode ser motivada pela seguinte questão-problema: como foram formados os elementos químicos que nos rodeiam? O(a) docente pode iniciar mostrando à turma o gráfico das abundâncias dos elementos no sistema solar, Figura 16, e pedir que os alunos discutam o comportamento da curva. Quais são suas características mais marcantes? Algum comportamento da curva lhes parece intuitivo? Algum parece contra-intuitivo? Acham estranho que haja um predomínio de hidrogênio e hélio no Universo? Podem oferecer uma explicação ao comportamento oscilatório da curva, i.e. ao fato de que elementos com número atômico par são ≈10 vezes mais abundantes que os elementos vizinhos, com Z ímpar? Figura 16: Abundância relativa de elementos no sistema solar, calculada como o número de átomos do elemento em questão para cada 106 átomos de Si. Dados extraídos da ref. [32]. Ao instigar os alunos com essa problematização, deve-se esperar respostas que partam de uma perspectiva a-histórica, sugerindo que o Universo sempre teve a constituição que observamos atualmente. O principal propósito dessa aula deve ser desconstruir essa perspectiva, demonstrando que também na Física há historicidade, e que tampouco nas ciências naturais existe um status quo eterno e absoluto, mas que para entendermos a Natureza é preciso compreender os processos que resultaram em sua configuração atual. Mais ainda, a discussão culmina no vislumbre da história humana como apenas um capítulo de uma longa história universal, em que simples partículas elementares se organizam em estruturas cada vez mais complexas – núcleons, nuclídeos, átomos, moléculas, nuvens gasosas e protoestruturas rochosas, estrelas e planetas, moléculas orgânicas autorreplicantes, a vida complexa –, até chegar na gênese do ser humano e na história de nossas culturas. Com isso, o(a) estudante pode contemplar a interconexão entre todas as subáreas em que se divide o conhecimento humano – todas as “matérias” ou “disciplinas” escolares –, ao se enfatizar como cada uma lida com um capítulo específico de uma história universal que as conecta e que tudo abrange. 2.7.1. Nucleossíntese primordial Para entender a gênese dos elementos sob a perspectiva histórica supracitada, basta introduzir um conceito muito simples, mas que é a base de toda a cosmologia contemporânea: o fato observável de que nosso Universo está em expansão [30, 31]. Uma forte evidência em favor dessa asserção é a observação de que as galáxias distantes estão se afastando de nós. Se o Universo está se expandindo, isso implica que no passado toda sua matéria e energia estavam contidas em uma região muito menor do que ocupam atualmente, o que significa que as temperaturas deviam ser altíssimas – basta lembrar-se que um gás contraído adiabaticamente se aquece. Ou seja, o Universo primordial era muito quente, e à medida que evolui e se expande, ele se resfria. Altas temperaturas significam alto poder dissociativo, ou seja, quanto maior a temperatura, mais difícil é manter estruturas complexas, pois elas tendem a se dissociar em partes mais elementares. Exemplos são a dissociação da estrutura cristalina de um sólido quando do derretimento do material, e das ligações intermoleculares de um líquido durante a vaporização, bem como a ionização de um gás, que, aquecido a temperaturas suficientemente elevadas, tem os elétrons atômicos dissociados dos núcleos, tornando-se um plasma. Assim, o Universo inicia sua história com matéria e energia em sua forma mais simplificada, mais rudimentar, como simples partículas elementares, e somente à medida que ele se expande e resfria é que estruturas mais complexas começam a se formar. Mas por que os nuclídeos se formam como estruturas complexas estáveis durante essa história? A resposta vem novamente da Figura 11, especificamente do comportamento crescente da curva para nuclídeos leves. Esse comportamento indica que o processo denominado de fusão nuclear é energeticamente favorecido, em que a fusão de dois nuclídeos mais leves resulta em um mais estável, i.e. com maior energia de ligação, ocorrendo liberação de energia nesse processo. Ou, reciprocamente, a dissociação dessas estruturas não ocorre espontaneamente, mas requer que se forneça energia em quantidade que já não está disponível quando a temperatura do Universo torna-se suficientemente baixa. Consideremos, então, o Universo nos primeiros segundos de sua história, quando já havia prótons e nêutrons19, mas ainda não se haviam formado estruturas mais complexas – ou seja, não havia átomos ou sequer núcleos atômicos, e os prótons e nêutrons encontravam-se livres20. É claro que, nessa situação, suas energias de ligação são nulas, simplesmente por não estarem ligados a nada. Mas à medida que se aproximam o suficiente, entrando no alcance de atuação da interação nuclear, uma força os atrai de modo a formarem um estado ligado: um nuclídeo de 2H, também denominado dêuteron. Como o processo de formação do dêuteron é espontâneo, há liberação de energia durante a reação. Ou, dito de outra forma: é mais energeticamente custoso manter prótons e nêutrons isolados do que ligados. A energia liberada nada mais é do que a energia de ligação do dêuteron21, e o processo é descrito por (17) p + n → 2 H + 2.2 MeV, cuja ilustração seria análoga à Figura 9, porém vista da direita para a esquerda. Essa reação ocorreu abundantemente quando o Universo tinha apenas poucos minutos de idade, e constitui o primeiro estágio do processo de formação de nuclídeos mais complexos a partir dos prótons e nêutrons que se encontravam inicialmente livres – processo que recebe o nome de nucleossíntese primordial. Esses processos primordiais de fusão nuclear continuam até culminarem na produção de 4He, como exemplificado na cadeia de reações da Figura 17. Esse nuclídeo é tão mais estável que seus vizinhos (i.e. os processos de fusão que lhe dão origem são tão energeticamente favoráveis) que praticamente todos os dêuterons, assim que formados, tendem a continuar se fundindo22 até formar 4He. Figura 17: Exemplo de processo de fusão de dêuterons e prótons para formação de 4He. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. Nesse ponto, o processo de fusão encontra um gargalo, por não existirem elementos estáveis de números de massa 5 ou 8 – por exemplo, uma eventual fusão de dois 4He produz 8Be, que logo decai novamente em 24He. A cadeia de fusão só pode prosseguir, portanto, passando pela produção de 12C – este, sim, altamente estável –, mas isso demanda um encontro quase simultâneo de 34He, o que é altamente improvável exceto em situações de altíssima densidade de matéria, que não é o caso durante essa época cosmológica. Um outro fator importante a se considerar, nesse processo, é a elevada energia cinética que as partículas devem possuir23 para serem capazes de “superar” a intensa repulsão coulombiana e se aproximarem a uma distância ≲1fm, de modo a possibilitar a atuação da interação nuclear para promover a fusão. A energia potencial de duas cargas elementares e a uma distância r∼1fm é24k⁢e2/r∼1⁢MeV, portanto a energia média das partículas não pode ser muito inferior a esse valor25. À época da nucleossíntese essa energia média era ∼0.1MeV [30], o que corresponde a temperaturas da ordem de 1 bilhão de kelvins (!), muito acima da temperatura média do Universo atualmente, ∼3K. Considerando-se todos os fatores acima, estima-se que, após concluída essa época de nucleossíntese primordial, cerca de 75% da massa do Universo encontrava-se na forma de prótons livres (i.e. 1H) e 25% era 4He, com 0.01% de deutério (2H) e 3He, e apenas traços de 7Li [24, 30]. O excelente acordo entre essas previsões teóricas e as abundâncias observadas no meio interestelar constitui uma das mais robustas evidências de que o Universo já passou por uma fase extremamente quente, como prevê a teoria do Big Bang. 2.7.2. Nucleossíntese estelar Mas como foram formados os elementos mais pesados? Os pré-requisitos listados acima, de altíssimas densidades e temperaturas, são satisfeitos no interior de estrelas supermassivas, como as chamadas gigantes vermelhas. Para entender um pouco esse processo, vale discutir brevemente sobre o ciclo de vida dessas estrelas. O início da vida de uma estrela se dá quando um aglomerado de gases primordiais, constituído essencialmente de hidrogênio e hélio, em abundância não muito diferente daquelas resultantes da nucleossíntese primordial, colapsa devido à sua própria atração gravitacional. À medida que o gás é comprimido, sua temperatura aumenta, até que, eventualmente, torna-se alta o suficiente para ativar a fusão de hidrogênio em deutério26, e, em última instância, hélio, segundo a Figura 17. Essas reações predominam no primeiro estágio de vida estelar – como é o caso do Sol –, e delas decorre liberação de energia na forma de radiação (assim como toda fusão de elementos com A≲56). É da fusão nuclear que as estrelas obtêm sua energia – é por isso que elas têm “brilho próprio”. Mais ainda, a pressão dessa radiação contrabalanceia o colapso gravitacional da estrela e a mantém em equilíbrio. O segundo estágio da vida estelar se inicia com o esgotamento do hidrogênio no núcleo. Os processos de fusão são temporariamente interrompidos, e, sem a pressão de radiação, o núcleo volta a colapsar gravitacionalmente. Isso faz com que suas temperatura e densidade aumentem novamente, até atingir um patamar que ativa a fusão de hélio. Quando a densidade de hélio-4 é suficientemente alta, ocorre fusão em 8Be e, antes que esse decaia, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao berílio, produzindo 12C, conforme ilustrado na Figura 18. Uma vez superado o gargalo causado pela instabilidade do berílio, outras absorções de 4He podem ocorrer, formando uma série de elementos mais pesados como C 12 ⁢ ⟶ He 4 16 ⁢ O ⁢ ⟶ He 4 20 ⁢ Ne ⁢ ⟶ He 4 ⁢ Mg 24 ⁢ … Figura 18: Dois nuclídeos de 4He se fundem e formam 8Be, que é instável e decai após cerca de 10-16s. No entanto, no interior de estrelas muito massivas, a densidade de matéria pode ser tão alta que, antes de decorrido esse tempo, um outro nuclídeo de 4He se aproxima e se funde ao 8Be, produzindo 12C. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença Creative Commons BY-SA 4.0 [15]. Entretanto, à medida que se progride nessa cadeia, há um aumento do número de prótons nos nuclídeos envolvidos e, consequentemente, cresce a repulsão coulombiana, de modo que são necessárias temperaturas cada vez maiores (ou seja, estrelas mais massivas) para continuar a fusão. Há, ainda, outros processos nucleares, como a absorção de prótons por nuclídeos pesados, decaimentos β, e emissões de prótons e nêutrons, que dão origem a outros isótopos e elementos de número atômico ímpar, como o nitrogênio. No entanto, são processos secundários relativamente à cadeia de fusão descrita acima, e portanto espera-se que a abundância de elementos com número atômico par seja relativamente maior do que para Z ímpar. Essa predição é confirmada pela Figura 16. A abundância de elementos com número atômico par é pelo menos uma ordem de magnitude maior do que para Z ímpar. Note, também, a abundância excepcionalmente grande de ferro (e também de níquel), devido ao fato de serem elementos finais nas cadeias de fusão, após os quais a fusão deixa de ser exotérmica, i.e. deixa de liberar energia (vide Figura 11). Quando, após essa sequência de fusões, o núcleo de uma estrela supermassiva passa a ser constituído majoritariamente de ferro e níquel (i.e. elementos com A∼56, que estão no ápice da curva da Figura 11), os processos de fusão são interrompidos, por não serem mais energeticamente favoráveis, e portanto não há mais energia liberada em radiação. O núcleo colapsa sob sua própria gravidade, a densidade aumenta drasticamente, até formar um buraco negro – se a massa for suficientemente grande para isso – ou uma explosão de supernova, em que a maior parte do material estelar é ejetado, restando somente uma estrela de nêutrons27. A energia liberada nessa imensa explosão é parcialmente utilizada para realizar fusões posteriores (que são reações endotérmicas), resultando na formação de elementos mais pesados que A≳56 através da absorção de vários nêutrons, que posteriormente sofrem decaimento do tipo β e são convertidos em prótons, originando elementos de elevado número atômico. No entanto, supernovas são objetos bastante mais raros no Universo atual do que estrelas massivas ativas, e a abundância de elementos muito pesados é, por isso, comparativamente muito menor. Na Figura 16 consta apenas a soma de todas essas abundâncias. A explosão de uma supernova é também o mecanismo pelo qual os elementos pesados, inicialmente produzidos no interior de estrelas, são lançados ao espaço. A poeira dessa explosão eventualmente se condensa, atraída pela sua própria força gravitacional, e pode vir a formar um novo sistema estelar, como o nosso. Tudo o que é formado de elementos mais pesados do que o hélio foi gerado no interior de uma estrela supermassiva e lançado ao espaço após uma tal explosão de supernova. É por isso que se pode afirmar que somos, todos, poeira de estrelas [2]. 2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24], o que dá ∼8.2×1010J por grama de combustível28, ao passo que uma fusão deutério-trítio, (18) H 2 + 3 H → 4 He + n + 17.6 ⁢ MeV , libera ∼3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear. Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão. 2.8. Energia nuclear: uma aula de CTSA Toda a discussão anterior culmina em uma oportunidade de se realizar um amplo debate com os(as) estudantes sobre os impactos socioambientais da energia nuclear. 2.8.1. Armas nucleares Em colaboração com o(a) professor(a) de história de seu centro de ensino, o(a) docente pode discutir o contexto e as consequências do lançamento das bombas nucleares sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 – até hoje os únicos casos de uso militar de armamentos nucleares na história –, bem como a corrida armamentista subsequente que levou à proliferação desses artefatos, e os atuais acordos e negociações almejando a não-proliferação e o desmantelamento dos mísseis existentes. Imagens ilustrando o poder destrutivo desse tipo de armamentos, incluindo comparações das cidades japonesas atingidas, antes e depois da destruição, podem ser encontradas em [33, 34, 35]. 2.8.2. Ciência e Ética Não é incomum, na história humana, que resultados de pesquisas científicas sejam utilizados para servir fins belicistas ou até mesmo propósitos genocidas. E, embora o senso-comum contemporâneo não hesite em trivialmente atribuir toda a responsabilidade aos políticos, fato é que nenhum desses projetos poderia ser bem sucedido se não fosse pela participação de cientistas extremamente competentes. Por outro lado, essas mesmas linhas de pesquisa frequentemente originam aplicações indiscutivelmente benéficas à humanidade, como aprimoramento de técnicas medicinais e farmacológicas. Nesse contexto, o(a) docente pode levantar uma salutar discussão interdisciplinar com algumas das questões: como a ciência e a sociedade civil poderiam/deveriam lidar com potenciais conflitos éticos advindos de uma determinada pesquisa científica? Como deve se portar o(a) cientista diante desses supostos dilemas? Há situações em que é desejável impor limites à nossa capacidade de exploração científica? Ou seja, existem casos em que a ignorância possa ser mais benéfica do que o conhecimento? Poderia ser essa ignorância um meio eficiente e desejável de se evitar catástrofes humanitárias? Esse debate não se limita à Física. Atualmente há amplas discussões no meio científico, e na sociedade civil em geral, sobre dilemas éticos envolvendo a engenharia genética, e os limites que se poderia ou se deveria impôr ao desenvolvimento dessas técnicas de manipulação gênica. Portanto essa atividade ofereceria uma excelente oportunidade de diálogo e interdisciplinaridade envolvendo também os(as) docentes de Filosofia, História, Sociologia e Biologia do centro de ensino em que atua o(a) docente de Física. 2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia. Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3, que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29, 36]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29, 36]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1. Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina. A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos. O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes. Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29. Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37]. A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos. Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40, 41]. Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42]. Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43]. Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção. O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45]. Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46]. Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15. Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47]. O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados. A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca. Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido. Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global. Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50, 51]. Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53]. Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais. 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8). 2.10. Aplicações de decaimentos radioativos Os decaimentos radioativos descritos acima possuem uma série de aplicações tecnológicas presentes em nosso quotidiano, que possibilitam uma abordagem dessa temática em um contexto CTSA. Faremos aqui alguns apontamentos dessas aplicações, que obviamente não encerrarão o tema. 2.10.1. Datação radioativa O decaimento radioativo é um processo quântico, portanto probabilístico. Isso significa que é impossível prever o momento exato em que um nuclídeo individual decairá. Mas a taxa de probabilidade de ele decair (i.e. a probabilidade por unidade de tempo) é mensurável, e, com isso, é possível determinar quanto tempo levará, em média, para que metade dos nuclídeos em uma amostra36 tenha decaído. A situação é análoga ao do lançamento de uma moeda: se lançarmos uma a cada segundo, é impossível saber qual será o resultado de cada lançamento, mas sabemos que precisaremos esperar aproximadamente 1000 segundos para obtermos 500 caras ou 500 coroas (e essa estimativa é tanto mais precisa, quanto maior o número de lançamentos envolvidos). Esse tempo para que metade da amostra tenha decaído é chamado de tempo de meia-vida, e cada elemento radioativo possui uma meia-vida característica. Por exemplo, o tempo de meia-vida do carbono-14 é 5730 anos. Isso significa que, se temos inicialmente uma amostra de 1g de 14C, após 5730 anos essa amostra conterá apenas 0.5g desse elemento, e após outros 5730 anos conterá apenas 0.25 g, e assim sucessivamente. De todo carbono presente na atmosfera terrestre, uma pequena fração37 está na forma de carbono-14, também chamado de radiocarbono. Enquanto um organismo está vivo, respirando e se alimentando (seja realizando fotossíntese, produzindo açúcares a partir de gás carbônico absorvido da atmosfera, seja fazendo parte de uma cadeia alimentar em cuja base estão esses organismos realizadores de fotossíntese), os átomos de carbono de seu corpo são constantemente “reciclados”, substituídos por novos oriundos da atmosfera, e parte desses átomos são do isótopo carbono-14. Isso significa que a concentração de carbono-14 em um organismo vivo é a mesma que na atmosfera. Quando o organismo morre, o carbono-14 deixa de ser reposto, e sua concentração de radiocarbono apenas diminui devido ao decaimento. Assim, se medirmos a concentração38 de radiocarbono em uma amostra de um organismo que já foi vivo, podemos determinar quanto tempo transcorreu desde sua morte. Como se vê, uma aula sobre datação por radiocarbono é uma excelente oportunidade para trazer a interdisciplinaridade à sala de aula, discutindo ciclo de carbono na biosfera, fotossíntese e cadeia alimentar. É importante ressaltar que a datação por radiocarbono só pode ser usada para datar matéria orgânica – por exemplo, ossos, restos de plantas, ou até artefatos arqueológicos, como cerâmicas enriquecidas por matéria orgânica. Ademais, não é possível datar com radiocarbono materiais com mais do que ∼50 mil anos de idade. Isso porque, após esse tempo, já transcorreram aproximadamente 10 meias-vidas do radiocarbono, e a fração desse elemento na amostra já é 1/210∼0.1% da concentração original. É claro que detectores mais precisos permitem extrapolar um pouco esse limite superior, mas não muito mais do que isso. Isso significa que fósseis de dinossauros não podem ser datados por radiocarbono, (i) porque um fóssil de dinossauro não é matéria orgânica, mas material rochoso que se sedimentou sobre os ossos do animal (ou seja, um fóssil é uma rocha), e (ii) porque dinossauros foram extintos há cerca de 65 milhões de anos, portanto qualquer vestígio de carbono-14 no fóssil já teria desaparecido completamente após esse período. Isso não quer dizer que não se pode fazer datação de rochas por meio de decaimentos radioativos. Ao contrário, essas datações são possíveis, desde que se use o decaimento de outros elementos como “régua”, como o rubídio-87, que decai via (23) Rb 87 → 87 Sr + e - + ν ¯ e , com meia-vida 4.9×1010anos. O método é essencialmente o mesmo descrito acima, mas com algumas diferenças. Nesse caso não se conhece a abundância inicial de rubídio-87 na amostra inicial, então mede-se também a abundância do elemento-filha desse decaimento, o estrôncio-87, e também o outro isótopo estrôncio-86 (que é estável). Com essas informações é possível determinar a idade de meteoros e, a partir daí, inferir a idade do Sistema Solar (e, portanto, do planeta Terra) como 4.5×109 anos [56, 57]. É importante mencionar que a datação radioativa não é a única forma de se datar um artefato, e nem sempre é a mais precisa. Na arqueologia, o mais comum é datar um objeto com base em outros itens encontrados em uma mesma escavação, como moedas, evidências textuais (em lápides ou cerâmicas), práticas culturais (por ex. a forma como o objeto foi fabricado ou o material utilizado), e outros indícios que apontem para o contexto histórico do objeto desenterrado. Ainda outra forma de datação muito precisa é a chamada dendrocronologia39, tão precisa a ponto de ser usada para calibrar a datação feita por métodos radioativos descritos acima! Esse método baseia-se no fato de que os troncos das árvores são formados por vários anéis (vide Figura 25), produzidos (em média) um por ano, e cuja espessura, coloração e outras características dependem das condições climáticas e ambientais da região onde a árvore se desenvolveu. Assim, fazendo um estudo de diversas árvores de uma região em várias épocas diferentes, podemos fazer uma tabela de quais anos calendáricos correspondem a quais características de anéis. Tendo essa correspondência em mãos, ao encontrarmos um pedaço de madeira com uma determinada sequência de anéis, podemos inferir a época em que a árvore viveu (e, consequentemente, inferir a época em que um certo artefato arqueológico de madeira foi produzido). A dendrocronologia é muito usada, por exemplo, para datação de obras de arte com base em suas molduras40. Figura 25: Corte transversal de um tronco de árvore mostrando seus anéis. A quantidade de anéis indica a idade da árvore. A coloração, a espessura e outras caracterizações dos anéis indicam as condições ambientais em que a árvore se desenvolveu. Fazendo um levantamento estatístico com diversas árvores, é possível fazer uma associação de quais anos calendáricos correspondem a quais sequências de anéis. Uma vez estabelecida essa relação, qualquer artefato de madeira pode ser datado a partir da sequência de anéis da madeira. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 4.0 [15]. É interessante trazer a discussão do parágrafo acima para sala de aula, para evitar a disseminação do mito de que os métodos baseados em decaimentos radioativos são “os melhores” ou “mais precisos”41. Ao contrário, trata-se de um dentre muitos métodos de datação que se complementam. Novamente o convite à interdisciplinaridade faz-se presente, por se tratar de uma temática que envolve a física – na parte dos decaimentos –, a biologia – na dendrocronologia –, a história – na arqueologia – e também as artes – na medida em que essas técnicas são aplicadas para determinar a origem e a originalidade de pinturas e outras obras famosas. 2.10.2. Aplicações medicinais Uma das aplicações medicinais de decaimentos radioativos já foi discutida na primeira parte desta série de artigos: trata-se do uso de decaimentos β+ para realização de exames como o PET scan[1]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo (por ex. o 18F) que decai por β+, ou seja, emitindo pósitrons. Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com a glucose usual, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo decai42, emitindo um pósitron. Esse pósitron se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 26. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 26: Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [58]. Outra aplicação medicinal desses decaimentos radioativos é a chamada radioterapia para combate a cânceres. As partículas emitidas em decaimentos radioativos (as partículas α, os elétrons e pósitrons ou a radiação γ) são tipicamente muito energéticas e, quando incidem sobre células de organismos vivos, podem desintegrar o DNA e danificar sua capacidade reprodutiva. As células cancerígenas são justamente aquelas que se reproduzem descontroladamente, a uma taxa muito maior que as células normais do organismo. Assim, atacando a região cancerígena com radiação e destruindo o DNA de suas células, a reprodução delas fica comprometida e o câncer pode ser reduzido ou até eliminado. Em geral, as células saudáveis em torno do câncer também serão afetadas pela radiação, mas se variarmos o ângulo de incidência da radiação, mantendo a região afetada no centro (como ilustrado na Figura 27) podemos minimizar o dano a regiões saudáveis enquanto maximizamos o bombardeamento ao tumor. Figura 27: Bombardeamento de um tumor por raios γ em sessão de radioterapia. O ângulo de incidência da radiação é variado a fim de maximizar o dano ao tumor, minimizando o dano às regiões saudáveis no seu entorno. Fonte: adaptado de [59], distribuído sob licença Creative Commons BY 4.0 [60]. Outra forma de radioterapia é via implantes do tamanho de grãos de arroz, contendo material radioativo, que são inseridos na região do tumor. Esse material decai ao longo do tempo e danifica as células tumorosas vizinhas ao implante, atuando como uma radioterapia prolongada e constante [59]. Por fim, nota-se que a radioterapia é apropriada para o caso de tumores bem localizados em uma região do corpo. Há, ainda, outros tratamentos contra câncer, como a quimioterapia, que consiste na administração de uma substância que inibe a divisão celular, fazendo com que as células cancerosas morram sem se reproduzir. Nesse caso, não se trata de uma terapia com materiais radioativos, e, sim, com substâncias químicas – daí o nome do tratamento. Como se vê, uma aula sobre aplicações medicinais da radioatividade abre uma janela para a exploração interdisciplinar da física com a biologia, envolvendo tanto física nuclear quanto biologia celular, DNA e ciclo de reprodução da célula. Além disso, trata-se de uma excelente oportunidade para, nesse contexto interdisciplinar, utilizar uma abordagem CTSA em sala de aula. 2.10.3. Esterilização e conservação de alimentos Como acabamos de mencionar, a radiação proveniente de decaimentos nucleares pode ser danosa a organismos vivos, a depender da energia da partícula emitida. Assim, outra utilidade prática desses decaimentos é na esterilização de equipamentos médicos (quando se deseja eliminar microorganismos) e também na conservação de alimentos, eliminando-se bactérias, fungos, larvas, insetos e demais agentes biológicos indesejáveis. Além disso, através da irradiação pode-se postergar a maturação desses alimentos, fazendo com que durem mais tempo e possam ser transportados por maiores distâncias sem que estraguem. No Brasil, a irradiação de alimentos é uma técnica reconhecida e regulamentada pela ANVISA [61]43. De acordo com essa regulação, a radiação permitida para esse fim são os raios γ provenientes de decaimentos do cobalto-60 e do césio-13744, ou raios-X (que também são radiação eletromagnética, como os raios γ, mas nesse caso de energia até 5 MeV) ou até mesmo elétrons acelerados a energias de no máximo 10 MeV. Assim como tudo o que envolve radioatividade, essa aplicação na indústria de alimentos gera preocupações que merecem ser endereçadas com cuidado. A primeira preocupação imaginável é que o alimento possa se tornar radioativo. Isso é impossível, porque a irradiação é feita com elétrons ou radiação eletromagnética, que são incapazes de alterar os isótopos dos elementos presentes na comida45,46. Por exemplo, é impossível converter carbono-12 (estável) em carbono-14 (radioativo) com bombardeamento de fótons ou elétrons. Uma preocupação mais pertinente diz respeito à possível degradação nutricional do alimento irradiado, bem como perdas de qualidades sensoriais, como sabor e aroma. Muitos estudos foram e continuam sendo realizados para investigar essa possibilidade. De fato, os estudos mostram que alguns nutrientes vitamínicos – como a vitamina C, por exemplo – são ligeiramente danificados pelo procedimento, a depender da temperatura em que eles são realizados47, e da dosagem de radiação utilizada [63, 64]. Contudo, assim como na discussão sobre energia nuclear, é preciso comparar esse resultado com o que ocorre nos processos de esterilização alternativos. Por exemplo, a pasteurização a altas temperaturas também implica em perdas de nutrientes. Nessa perspectiva comparativa, as conclusões dos estudos são de que o método de esterilização por irradiação não é aplicável a todos os alimentos – até porque muitos têm o sabor afetado de modo a torná-los desagradáveis ao paladar, como é o caso do leite –, mas que em outros casos as possíveis perdas vitamínicas são comparáveis àquelas advindas dos outros métodos mais usuais de esterilização. Importante mencionar que esse método não deve ser aplicado para substituir as boas práticas de higiene na produção e manuseio dos alimentos, e, sim, para complementá-las. Isso está determinado muito claramente até nas diretrizes da ANVISA [61]. Ademais, essas diretrizes também determinam que no rótulo do produto deve constar a frase “ALIMENTO TRATADO POR PROCESSO DE IRRADIAÇÃO”, a fim de que o consumidor possa fazer uma escolha informada e consciente. Justamente por ser uma temática que instiga o debate, e que tem impacto direto em nossa vida quotidiana – por afetar nossa alimentação –, essa temática é ideal para uma aula CTSA em um contexto interdisciplinar envolvendo a física, a biologia – na discussão do aspecto nutricional dos alimentos –, a química – no debate sobre como a radiação pode destruir moléculas ou catalizar reações que produzam novas substâncias – e também a geografia – levantando a discussão sobre a importância de se ter técnicas de preservação e prolongamento do tempo de vida de um alimento, e o impacto socioeconômico dessas tecnologias na indústria alimentícia. Abordar essas temáticas em uma perspectiva de debate fomenta o desenvolvimento do raciocínio do(a) estudante e sua capacidade de elaborar uma opinião eloquentemente. Não há certo ou errado, desde que todas opiniões sejam fundamentadas em dados e fatos. Pode-se, assim, incentivar a pesquisa por parte dos(as) discentes, para que se preparem à discussão. O debate pode também servir para explorar a criatividade dos(as) estudantes, que podem apresentar suas falas em forma de um telejornal, peça teatral, música, ou outras formas que atraiam a atenção do(a)aluno(a). 2.10.4. Tecnologias quotidianas A radioatividade encontra aplicações também em tecnologias quotidianas, presentes até mesmo em muitas residências. Um exemplo são os detectores de fumaça iônicos, ilustrados na Figura 28. No interior desses detectores há uma câmara de ionização, que consiste de duas placas paralelas conectadas a uma bateria e exposta a um elemento radioativo emissor de partículas α, tipicamente o amerício-241. Essas partículas α ionizam o ar entre as placas (i.e. removem elétrons dos átomos), fazendo surgir uma corrente no circuito. As partículas de fumaça, quando entram na câmara, desionizam o ar, reabsorvendo as partículas carregadas, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. Figura 28: (Esquerda) Esquema do interior de uma câmara de ionização, parte integrante de um detector de fumaça iônico. A câmara contém um elemento emissor de α (tipicamente amerício-241), que ioniza o ar no interior da câmara, provocando uma corrente entre as placas conectadas à bateria. Quando há fumaça, os íons são parcialmente reabsorvidos e o ar é novamente neutralizado, interrompendo a corrente e fazendo soar o alarme. (Direita) Interior de um detector de fumaça iônico. A câmara de ionização está marcada com a etiqueta amarela, que avisa sobre seu conteúdo radioativo. Abaixo dela está o alarme, e à direita a bateria que alimenta o circuito. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC BY-SA 2.0 [66]. Cabe mencionar que este não é o único tipo de detector de fumaça disponível no mercado. Há, ainda, os chamados detectores óticos, que funcionam à base do efeito fotoelétrico [1]. Uma ilustração do funcionamento desses detectores é dada na Figura 29. Figura 29: Esquema ilustrando o funcionamento de um detector de fumaça ótico. Em condições normais, um LED emite radiação infravermelha que não atinge o fotodetector. Na presença de fumaça, a luz é espalhada e desviada de sua trajetória retilínea inicial, incidindo no detector e ativando o alarme. acima, encontram-se listados nas Tabelas 1 e 2.

Tabela 1:
Os momentos da quarta aula da sequência.
Tabela 2:
Os momentos da quinta aula da sequência.

Em trabalho anterior [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] ressaltamos o caráter dialógico do professor com os estudantes em detrimento a uma postura meramente expositiva, a partir do qual vários momentos surgiram de forma orgânica das conversas, das interrogações dos próprios estudantes e de propostas de debates. Por exemplo, no início da quarta aula, após o momento 3, quando o professor relembrou o átomo de Thomson e comentou sobre como Rutherford teve a ideia de um experimento que pudesse testar a composição do átomo de Thomson, e que foi implementada por Geiger e Marsden, um dos estudantes em sala de aula trouxe a informação à turma, com autonomia, de que uma das partículas alfa lançadas ao átomo teria desviado muito mais do que o esperado. Assim, o professor aproveitou para aliar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre energia cinética e potencial para obter, em conjuntos a esses mesmos estudantes, a velocidade final esperada das partículas alfa caso o modelo de Thomson fosse uma descrição adequada para o átomo. Além disso, o professor aproveitou para introduzir a curva esperada do número de partículas alfa desviadas a diversos ângulos para o átomo de Thomson, bem como os pontos experimentais obtidos pelos alunos de Rutherford, e abordou como a discrepância entre a curva esperada para o átomo de Thomson e a curva dos pontos experimentais obtidos mostrou que algo não estava correto na descrição do átomo por Thomson, o que levou ao debate em sala de aula sobre um dos pilares da ciência: o teste de hipóteses. Quando as previsões de um modelo baseadas em determinadas hipóteses não condizem com as observações, cientistas devem repensar as hipóteses iniciais e perspectivas com relação à situação investigada. Com o auxílio do professor, o momento de discussão sobre o desenvolvimento da ciência foi aprofundado: os estudantes construíram a percepção de que os cientistas buscam, a todo momento, criar soluções para os problemas em aberto e, quando essas soluções aparecem e se mostram eficazes, coerentes com as observações, surgem ainda outros novos problemas para os quais novas soluções devem ser buscadas. Tal momento foi guiado pela percepção de que a existência da interação forte resolveu o problema da coesão do núcleo atômico, mas deixou um problema em aberto que seria abordado em aulas futuras: o fato de que não percebemos essa interação no nosso dia a dia.

Outros exemplos vêm dos momentos 7 e 8 da aula 4, quando os estudantes foram estimulados a ir além do átomo de Rutherford e levantaram hipóteses sobre a existência de subestruturas do núcleo, que foram devidamente introduzidas pelo professor, como os prótons e os nêutrons. Em seguida, foi proposto um desafio aos estudantes: pensar como o núcleo não se desintegra, uma vez que os nêutrons são neutros e os prótons, de carga elétrica positiva, tendem a se repelir. Os estudantes expuseram seus pensamentos sobre a situação, considerando elétrons que orbitam o núcleo e as distâncias envolvidas, até um aluno levantar a hipótese de que o núcleo seria formado por ainda outras partículas, menores do que os prótons e os nêutrons, e que deveríamos olhar para as cargas dessas partículas. Dessa forma, o professor constrói, junto aos alunos, a necessidade da existência de uma outra interação, que eles ainda desconheciam, além da eletromagnética e da gravitacional, para vencer a repulsão eletromagnética e que seria fundamental para a atração das partículas do núcleo a fim de mantê-lo coeso.

No último momento da aula 4 houve uma comparação entre a nova interação elaborada durante a aula – a interação forte – com as interações gravitacional e eletromagnética, focos da primeira parte da sequência didática [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Estimular tal pensamento relacional entre os tópicos abordados em sala de aula é sempre muito frutífero, pois assim os estudantes percebem como a ciência não é um apanhado de blocos temáticos desconexos entre si mas, sim, que pode e deve explorar relações das mais diversas, assim como com tudo o que eles vêm e percebem do mundo, ampliando suas estruturas cognitivas e visões sobre o próprio mundo que os cerca. Além disso, houve uma breve introdução ao conceito dos píons e a menção ao brasileiro envolvido na sua descoberta, César Lattes. Neste momento, partindo do próprio interesse dos alunos, houve uma discussão crítica sobre as complexidades de se fazer ciência no Brasil e sobre a hierarquia científica acadêmica e internacional a partir da informação de que o Lattes não recebeu o prêmio Nobel por seu envolvimento na descoberta, o que demonstra interesse por parte dos próprios alunos em compreender as relações sociais mundiais que envolvem a ciência.

Na quinta aula, destacamos os momentos sobre a fissão nuclear e a radioatividade como os mais dialógicos da aula. Os estudantes trazem informações da série de TV “Chernobyl” [67[67] J. Renck e S. Wohlenberg, Chernobyl (HBO Home Entertainment, Nova Iorque, 2019).] para a aula, formulam diversas perguntas sobre os acontecimentos nela mostrados, e ainda trazem novas informações sobre o acidente. Houve perguntas sobre a nuvem tóxica formada, que quase se espalhou por toda a Europa, sobre a formação do câncer nas vítimas do acidente e sobre como máquinas ficam destruídas com a radiação ionizante. Foi um momento de bastante descontração, mas que não ficou somente na surpresa com as informações. Pelo contrário, elas foram discutidas sistematicamente pelo professor para se aproximar o mais possível de um real aprendizado dos conceitos envolvidos e não permanecer apenas na falsa percepção de aprendizado pelo fantástico [68[68] G. Bachelard, A formação fo espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento (Ed. Contraponto, Rio de Janeiro, 2005).]. Após abordar com extensão as desvantagens da energia nuclear, houve interesse dos alunos por uma discussão sobre suas vantagens e questões políticas que envolvem o seu uso, como o enriquecimento do urânio. Foi abordado como as emissões de gases do efeito estufa, que aceleram o aquecimento global, são baixíssimas no caso da energia nuclear. Outra vantagem é que há muito menos impacto ambiental em termos de área que deve ser empregada para a construção de uma usina nuclear, quando comparada, por exemplo, à região utilizada para construir usinas hidrelétricas. Um dos estudantes, inclusive, trouxe com autonomia várias informações para essa discussão: o desmatamento considerável na região próxima aos rios e a retirada de residentes locais para a criação dos reservatórios e das barragens das hidrelétricas, ao que o docente ainda mencionou o risco de rompimento dessas barragens. Os alunos perceberam a complexidade da temática sobre o uso de energia nuclear, refletindo para além do básico. No início da discussão foram abordadas apenas as desvantagens de seu uso, mas, aos poucos, a partir de interações entre colegas e professor, a percepção final foi a de que há diversas vantagens e pouca chance de ocorrer um acidente. Contudo, houve o consenso de que, caso ele ocorra, certamente será um acidente crítico e, sem definir um posicionamento, concluíram a favor da necessidade de mais investimentos em mecanismos de segurança para as usinas nucleares.

Uma análise preliminar das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática pode ser encontrada em [69[69] T. C. da C. Guio, Uma sequência didática para o ensino de Física de Partículas no ensino médio: indícios de alfabetização científica e engajamento de estudantes. Monografia (Licenciatura em Física). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. Disponível em: https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.br/files/field/anexo/labec_thaisaguio01corrigida.pdf, acesso em 21/06/2023.
https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.b...
], e será publicada com mais detalhes em trabalho futuro dos autores.

3.3. Metodologia e coleta de dados

Em nossa análise adotamos um percurso metodológico de cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [70[70] M. Lüdke e M.E.D.A. André, Pesquisa em educação: abordagens qualitativas (EPU, São Paulo, 1986).]. A Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e a diretoria da escola onde as intervenções foram aplicadas autorizaram a observação das intervenções e anotações sobre as interações entre os discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. Para isso, construímos um diário de campo considerando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [70[70] M. Lüdke e M.E.D.A. André, Pesquisa em educação: abordagens qualitativas (EPU, São Paulo, 1986)., 71[71] R.C.M. de Oliveira, Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos 2, 69 (2014).], bem como reflexões após as intervenções propriamente ditas sobre as possíveis relações entre tais aspectos, sobre as atividades para casa e interações imediatamente anteriores e posteriores às intervenções. A metodologia de estudo de caso partiu da vivência com o local onde as ações se desenvolveram, ou seja, em sala de aula, onde consideramos as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [72[72] V.R.A. de Moraes e J.A. Taziri, Investigações em Ensino de Ciências 24, 72 (2019).]. Os dados coletados focam na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores.

Para manter o sigilo e preservar suas identidades, optamos por adotar nomes fictícios para os estudantes, de cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento.

3.4. Os indicadores de alfabetização científica e de engajamento

A análise da viabilidade e da efetividade da sequência didática aplicada, bem como das potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro, considerou a incidência de indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrado pelos estudantes ao longo das aulas e suas atividades. Ressaltamos que as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que sua combinação com uma temática mais contemporânea da Física, a Física de Partículas, favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta.

Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo [73[73] P. Freire, Educação como prática da liberdade (Paz e Terra, São Paulo, 2000)., 74[74] P. Freire, A importância do ato de ler – em três artigos que se completam (Cortez, São Paulo, 1989).]. De acordo com [75[75] L.H. Sasseron e A.M.P. Carvalho, Investigações em Ensino de Ciências 13, 333 (2008).], em qualquer processo de ensino-aprendizagem voltado à alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas a partir de ações que: envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, que estruturam o pensamento científico e que buscam o entendimento da situação analisada. Cada conjunto de ações resume uma série de elementos do fazer científico, como a seriação, a organização e a classificação de informações; o uso do raciocínio lógico e/ou proporcional; o levantamento e o teste de hipóteses; a previsão; entre outros. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 3. Cada um desses indicadores é independente dos demais e eles podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Para mais detalhes sobre o referencial teórico e considerações sobre os indicadores de alfabetização científica adotados, recomendamos a leitura do primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] (ver também [69[69] T. C. da C. Guio, Uma sequência didática para o ensino de Física de Partículas no ensino médio: indícios de alfabetização científica e engajamento de estudantes. Monografia (Licenciatura em Física). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. Disponível em: https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.br/files/field/anexo/labec_thaisaguio01corrigida.pdf, acesso em 21/06/2023.
https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.b...
]).

Tabela 3:
Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico.

Apesar da natureza multifacetada que reflete a complexa interação social do estudante com o ambiente escolar, as situações vivenciadas e os outros sujeitos desse espaço, a literatura sobre engajamento escolar contempla três tipos de engajamento: o comportamental, o emocional e o cognitivo [76[76] J.A. Fredericks, P.C. Blumenfeld e A.H. Paris, Review of Educacional Reseach 74, 59 (2004)., 77[77] G.R. Coelho, A evolução do entendimento dos estudantes em eletricidade: um estudo longitudinal. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (2011)., 78[78] O. Borges, J.M. Júlio e G.R. Coelho, in Atas do V ENPEC (ENPEC, Bauru, 2005)., 79[79] L.H. Sasseron e T.N. de Souza, Investigações em Ensino de Ciências 24, 139 (2019)., 80[80] A.F. Faria e A.M. Vaz, Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências 21, e10545 (2019)., 81[81] J.D. Finn, School engagement and students at risk (National Center for Education Statistics, Washington, 1993)., 82[82] K.E. Voelkl, American Journal of Education 105, 294 (1997)., 83[83] D. Stipek, em Development of achievement motivation: a volume in Educational Psychology, editado por A. Wigfield e J. S. Eccles (Academic Press, San Diego, 2002)., 84[84] J.P. Connell e J.G. Wellborn, em Minnesota Symposium on Child Psychology 23 Self processes and development, editado por M.R. Gunnar e L.A. Sroufe (University of Chicago Press, Chicago, 1991)., 85[85] J.E. Brophy, em Advances in motivation and achievement: enhancing motivation, editado por M.L. Maehr e D.A. Kleiber (JAI Press, Greenwich, 1987)., 86[86] C. Ames, Journal of Educational Psychology 84, 261 (1992)., 87[87] C.S. Dweck e E.L. Legget, Psychological Review 95, 256 (1988)., 88[88] S. Harter, Development Psychology 17, 300 (1981)., 89[89] L. Corno e E.B. Madinach, Educational Psychologist 18, 88 (1983).]. Todos se relacionam de forma dinâmica e não ocorrem em processos isolados. A partir desse referencial teórico, consideramos os indicadores de engajamento listados na Tabela 4 para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades de inserir a temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro. Para mais detalhes, novamente indicamos o primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] (ver também [69[69] T. C. da C. Guio, Uma sequência didática para o ensino de Física de Partículas no ensino médio: indícios de alfabetização científica e engajamento de estudantes. Monografia (Licenciatura em Física). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. Disponível em: https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.br/files/field/anexo/labec_thaisaguio01corrigida.pdf, acesso em 21/06/2023.
https://labec.ufes.br/sites/labec.ufes.b...
]).

Tabela 4:
Os indicadores de engajamento.

3.5. Resultados

Nesta seção apresentamos os resultados referentes à incidência, durante a quarta e quinta aulas da sequência didática, dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento, apresentados na seção 3.4 3.4. Os indicadores de alfabetização científica e de engajamento A análise da viabilidade e da efetividade da sequência didática aplicada, bem como das potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro, considerou a incidência de indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrado pelos estudantes ao longo das aulas e suas atividades. Ressaltamos que as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que sua combinação com uma temática mais contemporânea da Física, a Física de Partículas, favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo [73, 74]. De acordo com [75], em qualquer processo de ensino-aprendizagem voltado à alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas a partir de ações que: envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, que estruturam o pensamento científico e que buscam o entendimento da situação analisada. Cada conjunto de ações resume uma série de elementos do fazer científico, como a seriação, a organização e a classificação de informações; o uso do raciocínio lógico e/ou proporcional; o levantamento e o teste de hipóteses; a previsão; entre outros. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 3. Cada um desses indicadores é independente dos demais e eles podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Para mais detalhes sobre o referencial teórico e considerações sobre os indicadores de alfabetização científica adotados, recomendamos a leitura do primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 3: Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica(Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidosem uma investigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação do pensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento da situação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação Apesar da natureza multifacetada que reflete a complexa interação social do estudante com o ambiente escolar, as situações vivenciadas e os outros sujeitos desse espaço, a literatura sobre engajamento escolar contempla três tipos de engajamento: o comportamental, o emocional e o cognitivo [76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89]. Todos se relacionam de forma dinâmica e não ocorrem em processos isolados. A partir desse referencial teórico, consideramos os indicadores de engajamento listados na Tabela 4 para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades de inserir a temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro. Para mais detalhes, novamente indicamos o primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 4: Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às ciências em geral Uso de estratégias acima. Uma publicação à parte aprofundará na análise da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência.

A incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aula são apresentados na Figura 30.

Figura 30:
Incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aulas sobre Física Nuclear. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 14,45%).

Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, houve uma incidência similar de todos os três indicadores: seriação de informações, organização de informações e classificação de informações. No entanto, quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas (as três primeiras aulas da sequência didática [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]), percebemos um aumento de, no mínimo, duas vezes nas incidências de organização e classificação de informações, o que é natural pois, à medida que os alunos se deparam com novos conhecimentos, há uma maior necessidade de arranjá-los em suas estruturas cognitivas e estabelecer relações entre eles.

Com relação às ações que estruturam o pensamento científico percebemos uma leve queda no raciocínio proporcional quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas. Esse elemento do fazer científico foi estimulado nos momentos 4 e 5 da quarta aula, sobre o experimento de Rutherford-Geiger-Marsden e durante a discussão sobre teste de hipóteses na ciência (ver Tabela 1). No entanto, a incidência foi menor do que nos momentos sobre as semelhanças e diferenças entre as leis de Coulomb e a da Gravitação, e sobre as equações de Maxwell do primeiro bloco de aulas da sequência didática [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).].

Com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, observamos um aumento de quase 100% na incidência dos indicadores de justificativa e de explicação quando comparada à incidência desses mesmos indicadores no primeiro bloco de aulas [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).]. Tal resultado foi devido, principalmente, à quinta aula pois, nela, os estudantes foram não só estimulados a incorporar ideias durante todas as discussões em sala de aula, fortalecendo com argumentação os aspectos abordados mas, também, os estudantes agiram com autonomia para trazer novas informações e fontes para as discussões. Inclusive, o indicador de explicação reúne uma série de ações do fazer científico e não foi mera coincidência obter sua maior incidência na quinta aula, justamente a que mais engajou os estudantes até o presente momento da sequência.

Na Figura 31 apresentamos os indicadores de engajamento presentes nas aulas consideradas neste trabalho para cada um dos tipos de engajamento e para três dos cinco alunos mais presentes nas aulas – Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, que estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Não apresentamos os resultados para os estudantes Peter e Emmy, como fizemos em trabalho anterior [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).] sobre as três primeiras aulas da sequência, pois eles não estiverem presentes justamente na quarta e quinta aulas, foco deste trabalho.

Figura 31:
Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo para os três estudantes mais presentes nas intervenções da quarta e da quinta aulas da sequência didática.

As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram dos estudantes Werner e Albert, todas com expressividade, ainda mais quando notamos que houve apenas 10 e 16 momentos na quarta e na quinta aula, respectivamente. Além disso, cabe ressaltar que o estudante Albert foi o menos participativo nas três primeiras aulas da sequência e, a partir da quarta aula, após se mostrar mais aberto e à vontade em sala, revelou um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. A partir da quinta aula, o mesmo estudante demonstrou ainda mais engajamento, iniciando pelo comportamental e se aprofundando no engajamento emocional e, principalmente, no engajamento cognitivo. De fato, enquanto nas três primeiras aulas da sequência Albert apresentou apenas 7, 14 e zero intervenções demonstrando engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).], esse mesmo estudante obteve, na quarta e quinta aulas, 64, 15 e 48 intervenções de engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, Albert apresentou uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento. Junto a Werner, com engajamento significativo ao longo de todas as aulas da sequência, Albert foi um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo nos índices de Albert é indicativo de que a sequência foi aplicada de maneira bem-sucedida com base na dialogicidade do docente aliada à temática contemporânea da Física e mostrou-se capaz de trazer os estudantes para as aulas, até mesmo aqueles mais inibidos ou inseguros nas primeiras aulas da sequência.

4. Conclusões

Nesta segunda parte da série “Física de Partículas no ensino médio” exploramos a temática de Física Nuclear com ênfase em uma perspectiva CTSA. Na sequência proposta, o assunto é motivado pela busca da estrutura fundamental da matéria, mas logo se desenvolve rumo às aplicações tecnológicas que impactam a sociedade e o meio-ambiente. Mais do que isso, foi mostrado como cada subtópico pode ser discutido em sala sob um viés interdisciplinar, em diálogo com outros professores, fomentando a conjunção dos conhecimentos, em contraposição à compartimentação que frequentemente predomina nos currículos escolares.

Parte do material discutido neste artigo compôs duas aulas da sequência didática, ministradas em, aproximadamente, 1 hora cada, a uma turma mista das três séries do ensino médio de uma escola estadual da cidade de Vila Velha, estado do Espírito Santo. Na ocasião, ficou patente o interesse agudo dos(as) estudantes pela temática, que se manifestou nos resultados da análise de engajamento discutidos na seção 3 3. Análise das intervenções 3.1. O contexto: o local e os sujeitos No ano de 2017, o Núcleo Cosmo-UFES da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) iniciou o projeto de extensão “Universo na Escola” [65], em que professores e pesquisadores são convidados a ministrar palestras sobre tópicos atuais de pesquisa em Física a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. O intuito do projeto é o de ampliar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas ciências em geral e, em particular, pela Física. Ministradas fora do período regular de aulas nas escolas participantes, as palestras se configuram como atividade complementar eletiva. Para este trabalho, os autores optaram por extrapolar o formato usual das palestras do contexto do projeto de extensão. Para isso, elaboraram e ministraram uma sequência didática sobre Física de Partículas contemplando dez encontros com duração aproximada de uma hora cada, em horários extra-classe, durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, o que totalizou uma carga horária de dez horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os discentes. A sequência foi ministrada por um dos autores a uma turma mista com, no máximo, quatorze estudantes das 1a , 2a e 3a séries do ensino médio do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Alguns participantes integravam um grupo com interesse prévio em Física, que já era acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador de Física da escola. No entanto, no decorrer da sequência outros estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais que já participavam das aulas. 3.2. Das aulas Na seção 2 apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física Nuclear, organizados de maneira fluida em continuidade à primeira parte da sequência didática, cujo foco foi a introdução à Física de Partículas e a Eletrodinâmica Quântica [1]. Da mesma forma que na primeira parte desta sequência didática, os conceitos relevantes à temática eram construídos em conjunto aos discentes a partir de conexões com seus conhecimentos prévios, de forma que o engajamento dos estudantes presentes nas aulas foi mantido ou aumentou consideravelmente, como veremos na seção 3.5. Na intervenção realizada na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Física Nuclear, serviu como base para a elaboração da segunda parte da sequência didática sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em duas aulas, a quarta e quinta aulas, ministradas nos dias 7 e 10 de outubro do ano de 2019, com duração de 52 e 65 minutos, respectivamente. A primeira aula do bloco de aulas sobre Física Nuclear, em análise neste trabalho, foi a quarta aula da sequência didática de dez aulas48. O primeiro momento da quarta aula foi de breve revisão da terceira aula da sequência. Na terceira aula, tópicos introdutórios de Mecânica Quântica foram abordados para a construção dialógica da dualidade onda-partícula, do fóton como mediador da interação eletromagnética e do conceito de antipartícula ou antimatéria a partir do pósitron, finalizando com um debate sobre aplicações na Medicina, como nos raios-X e na tomografia PET-scan. Mais detalhes sobre a terceira aula da sequência didática podem ser encontrados em [1]. Os principais tópicos abordados em sala no restante da quarta e da quinta aulas, com as respectivas subseções discutidas detalhadamente na seção 2 acima, encontram-se listados nas Tabelas 1 e 2. Tabela 1: Os momentos da quarta aula da sequência. Aula 4: Física Nuclear – Parte I Seção Momento Breve revisão da terceira aulaAs escalas dos efeitos quânticos e relativísticos 12 2.1.1 Relembrando o átomo de Thomson 3 2.1.2 e 2.1.3 O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden: levantando hipóteses na ciência 4 2.1.3 e 2.1.4 Teste de hipóteses na ciência 5 2.1.4 Como ocorre o desenvolvimento da ciência – Parte I 6 2.2 Os prótons e os nêutrons: o núcleo atômico possui uma subestrutura 7 2.4.1 A interação nuclear forte: por que o núcleo não se desintegra? 8 2.4.2 Como ocorre o desenvolvimento da ciência – Parte II 9 2.4.3 Comparando a interação forte com as interações gravitacional e eletromagnética 10 Tabela 2: Os momentos da quinta aula da sequência. Aula 5: Física Nuclear – Parte II Seção Momento Breve revisão da aula anterior 1 2.5 Energia de ligação 2 2.7 O processo de fusão nuclear 3 2.7.1 e 2.7.2 A energia do Sol e a formação de elementos no Universo 4 2.9 O que são decaimentos nucleares? 5 Decaimento alfa 6 Decaimento beta 7 Decaimento gama 8 2.6 O processo de fissão nuclear 9 2.8 A radioatividade e seus perigos: Marie Curie e Chernobyl 10 A radioatividade e seus perigos: a bomba de Hiroshima 11 A radioatividade e seus perigos: o desastre de Fukushima 12 Mecanismos de controle em usinas nucleares 13 Vantagens da energia nuclear e questões políticas sobre enriquecimento de urânio 14 O que fazer com o lixo radioativo? 15 2.7.3 e 2.8 Energia nuclear a partir de fusão e a bomba de hidrogênio 16 Em trabalho anterior [1] ressaltamos o caráter dialógico do professor com os estudantes em detrimento a uma postura meramente expositiva, a partir do qual vários momentos surgiram de forma orgânica das conversas, das interrogações dos próprios estudantes e de propostas de debates. Por exemplo, no início da quarta aula, após o momento 3, quando o professor relembrou o átomo de Thomson e comentou sobre como Rutherford teve a ideia de um experimento que pudesse testar a composição do átomo de Thomson, e que foi implementada por Geiger e Marsden, um dos estudantes em sala de aula trouxe a informação à turma, com autonomia, de que uma das partículas alfa lançadas ao átomo teria desviado muito mais do que o esperado. Assim, o professor aproveitou para aliar os conhecimentos prévios dos estudantes sobre energia cinética e potencial para obter, em conjuntos a esses mesmos estudantes, a velocidade final esperada das partículas alfa caso o modelo de Thomson fosse uma descrição adequada para o átomo. Além disso, o professor aproveitou para introduzir a curva esperada do número de partículas alfa desviadas a diversos ângulos para o átomo de Thomson, bem como os pontos experimentais obtidos pelos alunos de Rutherford, e abordou como a discrepância entre a curva esperada para o átomo de Thomson e a curva dos pontos experimentais obtidos mostrou que algo não estava correto na descrição do átomo por Thomson, o que levou ao debate em sala de aula sobre um dos pilares da ciência: o teste de hipóteses. Quando as previsões de um modelo baseadas em determinadas hipóteses não condizem com as observações, cientistas devem repensar as hipóteses iniciais e perspectivas com relação à situação investigada. Com o auxílio do professor, o momento de discussão sobre o desenvolvimento da ciência foi aprofundado: os estudantes construíram a percepção de que os cientistas buscam, a todo momento, criar soluções para os problemas em aberto e, quando essas soluções aparecem e se mostram eficazes, coerentes com as observações, surgem ainda outros novos problemas para os quais novas soluções devem ser buscadas. Tal momento foi guiado pela percepção de que a existência da interação forte resolveu o problema da coesão do núcleo atômico, mas deixou um problema em aberto que seria abordado em aulas futuras: o fato de que não percebemos essa interação no nosso dia a dia. Outros exemplos vêm dos momentos 7 e 8 da aula 4, quando os estudantes foram estimulados a ir além do átomo de Rutherford e levantaram hipóteses sobre a existência de subestruturas do núcleo, que foram devidamente introduzidas pelo professor, como os prótons e os nêutrons. Em seguida, foi proposto um desafio aos estudantes: pensar como o núcleo não se desintegra, uma vez que os nêutrons são neutros e os prótons, de carga elétrica positiva, tendem a se repelir. Os estudantes expuseram seus pensamentos sobre a situação, considerando elétrons que orbitam o núcleo e as distâncias envolvidas, até um aluno levantar a hipótese de que o núcleo seria formado por ainda outras partículas, menores do que os prótons e os nêutrons, e que deveríamos olhar para as cargas dessas partículas. Dessa forma, o professor constrói, junto aos alunos, a necessidade da existência de uma outra interação, que eles ainda desconheciam, além da eletromagnética e da gravitacional, para vencer a repulsão eletromagnética e que seria fundamental para a atração das partículas do núcleo a fim de mantê-lo coeso. No último momento da aula 4 houve uma comparação entre a nova interação elaborada durante a aula – a interação forte – com as interações gravitacional e eletromagnética, focos da primeira parte da sequência didática [1]. Estimular tal pensamento relacional entre os tópicos abordados em sala de aula é sempre muito frutífero, pois assim os estudantes percebem como a ciência não é um apanhado de blocos temáticos desconexos entre si mas, sim, que pode e deve explorar relações das mais diversas, assim como com tudo o que eles vêm e percebem do mundo, ampliando suas estruturas cognitivas e visões sobre o próprio mundo que os cerca. Além disso, houve uma breve introdução ao conceito dos píons e a menção ao brasileiro envolvido na sua descoberta, César Lattes. Neste momento, partindo do próprio interesse dos alunos, houve uma discussão crítica sobre as complexidades de se fazer ciência no Brasil e sobre a hierarquia científica acadêmica e internacional a partir da informação de que o Lattes não recebeu o prêmio Nobel por seu envolvimento na descoberta, o que demonstra interesse por parte dos próprios alunos em compreender as relações sociais mundiais que envolvem a ciência. Na quinta aula, destacamos os momentos sobre a fissão nuclear e a radioatividade como os mais dialógicos da aula. Os estudantes trazem informações da série de TV “Chernobyl” [67] para a aula, formulam diversas perguntas sobre os acontecimentos nela mostrados, e ainda trazem novas informações sobre o acidente. Houve perguntas sobre a nuvem tóxica formada, que quase se espalhou por toda a Europa, sobre a formação do câncer nas vítimas do acidente e sobre como máquinas ficam destruídas com a radiação ionizante. Foi um momento de bastante descontração, mas que não ficou somente na surpresa com as informações. Pelo contrário, elas foram discutidas sistematicamente pelo professor para se aproximar o mais possível de um real aprendizado dos conceitos envolvidos e não permanecer apenas na falsa percepção de aprendizado pelo fantástico [68]. Após abordar com extensão as desvantagens da energia nuclear, houve interesse dos alunos por uma discussão sobre suas vantagens e questões políticas que envolvem o seu uso, como o enriquecimento do urânio. Foi abordado como as emissões de gases do efeito estufa, que aceleram o aquecimento global, são baixíssimas no caso da energia nuclear. Outra vantagem é que há muito menos impacto ambiental em termos de área que deve ser empregada para a construção de uma usina nuclear, quando comparada, por exemplo, à região utilizada para construir usinas hidrelétricas. Um dos estudantes, inclusive, trouxe com autonomia várias informações para essa discussão: o desmatamento considerável na região próxima aos rios e a retirada de residentes locais para a criação dos reservatórios e das barragens das hidrelétricas, ao que o docente ainda mencionou o risco de rompimento dessas barragens. Os alunos perceberam a complexidade da temática sobre o uso de energia nuclear, refletindo para além do básico. No início da discussão foram abordadas apenas as desvantagens de seu uso, mas, aos poucos, a partir de interações entre colegas e professor, a percepção final foi a de que há diversas vantagens e pouca chance de ocorrer um acidente. Contudo, houve o consenso de que, caso ele ocorra, certamente será um acidente crítico e, sem definir um posicionamento, concluíram a favor da necessidade de mais investimentos em mecanismos de segurança para as usinas nucleares. Uma análise preliminar das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática pode ser encontrada em [69], e será publicada com mais detalhes em trabalho futuro dos autores. 3.3. Metodologia e coleta de dados Em nossa análise adotamos um percurso metodológico de cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [70]. A Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e a diretoria da escola onde as intervenções foram aplicadas autorizaram a observação das intervenções e anotações sobre as interações entre os discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. Para isso, construímos um diário de campo considerando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [70, 71], bem como reflexões após as intervenções propriamente ditas sobre as possíveis relações entre tais aspectos, sobre as atividades para casa e interações imediatamente anteriores e posteriores às intervenções. A metodologia de estudo de caso partiu da vivência com o local onde as ações se desenvolveram, ou seja, em sala de aula, onde consideramos as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [72]. Os dados coletados focam na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores. Para manter o sigilo e preservar suas identidades, optamos por adotar nomes fictícios para os estudantes, de cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento. 3.4. Os indicadores de alfabetização científica e de engajamento A análise da viabilidade e da efetividade da sequência didática aplicada, bem como das potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro, considerou a incidência de indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrado pelos estudantes ao longo das aulas e suas atividades. Ressaltamos que as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que sua combinação com uma temática mais contemporânea da Física, a Física de Partículas, favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo [73, 74]. De acordo com [75], em qualquer processo de ensino-aprendizagem voltado à alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas a partir de ações que: envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, que estruturam o pensamento científico e que buscam o entendimento da situação analisada. Cada conjunto de ações resume uma série de elementos do fazer científico, como a seriação, a organização e a classificação de informações; o uso do raciocínio lógico e/ou proporcional; o levantamento e o teste de hipóteses; a previsão; entre outros. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 3. Cada um desses indicadores é independente dos demais e eles podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Para mais detalhes sobre o referencial teórico e considerações sobre os indicadores de alfabetização científica adotados, recomendamos a leitura do primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 3: Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica(Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidosem uma investigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação do pensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento da situação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação Apesar da natureza multifacetada que reflete a complexa interação social do estudante com o ambiente escolar, as situações vivenciadas e os outros sujeitos desse espaço, a literatura sobre engajamento escolar contempla três tipos de engajamento: o comportamental, o emocional e o cognitivo [76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89]. Todos se relacionam de forma dinâmica e não ocorrem em processos isolados. A partir desse referencial teórico, consideramos os indicadores de engajamento listados na Tabela 4 para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades de inserir a temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio brasileiro. Para mais detalhes, novamente indicamos o primeiro artigo desta série sobre Física de Partículas no ensino médio [1] (ver também [69]). Tabela 4: Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às ciências em geral Uso de estratégias 3.5. Resultados Nesta seção apresentamos os resultados referentes à incidência, durante a quarta e quinta aulas da sequência didática, dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento, apresentados na seção 3.4 acima. Uma publicação à parte aprofundará na análise da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência. A incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aula são apresentados na Figura 30. Figura 30: Incidência dos indicadores de alfabetização científica durante a quarta e quinta aulas sobre Física Nuclear. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 14,45%). Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, houve uma incidência similar de todos os três indicadores: seriação de informações, organização de informações e classificação de informações. No entanto, quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas (as três primeiras aulas da sequência didática [1]), percebemos um aumento de, no mínimo, duas vezes nas incidências de organização e classificação de informações, o que é natural pois, à medida que os alunos se deparam com novos conhecimentos, há uma maior necessidade de arranjá-los em suas estruturas cognitivas e estabelecer relações entre eles. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico percebemos uma leve queda no raciocínio proporcional quando comparado ao resultado do primeiro bloco de aulas. Esse elemento do fazer científico foi estimulado nos momentos 4 e 5 da quarta aula, sobre o experimento de Rutherford-Geiger-Marsden e durante a discussão sobre teste de hipóteses na ciência (ver Tabela 1). No entanto, a incidência foi menor do que nos momentos sobre as semelhanças e diferenças entre as leis de Coulomb e a da Gravitação, e sobre as equações de Maxwell do primeiro bloco de aulas da sequência didática [1]. Com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, observamos um aumento de quase 100% na incidência dos indicadores de justificativa e de explicação quando comparada à incidência desses mesmos indicadores no primeiro bloco de aulas [1]. Tal resultado foi devido, principalmente, à quinta aula pois, nela, os estudantes foram não só estimulados a incorporar ideias durante todas as discussões em sala de aula, fortalecendo com argumentação os aspectos abordados mas, também, os estudantes agiram com autonomia para trazer novas informações e fontes para as discussões. Inclusive, o indicador de explicação reúne uma série de ações do fazer científico e não foi mera coincidência obter sua maior incidência na quinta aula, justamente a que mais engajou os estudantes até o presente momento da sequência. Na Figura 31 apresentamos os indicadores de engajamento presentes nas aulas consideradas neste trabalho para cada um dos tipos de engajamento e para três dos cinco alunos mais presentes nas aulas – Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, que estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Não apresentamos os resultados para os estudantes Peter e Emmy, como fizemos em trabalho anterior [1] sobre as três primeiras aulas da sequência, pois eles não estiverem presentes justamente na quarta e quinta aulas, foco deste trabalho. Figura 31: Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo para os três estudantes mais presentes nas intervenções da quarta e da quinta aulas da sequência didática. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram dos estudantes Werner e Albert, todas com expressividade, ainda mais quando notamos que houve apenas 10 e 16 momentos na quarta e na quinta aula, respectivamente. Além disso, cabe ressaltar que o estudante Albert foi o menos participativo nas três primeiras aulas da sequência e, a partir da quarta aula, após se mostrar mais aberto e à vontade em sala, revelou um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. A partir da quinta aula, o mesmo estudante demonstrou ainda mais engajamento, iniciando pelo comportamental e se aprofundando no engajamento emocional e, principalmente, no engajamento cognitivo. De fato, enquanto nas três primeiras aulas da sequência Albert apresentou apenas 7, 14 e zero intervenções demonstrando engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente [1], esse mesmo estudante obteve, na quarta e quinta aulas, 64, 15 e 48 intervenções de engajamento comportamental, emocional e cognitivo, respectivamente. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, Albert apresentou uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento. Junto a Werner, com engajamento significativo ao longo de todas as aulas da sequência, Albert foi um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo nos índices de Albert é indicativo de que a sequência foi aplicada de maneira bem-sucedida com base na dialogicidade do docente aliada à temática contemporânea da Física e mostrou-se capaz de trazer os estudantes para as aulas, até mesmo aqueles mais inibidos ou inseguros nas primeiras aulas da sequência. .

Apresentamos, também, atividades que podem ser realizadas com a turma e que fomentam diversas habilidades em todas as competências norteadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) na área de Ciências da Natureza e suas tecnologias no ensino médio [10[10] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Base Nacional Comum Curricular, disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br, acesso em 21/06/2023.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
]. Trabalha-se, assim, não apenas o conteúdo desejado, mas também outras capacidades, saberes e talentos dos(as) estudantes.

Assim como na primeira parte dessa série de artigos [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).], o material contido aqui não precisa, necessariamente, ser aplicado na íntegra, e é até desejável que haja alguma seleção. O intuito não é fornecer um material formulaico, a ser seguido à risca pelo(a) professor(a), mas uma matéria bruta a ser por ele(a) lapidada. O objetivo jamais deve ser o “conteudismo” mas, sim, usar esse conteúdo para motivar o engajamento, proporcionar a alfabetização científica e a inclusão do(a) discente no mundo contemporâneo. Esperamos que o presente trabalho tenha demonstrado ao(à) leitor(a) o potencial da física nuclear em servir a esse propósito em sala de aula.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Júlio César Fabris, organizador do projeto “Universo na Escola”, e a Thiago Pereira da Silva, professor de Física da CEEMTI Profa Maura Abaurre (Vila Velha – ES) no período das intervenções, por viabilizarem o presente estudo. Agradecemos também a Geide Rosa Coelho, por sugestões e comentários relevantes à análise das intervenções. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001.

Apêndice A: Propostas de Atividades

Seção 2.5 2.5. Reações nucleares Consolidando-se entre os(as) discentes o conceito de força nuclear, pode-se enveredar em discussões sobre diversos fenômenos e aplicações associadas à Física Nuclear. Trata-se de um fértil contexto para exploração interdisciplinar em uma abordagem CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) com temáticas como: fissão nuclear e suas aplicações bélicas e pacíficas; fusão nuclear como fonte de energia do Sol, e sua importância para o desenvolvimento da vida na Terra; a formação da maioria dos elementos em processos de fusão no interior das estrelas, e por que “somos poeira das estrelas”; a matriz energética no Brasil e no mundo: diversas fontes de energia e seus impactos ambientais; decaimentos radioativos e aplicações. 2.5.1. Energia de ligação nuclear Como existe uma força nuclear atrativa que tende a manter o núcleo coeso, qualquer tentativa de desintegrá-lo, separando os prótons e nêutrons uns dos outros, requer que se forneça energia ao sistema, como mostra a Figura 9. A energia necessária para isso é denominada energia de ligação nuclear. Figura 9: Reação autossustentável de fissão controlada. Em cada estágio, ao menos um nêutron ejetado se encontra com outro nuclídeo de 235U, originando outra fissão e garantindo a continuidade do processo. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Público. A famosa relação relativística de equivalência entre massa e energia, E=m⁢c2, garante que a massa de um nuclídeo11 é menor do que a soma das massas dos constituintes isolados, como mostra a Figura 10. De fato, como é necessário fornecer uma quantidade de energia Elig para desintegrar um nuclídeo XZA em Z prótons e N=A-Z nêutrons, o princípio de conservação de energia garante que (13) m nuc ⁢ c 2 + E lig = Z ⁢ m p ⁢ c 2 + N ⁢ m n ⁢ c 2 , Figura 10: Ilustração de duas maneiras de se compreender a energia de ligação de um núcleo de hélio, i.e. uma partícula α: (esquerda) déficit de massa e (direita) energia necessária para desintegrar o núcleo em seus constituintes. ou seja, (14) E lig = ( Z ⁢ m p + N ⁢ m n - m nuc ) ⏟ déficit de massa ⁢ c 2 . A diferença entre a massa de um nuclídeo coeso e a de seus constituintes é denominada déficit de massa. A Figura 11 mostra a energia de ligação média por núcleon – a razão da energia de ligação pelo número de massa A– para vários nuclídeos. Trata-se de uma medida do quanto cada núcleon está ligado a seus vizinhos, em média. Muita física pode ser discutida a partir dessa figura, que promove uma excelente oportunidade de desenvolvimento de interpretação de gráficos e da intuição física dos(as) discentes (ver apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades). Figura 11: Energia de ligação dividida pelo número de núcleons (prótons e nêutrons). De imediato, nota-se que a escala de energia associada à física nuclear – por exemplo, a energia para dissociar um nuclídeo – é da ordem de MeV, que é 1 milhão de vezes maior do que as escalas de energia da física atômica e molecular – a energia de ionização dos átomos ou de dissociação de moléculas é ∼1-10eV. Daí já se pode depreender por que armas nucleares são tão mais destrutivas do que explosivos usuais, baseados em reações químicas, e por que a geração de energia nuclear é tão eficiente, capaz de produzir energia suficiente para abastecer metrópoles por meses ou anos a partir de alguns quilogramas de matéria. Por exemplo, a ogiva detonada em Hiroshima, havendo consumido apenas ∼1kg de 235U, liberou energia equivalente à detonação de 20.000 toneladas de TNT [24]. 2.5.2. Saturação da força nuclear Já foi discutido acima (seção 2.4.3) que a força nuclear deve ter curto alcance, da ordem de 1fm. A Figura 11 oferece outra evidência a favor dessa afirmação. Para entender por que, considere, primeiro, a energia associada à interação eletrostática entre Z prótons em um nuclídeo. Cada próton, de carga e, é repelido por Z-1 outros prótons, distantes um do outro de r∼1fm. A contribuição eletrostática à energia por próton é, então, (15) E Coulomb Z ∼ - ( Z - 1 ) ⁢ k ⁢ e 2 r , ou seja, varia linearmente com o número de prótons no núcleo. O sinal negativo se deve ao fato de a força ser repulsiva, provocando uma redução na energia de ligação por constituir uma tendência natural à desintegração do nuclídeo. Analogamente, para um nuclídeo com A núcleons existem A⁢(A-1)/2 maneiras de se arranjá-los em pares, de modo que, se supusermos que cada núcleon interage com todos os demais via força nuclear, esperaríamos (16) E nuclear ∝ A ⁢ ( A - 1 ) , ou seja, Enuclear /A cresceria linearmente com o número de núcleons. Analogamente à equação (15), o coeficiente de proporcionalidade é indicativo da intensidade da interação nuclear. Se olharmos, agora, para a Figura 11, veremos que esse crescimento linear é de fato observado para nuclídeos leves, com A≤4. Mas a taxa de crescimento – dada pelo coeficiente de proporcionalidade na equação (16) – diminui gradativamente, até que, para nuclídeos mais pesados, com A≳16, a curva tende a se aplainar em um patamar Eligação /A∼8MeV, atingindo um máximo para o 56Fe. Ou seja, a hipótese de que cada núcleon interage com todos seus vizinhos deixa de ser obedecida. Dito de outra forma, a intensidade média da interação nuclear atuante sobre cada núcleon diminui com o aumento do nuclídeo: outra evidência sustentando que a interação nuclear é de curto alcance. Disso podemos extrair, ainda, uma estimativa do alcance dessa interação, que deve ser da ordem de magnitude das dimensões nucleares, r∼1fm, uma vez que, mesmo para núcleons contidos no interior de um nuclídeo, essa interação já deixa de ser eficaz. Podemos aprofundar ainda mais a análise da Figura 11 para extrair mais informações sobre a interação nuclear. Partindo de um único próton, e acrescentando-lhe nêutrons e outros prótons, nota-se que a energia de ligação por núcleon cresce drasticamente12 até atingir um máximo local no 4He, que é um nuclídeo excepcionalmente estável13. Se acrescentamos ao 4He um próton e um nêutron, formando 6Li, a energia de ligação total aumenta – porque um maior número de núcleons implica em mais possibilidades de mútuas interações –, mas a energia média por núcleon diminui. É como se alguns dos núcleons de 6Li se aglomerassem em uma combinação altamente interagente de 2 prótons e 2 nêutrons, enquanto o próton e o nêutron adicionais, desemparelhados, interagissem com menor intensidade, reduzindo a energia de ligação média. Se seguirmos acrescentando núcleons, os prótons e nêutrons extras vão se emparelhando, provocando um aumento de Eligação /A. Mas esse crescimento ocorre a uma taxa inferior àquela entre 1H e 4He – a média da mútua interação entre os núcleons já é menor, devido à maior distância entre eles. Essa segunda reta de crescimento na Figura 11 culmina no 12C, um outro nuclídeo excepcionalmente estável por ser composto de um aglomerado14 de 34He. Analogamente, o 16O pode ser visto como um aglomerado de 44He e possui, também, grande energia de ligação por núcleon15. Como já discutido nesta mesma subseção, à medida que o nuclídeo aumenta de tamanho, núcleons diametralmente opostos deixam de interagir um com o outro pela força nuclear – devido ao curto alcance dessa interação –, e o acréscimo de novos núcleons tende a aumentar cada vez menos a energia de ligação média de cada núcleon. Fala-se, então, da saturação da força nuclear, que é outra forma de expressar o curto alcance dessa interação. Acontece que, quanto maior o nuclídeo, maior é seu número de prótons16, e embora a interação nuclear tenda a saturar, a repulsão coulombiana continua atuante entre todos os prótons, contribuindo negativamente à energia de ligação, conforme a equação (15). É por isso que, a partir do ferro-56, a curva da Figura 11 apresenta uma inflexão, tornando-se decrescente.

Um bom exercício, tanto para consolidar o conceito de energia de ligação nuclear, quanto para incentivar cálculos simples e com aplicação prática em discussões sobre energia nuclear, é usar a Figura 11 para determinar a quantidade de energia liberada em uma determinada reação nuclear.

Por exemplo, conforme discutido na seção 2.7.3 2.7.3. Extração de energia por fusão nuclear Por fim, nota-se que, como a curva da energia de ligação (Figura 11) é muito mais íngreme para fusão do que fissão, a eficiência da extração de energia por fusão (i.e. a quantidade de energia extraída por quantidade de combustível utilizado) é muito maior. De fato, cada fissão de 235U libera, em média, 200 MeV de energia [24], o que dá ∼8.2×1010J por grama de combustível28, ao passo que uma fusão deutério-trítio, (18) H 2 + 3 H → 4 He + n + 17.6 ⁢ MeV , libera ∼3.4×1011J/g, cerca de 4 vezes mais do que a fissão para cada grama de combustível. Entretanto, é muito mais difícil produzir uma reação controlada e autossustentável de fusão, porque o combustível deve ser mantido a temperaturas e densidades altíssimas, para que os nuclídeos possam superar a barreira de repulsão coulombiana, como já discutido anteriormente. A manutenção dessas condições é custosa e tecnicamente complexa, o que faz com que a extração controlada de energia por meio de fusão ainda seja um problema em aberto na Física Nuclear. Também é possível produzir armamentos baseados na fusão nuclear. Um tal dispositivo é denominado bomba de hidrogênio (bomba-H) ou arma termonuclear. Nesse caso, as altas temperaturas requeridas para realização da fusão são fornecidas ao combustível por uma prévia detonação de uma bomba de fissão. , uma das principais reações que poderiam ser usadas na geração de energia nuclear por fusão é a produção de hélio-4 por fusão de um deutério e um trítio,

(24) H 2 + 3 H 4 He + n + E liberada .

A energia liberada é dada pela diferença entre a energia de repouso dos reagentes e do produto,

(25) E liberada = ( m H 2 + m H 3 - m He 4 - m n ) c 2 .

Mas, pela equação (13), a massa do nuclídeo é a diferença da massa dos seus constituintes e de sua energia de ligação,

(26) m H 2 c 2 = ( m p + m n ) c 2 - E ( 2 H ) , m H 3 c 2 = ( m p + 2 m n ) c 2 - E ( 3 H ) , m He 4 c 2 = ( 2 m p + 2 m n ) c 2 - E ( 4 He ) ,

de modo que

(27) E liberada = E ( 4 He ) - E ( 2 H ) - E ( 3 H ) .

Os valores das energias de ligação podem ser lidos da Figura 11, lembrando que a figura dá a energia de ligação por núcleon. Dessa figura podemos ver que

(28) E ( 4 He ) 4 7.1 MeV , E ( 3 H ) 3 2.8 MeV , E ( 2 H ) 2 1.1 MeV ,

resultando em Eliberada 17.8MeV para cada reação, um valor muito próximo a 17.59MeV calculado com valores tabelados para as energias de ligação.

Da mesma forma é possível estimar, da Figura 11, a quantidade de energia liberada em uma fissão de U235. Para esse nuclídeo tem-se, da figura,

(29) E ( 235 U ) 235 7.6 MeV .

Essa fissão não ocorre sempre da mesma maneira, ou seja, o par de nuclídeos resultantes de uma fissão varia a cada vez que for realizada (vide Figura 15)49 49 Como o processo é quântico, existe uma probabilidade de a fissão ocorrer de uma determinada maneira. Não é possível determinar, de antemão, qual será o resultado da fissão. Mesmo que repliquemos o experimento exatamente sob as mesmas condições, o resultado da fissão em cada caso vai variar. . Mas podemos estimar a energia liberada em média, supondo que o resultado serão dois nuclídeos idênticos, com número de massa 118. Da figura vê-se que a energia de ligação média para tal nuclídeo é 8.5MeV, então Eliberada 235×(8.5-7.6)MeV211MeV.

Seção 2.9 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8).

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [10[10] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Base Nacional Comum Curricular, disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br, acesso em 21/06/2023.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br...
], uma habilidade que se almeja desenvolver com os estudantes no âmbito das ciências exatas é a análise e interpretação de dados em gráficos. Para esse propósito, uma atividade com base na Figura 20 mostra-se apropriada. A figura é simples, mas possui uma riqueza de informações que o(a) docente pode explorar em inúmeras atividades, que também servem para consolidar o conceito e os tipos de decaimentos nucleares.

Algumas das questões que podem ser discutidas com base nesse gráfico são:

  1. Por que o “vale de estabilidade”, mostrado nos pontos pretos, desvia da curva Z=N? E por que esse desvio é tanto maior, quanto maior for o número de massa dos nuclídeos (i.e. quanto mais à direita do gráfico o nuclídeo estiver)?

    A resposta, como já discutido no corpo principal do texto (ver seção 2.9 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8). ), é que nuclídeos mais pesados precisam de um ligeiro excesso de nêutrons sobre prótons, para que a atração nuclear compense a repulsão coulombiana.

  2. Por que a maioria dos pontos acima do vale de estabilidade são azuis (decaem por β-) e os pontos abaixo são, em sua maioria, laranjas (decaem por β+)?

    Pontos acima da curva de estabilidade possuem um excesso de nêutrons sobre prótons. O decaimento β- alivia esse excesso ao converter um nêutron em um próton. O oposto ocorre abaixo da curva, em que β+ converte um próton em um nêutron.

  3. Por que os pontos amarelos se tornam predominantes para nuclídeos muito pesados?

    Nesses casos a estabilidade do nuclídeo é prejudicada tanto pela repulsão coulombiana, quanto pelo tamanho do nuclídeo, que faz com que os núcleons estejam mutuamente afastados (em média), o que reduz a energia de ligação média por núcleon. O decaimento α resolve esses dois problemas simultaneamente, pois reduz o número de prótons e o número de massa (e portanto o raio do nuclídeo).

  4. A maior parte dos decaimentos α ocorre para nuclídeos mais pesados que o Pb126 (o último nuclídeo estável), ou para nuclídeos muito à direita do vale de estabilidade (ou seja, com muito mais prótons do que seria a quantidade ótima para a estabilidade). Contudo, existem alguns pontos amarelos na Figura 20 que estão bastante próximos do vale de estabilidade, ou até mesmo bem no meio desse vale. Por exemplo, o neodímio-144, Nd 60144, aparece na figura como um ponto amarelo bem em meio a pontos pretos que denotam outros isótopos estáveis do mesmo elemento. Por que isso ocorre?

    Se o Nd144 decair por emissão de α, transformar-se-á no cério-140, que possui 58 prótons e 82 nêutrons. O número “82” é um dos chamados números mágicos na física nuclear (por isso aparecem na Figura 20 como linhas verticais e horizontais), porque um nuclídeo que possui 82 prótons (como o chumbo) ou 82 nêutrons (como o cério-140 já citado) é excepcionalmente estável. Isso porque uma das camadas nucleares fica totalmente preenchida com esse número de núcleons (analogamente ao que ocorre com os gases nobres, que são quimicamente estáveis porque possuem uma camada eletrônica totalmente preenchida). Assim, é mais vantajoso ao Nd144 decair por α para chegar a esse estado mais estável. Note que o mesmo não acontece para o Nd145 ou Nd143. Nesses casos o decaimento αnão levaria a uma configuração com número mágico de nêutrons, e por isso esses decaimentos não são favorecidos, e esses nuclídeos são estáveis, como se vê na figura.

    Vários outros pontos amarelos na vizinhança da curva de estabilidade levam a uma sequência de decaimentos que resulta, ao final, em um nuclídeo com número mágico de nêutrons. Para ver isso, basta notar que, se um ponto amarelo da figura decair por α, o nuclídeo-filha estará dois pontos à esquerda e dois pontos abaixo da posição inicial. Seguindo-se a linha de decaimentos, vê-se que, para vários deles, a sequência termina na curva de estabilidade após um único decaimento (o que faz com que o decaimento α seja mais vantajoso que outra forma de decaimento), ou segue uma sequência de decaimentos que termina em um nuclídeo com 82 nêutrons. Vide, por exemplo, o caso

    Dy 66 154 α 64 150 Gd α 62 146 Sm α 60 142 Nd .

    O resultado final é estável, com 82 nêutrons.

Referências

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  • [89]
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  • 1
    Para uma abordagem desse experimento em sala de aula no ensino médio, ver [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).].
  • 2
    O raio atômico pode ser estimado a partir do número de Avogadro, da densidade e da massa molar de uma determinada substância. Por exemplo, a densidade do carbono é 2.26g/cm3, e a massa molar é 12g, portanto 1 mol de carbono ocupa um volume de 5.31cm3. Como 1 mol possui 6.02×1023 átomos, cada átomo ocupa um volume de 10-23cm3, o que corresponde a uma esfera de raio 10-10m.
  • 3
    À época, a maioria desses elementos radioativos não havia sido nomeada. Eles eram referenciados segundo a posição que ocupavam em certa cadeia de decaimento radioativo. Assim, os elementos oriundos de sucessivos decaimentos a partir do Rádio-226 eram chamados Rádio A, B, C, etc. Nos trabalhos originais de Rutherford, Geiger e Marsden, o elemento emissor das partículas α usadas no experimento é denominado Rádio C, que, hoje, sabemos tratar-se do 214Po, emissor de partículas α com energias de 7.7 MeV.
  • 4
    Essa conclusão pode ser facilmente atingida usando conservação de momento linear, ou apelando-se para a intuição usando como analogia a colisão entre uma bola de basquete e uma bolinha de gude, situação em que é fácil ver que apenas a bolinha de gude é desviada significativamente.
  • 5
    O cálculo dessa probabilidade no caso em questão é demasiadamente complexo para ser apresentado no ensino médio, mas a noção de quão improvável é essa situação pode ser explicada da seguinte maneira. Suponha que, em cada colisão, a deflexão só pode ser a máxima, 0.02o, em uma direção ou na oposta (“para cima” ou “para baixo”, caso a partícula α passe acima ou abaixo do átomo, vide Figura 4). Para totalizar uma deflexão de 90o é necessário que haja 90o/0.02o=4500 deflexões a mais em uma direção do que em outra. Ou seja, é como se lançássemos 10000 moedas e requerêssemos ao menos 7250 “coroas”. A probabilidade disso ocorrer é
    10000 ! 7250 ! 2750 ! ( 1 2 ) 10000 10 - 450 .
    Uma aproximação ainda melhor seria supôr que a partícula pode ser desviada em quatro direções possíveis: “para cima”, “para baixo”, “para a esquerda” e “para a direita”. Nesse caso o fator 1/2 acima deve ser substituído por 1/4, resultando em uma probabilidade 10-3450.
  • 6
    A tese de Prout foi abandonada poucos anos depois de proposta, ao se constatar a existência de vários elementos cujas massas molares não são múltiplos inteiros da massa molar do H, como o cloro (massa molar 35.45 g). Hoje se sabe que essa divergência é devida à existência de isótopos, i.e. variantes de um mesmo elemento com massas diferentes. A massa de cada isótopo obedece, em boa aproximação, a relação notada por Prout, mas a massa molar do elemento é a média das massas dos diferentes isótopos, ponderada por suas abundâncias, podendo portanto resultar em valores fracionários de massa. No entanto, a existência de isótopos de um mesmo elemento era desconhecida no século XIX, e a hipótese de Prout acabou não vingando, até ser revivida por Rutherford.
  • 7
    Experimentos apontam que o 14N tem momento angular inteiro (em unidades de ), ao passo que o momento angular intrínseco de prótons e elétrons é semi-inteiro, igual a /2. O soma de um número ímpar de momentos angulares semi-inteiros é, também, semi-inteiro. Portanto, o 14N deve ser constituído de um número par de prótons e elétrons.
  • 8
    Como os elétrons estão em órbita em torno do núcleo, em média essa força se anula.
  • 9
    Exemplos abundam. Em 1917, ao notar que sua teoria da gravitação previa um Universo em constante contração, portanto dinâmico, Einstein alterou suas equações ad hoc, introduzindo um termo chamado constante cosmológica que levasse à predição de um Universo estático. Alguns anos depois, Hubble mostrou que o Universo está em expansão – e o próprio Einstein afirmou, então, que introduzir esse termo em suas equações foi o maior erro de sua vida profissional. Hoje se sabe, contudo, que essa constante cosmológica, embora proposta a partir de uma suposição incorreta, é considerada essencial para explicar o fato (descoberto posteriormente) de a expansão ser acelerada. Outro exemplo é a relutância de Einstein em aceitar a interpretação de Copenhagen da mecânica quântica, levando-o a postular a existência de “variáveis ocultas”, hipótese que deu origem ao importante teorema de Bell e a vários experimentos que visavam testá-lo. Ainda digno de menção é o impasse relativo à energia dos elétrons emitidos em decaimentos β: a conservação de energia-momento previa que os elétrons fossem emitidos com determinada energia cinética, mas a observação não condizia com a previsão. Niels Bohr chegou a supor que a própria conservação de energia fosse violada em nível quântico – uma hipótese hoje tida como ousada, até absurda –, enquanto Wolfgang Pauli propôs a existência de uma nova partícula que não era detectada no decaimento, e que carregava parte da energia. A hipótese de Pauli foi posteriormente verificada experimentalmente, salvaguardando o princípio da conservação da energia. E nos problemas descritos acima, quanto à existência de elétrons no interior do núcleo de 14N, tampouco faltavam propostas exóticas antes da descoberta dos nêutrons, como a suposição de que elétrons no interior do núcleo não contribuem ao momento angular e momento magnético total do núcleo, por motivos incógnitos.
  • 10
    No terceiro artigo desta sequência discutiremos como esse curto alcance da interação nuclear se deve ao fato de a partícula mediadora da interação (o análogo do fóton na interação eletromagnética) ser massiva.
  • A palavra “núcleo” sempre requer um predicado – núcleo do quê? –, de modo que seu uso já pressupõe a existência de um outro objeto maior, como o átomo, do qual esse “núcleo” constitui apenas a parte central. No entanto, em Física Nuclear, lidamos com esses entes – prótons e nêutrons ligados por uma força nuclear – à parte de qualquer contexto atômico, em uma situação em que sequer estão circundados por uma eletrosfera. Nesse caso, é comum referir-se a esses objetos como nuclídeos.
  • 12
    Interessante notar que ambos 3H e 3He possuem três núcleons, mas a energia de ligação do 3He é ligeiramente inferior, por causa da repulsão eletrostática entre os dois prótons ali presentes. Ou seja, requer-se menos energia para desintegrar o 3He, porque já existe uma força repulsiva contribuindo para isso no interior desse nuclídeo. No entanto, a diferença é de apenas 0.25MeV, ou 10% do valor total da energia de ligação desses nuclídeos, indicando que a interação nuclear é muito mais forte do que a eletromagnética – i.e. a maior parte da energia de ligação advém da força nuclear entre prótons e nêutrons, e apenas uma fração bem inferior vem da repulsão eletrostática entre prótons.
  • 13
    Não é necessário elaborar, em sala, sobre o motivo dessa estabilidade, mas pensamos ser conveniente discuti-la brevemente aqui, caso surjam perguntas por parte dos(as) estudantes a esse respeito. Há duas maneiras quase equivalentes de se entender essa propriedade do 4He. Assim como os elétrons na eletrosfera, os núcleons também se arranjam em “camadas”, que, quando totalmente preenchidas, produzem nuclídeos altamente estáveis – similar ao mecanismo subjacente à estabilidade química dos gases nobres. A primeira camada nuclear comporta 2 partículas, mas prótons e nêutrons ocupam camadas distintas. Portanto o 4He é o primeiro nuclídeo para o qual há o preenchimento completo de uma camada tanto por parte dos prótons quanto dos nêutrons. Alternativamente, pode-se alegar que a interação nuclear é mais intensa quando: (i) tanto prótons quanto nêutrons estão emparelhados; (ii) há simetria entre número de prótons e nêutrons; (iii) o nuclídeo contém poucos núcleons, que portanto estão a uma curta distância e interagem fortemente entre si.
  • 14
    O 8Be, composto de 24He, é instável, decaindo via Be82α. O motivo é que, precisamente porque o 4He é tão estável, é mais energeticamente favorável manter dois 4He isolados do que ligados, enfrentando a repulsão eletrostática entre ambos. A instabilidade do 8Be desfavorece o decaimento C128Be+α, e o decaimento em 3α simultaneamente é altamente improvável, o que faz com que o 12C seja altamente estável.
  • 15
    O 16O também corresponde ao nuclídeo em que os prótons e os nêutrons preenchem a segunda camada nuclear, e também por isso é bastante estável.
  • 16
    Um nuclídeo estável tende a ter aproximadamente o mesmo número de nêutrons que de prótons, mais especificamente N1.0-1.6Z.
  • 17
    Em uma reação de fissão, como a ilustrada na Figura 13, o número de prótons e nêutrons se conserva, e a diferença entre a massa dos reagentes e dos produtos é inteiramente devida à diferença das energias de ligação,
    ( m reagentes - m produtos ) c 2 = E ( 92 Kr ) + E ( 141 Ba ) - E ( 235 U ) > 0 .
    Como a energia total se conserva, deve-se ter
    m reagentes c 2 = m produto c 2 + E liberada .
  • 18
    Há uma categoria de reatores, chamados Fast Neutron Reactors (FNRs) ou reatores de nêutrons rápidos, em que a fissão é promovida por nêutrons rápidos, e não há, portanto, material moderador. O combustível mais comum desse tipo de reator é plutônio-239, que passa por fissão mais facilmente quando colide com nêutrons altamente energéticos. Ademais, parte do 238U pode ser também fissionável por esses nêutrons, enquanto outra parte é capaz de absorvê-los e se converter em 239Pu via subsequentes decaimentos β,
    n + 238 U 239 U β 239 Np β 239 Pu .
    Assim, FNRs são reatores altamente eficientes porque parte do combustível (plutônio) é gerado colateralmente durante a reação em cadeia a partir do isótopo mais comum de urânio (sem necessidade, portanto, de enriquecimento). Mais ainda, nêutrons rápidos podem induzir fissão de actinídeos, que são subprodutos da fissão de elementos pesados e considerados parte do chamado “lixo nuclear” (a ser discutido logo abaixo, na seção 2.8.3 2.8.3. Matrizes energéticas e impactos ambientais Em diálogo com a Geografia, pode-se levantar a discussão sobre as vantagens e os problemas associados à energia nuclear, especialmente quando comparados aos impactos gerados por outras fontes de energia. Primeiramente, é relevante e interessante comparar a taxa de geração de energia por cada grama de combustível consumido em usinas nucleares e na queima de combustíveis fósseis. Já estimamos anteriormente, na subseção 2.7.3, que a fissão de 1 g de 235U produz cerca de 8×1010J. No entanto, uma estimativa realista da eficiência de uma usina nuclear deve levar em conta fatores como o grau de enriquecimento do urânio, especificidades do funcionamento do reator, bem como a perda de energia por calor, resultando finalmente em valores entre 5-500×108J/g de energia elétrica por grama de combustível consumido [29, 36]. Por sua vez, o poder calorífico dos combustíveis fósseis (carvão, gás, óleo, etc.) é da ordem de 4×104J/g [29, 36]. Ou seja, uma usina nuclear é de 10 mil a 1 milhão de vezes mais eficiente na conversão de combustível em energia – corroborando a expectativa já apontada ao fim da subseção 2.5.1. Isso significa que se requer menos usinas nucleares para produzir a mesma quantidade de energia atualmente advinda de combustíveis fósseis, além de haver uma redução de gastos (e de consequentes impactos ambientais) relativos ao transporte do combustível desde a mina até a usina. A reação de fissão resulta em liberação de energia na forma de radiação e calor. Nas especificações técnicas de um reator, a potência produzida nessa forma é medida em MWt, ou megawatts-térmicos. Para converter essa energia em eletricidade, usa-se um material refrigerador– geralmente, mas não exclusivamente, água. A água circula em torno do reator, absorve o calor e se vaporiza. O vapor então gira uma turbina que, por indução eletromagnética, produz uma corrente. Ou seja, o processo de produção de eletricidade, em uma usina nuclear, é o mesmo que em hidrelétricas, termelétricas ou usinas eólicas: a rotação de uma turbina. O que varia é a fonte primária da energia. A potência elétrica produzida pela usina é medida em MWe, ou megawatts-elétricos. O refrigerador também desempenha o importante papel de manter o núcleo do reator a temperaturas moderadas, de modo que os materiais envolvidos não derretam, o que interromperia o funcionamento adequado da usina e provocaria sérios acidentes. Outros componentes de um reator já foram mencionados anteriormente. O material moderador– normalmente água ou grafite – tem a função de absorver parte da energia cinética dos nêutrons resultantes das fissões, tornando-os nêutrons lentos, o que aumenta a probabilidade de promoverem a fissão do 235U. E as barras de controle são constituídas de elementos com alta probabilidade de absorção dos nêutrons, controlando a taxa de fissões ocorrendo no reator e evitando assim um aumento exponencial e descontrolado da energia liberada (i.e. uma reação supercrítica como na Figura 15), o que causaria possíveis derretimentos do núcleo do reator ou explosões que destruiriam a usina e potencialmente lançaria material radioativo ao ambiente29. Mais detalhes sobre os elementos constituintes e o funcionamento de reatores nucleares podem ser encontrados na ref. [37]. A energia nuclear é vista pela opinião pública como perigosa e danosa ao meio ambiente e ao ser humano. Entretanto, várias pesquisas indicam que essa percepção não coaduna com os fatos. Em primeiro lugar, nota-se que a produção de energia nuclear incorre em níveis baixíssimos de emissão de gases de efeito estufa, 100 vezes menos do que a queima de carvão e gás, e em quantidade comparável às emissões por fontes eólica, hidráulica e solar [38]. Essa drástica discrepância é ainda mais significativa ao notarmos que cerca de 60% das emissões atuais de CO2 advêm do setor energético [39]. Portanto, aumentar a fatia nuclear na matriz energética mundial contribuiria significativamente para a superação do desequilíbrio climático ocasionado pela emissão massiva de gases de efeito estufa, sem comprometer a produção energética em níveis capazes de satisfazer à crescente demanda. De fato, vários estudos comprovam essa correlação entre o aumento do uso de fontes nucleares de energia e a consequente redução dos níveis de poluição [40, 41]. Existem, também, estudos comparando o número de mortes provocadas pela produção de energia por diversas fontes, levando em conta tanto os acidentes durante o processo de produção de energia (incluindo mineração e o trabalho nas usinas) quanto a poluição emitida. Os resultados mostram que, para cada terawatt-hora de energia produzida, a queima de combustíveis fósseis causa cerca de 78 perdas de vidas humanas, enquanto a energia nuclear está associada a 0.07 mortes [42]. Quanto à preocupação de contaminação ambiental, é importante mencionar que usinas nucleares não são a única fonte energética que produz resíduos radioativos. As rochas extraídas na mineração do carvão contêm, também, pequenas concentrações de elementos radioativos. Durante a queima desse minério em usinas termelétricas, esses resíduos radioativos são lançados ao ar junto com as cinzas, e contaminam o solo onde se depositam, sendo posteriormente absorvidos por plantas e ingeridos na cadeia alimentar. A dosagem radioativa recebida por habitantes nos arredores de uma usina termelétrica é usualmente maior do que nas proximidades de uma usina nuclear – embora em ambos os casos os números costumam estar abaixo dos limites de segurança impostos pelas agências reguladoras [43]. Em geral, no quesito segurança, um ponto favorável à energia nuclear é justamente o fato de haver forte conscientização quanto aos riscos envolvidos, o que faz com que não faltem estudos e investimentos voltados a garantir a maior segurança em todos os processos de produção, desde a extração do mineral até a reciclagem ou descarte dos resíduos pós-produção. O maior problema associado às tecnologias atuais para produção de energia nuclear é a coprodução de resíduos altamente tóxicos no processo de fissão – o chamado “lixo nuclear”. Um componente desse lixo são os nuclídeos resultantes da fissão do combustível, como alguns exemplificados na Figura 15, que são altamente radioativos (e assim permanecem por muitos séculos ou até milênios), apresentando alto risco de contaminação a seres vivos e ao meio ambiente, caso não sejam descartados adequadamente. Ademais, os muitos nêutrons resultantes da reação em cadeia, ao incidirem nos materiais que circundam o reator, podem também torná-los fonte de radioatividade, que precisam ser tratados com igual cautela. Não é exagero dizer que, até o momento, não existe uma solução totalmente satisfatória para lidar com esse material tóxico. Uma parte poderia ser reprocessada e reutilizada na usina, ou transmutada, por meio de bombardeamentos radioativos, em outros elementos de menor toxicidade [44]. Quanto ao restante, uma prática comum é simplesmente enterrá-lo em depósitos nas profundezas do subsolo, fora da biosfera, em uma região com baixo risco de contaminação de aquíferos, e lá deixá-los até que decaiam completamente, mantendo constante monitoramento da situação. Entretanto, em caso de aumento da contribuição da energia nuclear à matriz energética mundial, haveria aumento drástico na produção de lixo radioativo, o que requereria depósitos cada vez maiores. Para uma discussão mais detalhada, vide ref. [45]. Há, ainda, outro fator importante na discussão sobre impactos ambientais da produção de energia: o quanto de água precisa ser desviada ou consumida no processo. No caso de usinas nucleares, assim como nas usinas de queima de carvão e biomassa, grandes quantidades de água precisam circular pela usina para resfriar o reator e evitar superaquecimento. Parte desses recursos hídricos é perdida por evaporação, e outra parte retorna à fonte inicial (lagos ou mares) a temperaturas mais elevadas, o que também impacta negativamente o ecossistema local. Um estudo realizado nos Estados Unidos30 mostra que, nesse quesito: (i) as hidrelétricas têm tipicamente o maior impacto, pela própria natureza de seu funcionamento: uma imensa quantidade de recursos hídricos é desviada para constituir o reservatório, e há grande perda devido à evaporação; (ii) os impactos das usinas nucleares são comparáveis às de combustíveis fósseis e biomassa, mas elas desviam/consomem muito mais recursos hídricos do que fontes renováveis de energia como as usinas eólicas e solares (fotovoltaicas) [46]. Outra ressalva comum do público à produção de energia nuclear advém do receio de acidentes catastróficos, com imensa contaminação do solo e da água, e consequente exposição da população a altíssimas doses de radiação, como o caso dos acidentes de Chernobyl e Fukushima. O problema advém da possibilidade de um reator tornar-se supercrítico – e liberar uma quantidade descontrolada de energia – caso haja falha em algum mecanismo de controle e de segurança. Mais especificamente, a eficácia de um reator depende de um balanço tênue entre a taxa de absorção e de moderação dos nêutrons, para que a quantidade de nêutrons termais no reator não seja nem demasiadamente baixa – o que interromperia a reação e a geração contínua de energia – nem muito elevada – o que causaria uma reação supercrítica como na Figura 15. Em Chernobyl, uma falha no desenho do reator, aliado a uma série de incidentes operacionais, fez com que o reator se tornasse supercrítico, produzindo mais vapor do que a construção suportava, causando uma explosão do núcleo e expondo toneladas de material radioativo à atmosfera [47]. O acidente de Fukushima deveu-se a um tsunami que destruiu os sistemas de refrigeração dos reatores, causando superaquecimento e consequente derretimento do combustível radioativo, contaminando a água e o solo da região [48]. É curioso notar que a usina comportou-se de maneira extremamente robusta frente ao terremoto que precedeu o tsunami, tendo os reatores sido desativados por sistemas de segurança diante da detecção dos tremores. Entretanto, um reator nuclear continua liberando calor por algum tempo após seu desligamento, e infelizmente os engenheiros negligenciaram o risco de tsunamis subsequentes aos tremores de terra, que acabaram causando a catástrofe. Ainda assim, a resiliência da usina diante do terremoto mostra como é possível reduzir as possibilidades de acidentes drásticos quando os riscos são devidamente acessados. A respeito de acidentes em usinas nucleares, é importante ressaltar que a explosão resultante da reação supercrítica em reatores não possui poder de destruição comparável ao de um armamento nuclear, porque a concentração de material fissionável é muito inferior nos reatores do que nos armamentos (i.e. o nível de enriquecimento do combustível é baixo, como dito na seção 2.6). O maior problema, em acidentes nucleares, não é a explosão em si, mas o vazamento de material radioativo que a explosão provoca. Os problemas citados acima, associados à produção de energia por fissão nuclear, não ocorrem na extração de energia por fusão. Por um lado, os nuclídeos envolvidos na fusão são leves e os subprodutos são muito menos radioativos do que os resultantes da fissão (ou seja, decaem muito mais rapidamente, então o tempo de armazenamento e cautela é menor). Ademais, o risco de acidentes similares aos supracitados inexiste: ao contrário da fissão, em que o desafio é controlar a reação em cadeia para que ela não se torne supercrítica, na fusão o desafio é manter a reação ocorrendo. A manutenção de uma reação de fusão autossustentável requer um ajuste tão fino de condições de temperatura e densidade do plasma que, havendo qualquer eventualidade que ocasione a perda de controle sobre qualquer etapa da cadeia produtiva (como um terremoto nas proximidades da usina), o processo inteiro seria automaticamente interrompido. Em outras palavras, a fusão nuclear tem o potencial de constituir uma fonte de energia muito mais limpa do que a queima de carvão e a fissão nuclear. Infelizmente, justamente por ser tão difícil manter a fusão autossustentável, a extração de energia por essa fonte é extremamente desafiadora e ainda um problema sem solução. Entretanto, é essencial que haja contínuos investimentos em pesquisa nessa área, especialmente considerando a urgência de reduzir a queima de combustíveis fósseis e outros emissores de gases de efeito estufa, visando evitar a iminente catástrofe ambiental a que rumamos devido ao aquecimento global. Maiores informações sobre diversos aspectos envolvidos na produção de energia nuclear podem ser obtidas em [49]. Excelentes materiais didáticos a respeito da produção de energia nuclear e da medicina nuclear, voltadas a estudantes de nível médio, produzidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), podem ser encontradas em [50, 51]. Como proposta de atividade, o(a) docente pode sugerir aos estudantes que pesquisem sobre o consumo de energia mensal ou anual de sua cidade/estado, e calculem a quantidade de 235U que deveria ser fissionado para satisfazer essa demanda. Os dados de consumo energético devem estar disponíveis nos sites oficiais do governo do estado (ou da Secretaria de estado responsável pela gerência de infraestrutura e meio ambiente), ou no site da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [52] e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [53]. Por se tratar de um tema polêmico em nossa sociedade, sem respostas fixas e triviais, essa temática oferece uma excelente oportunidade para motivar uma dinâmica de debates entre todos em sala. Aqui, o(a) docente pode e deve usar sua criatividade para fomentar atividades polivalentes, que visem aprimorar várias competências do(a) estudante para além do raciocínio físico. Por exemplo, dividindo-se a turma em grupos, o(a) docente pode sugerir que cada um desses apresente suas perspectivas sobre os prós e contras da energia nuclear – ou, mais abrangentemente, sobre os problemas relacionados à matriz energética nacional e mundial – na forma de um debate jornalístico, uma mesa-redonda, ou como uma peça teatral, um sarau de poesias e músicas, ou um “duelo” de repentistas ou de rappers, ou qualquer outra manifestação artístico-cultural com que os(as) estudantes se identifiquem, fomentando não somente a alfabetização científica do(a) estudante, mas também o desabrochar de suas aptidões artísticas através da criação e exposição a diversas manifestações artístico-culturais. ). Ou seja, em FNRs o “lixo nuclear” pode ser reciclado e utilizado como combustível. Infelizmente, FNRs ainda são uma tecnologia cara e pouco incentivada, visto que, dados os custos atuais de mineração e enriquecimento de urânio, é mais barato operar com usinas “tradicionais”, baseadas em nêutrons termais, i.e. lentos, pouco energéticos. Para mais informações vide refs. [28[28] World Nuclear Association, Fast Neutrons Reactors, disponível em: https://www.world-nuclear.org/information-library/current-and-future-generation/fast-neutron-reactors.aspx, acesso em 21/06/2023.
    https://www.world-nuclear.org/informatio...
    , 29[29] I.H. Lacy, Nuclear energy in the 21st century (Ed. Academic Press, Londres, 2007).]
  • 19
    Além de estarem presentes também outras partículas elementares, como elétrons, fótons, neutrinos, entre outras.
  • 20
    Já vimos anteriormente que a energia de ligação nuclear é muito maior que a atômica. Por isso, requer-se temperaturas muito maiores para dissociar um nuclídeo do que um átomo. Ou seja, na história de resfriamento do Universo, os nuclídeos formam-se primeiro, já nos primeiros minutos dessa história, e só após 380 mil anos a temperatura atinge níveis suficientemente baixos para que os elétrons capturados por esses nuclídeos não sejam mais dissociados, formando assim átomos neutros.
  • 21
    A Figura 11 mostra que a energia de ligação do 2H por núcleon é aproximadamente 1.1 MeV. Como o dêuteron possui dois núcleons, a energia de ligação total é duas vezes esse valor.
  • 22
    Dito de outra forma: todos os nêutrons que se encontravam livres nessa época do Universo primordial terminam ligados em núcleos de hélio.
  • 23
    A energia cinética média das partículas em um plasma ou gás está intimamente relacionada à temperatura de tal fluido via EkBT, onde kB8.617×10-5eVK-1 é a constante de Boltzmann, uma constante universal da Natureza. Ou seja, pode-se refrasear a condição acima afirmando-se que a fusão é um processo que usualmente requer altas temperaturas.
  • 24
    Um resultado dessa ordem de magnitude é esperado, porque: (i) da Figura 11 sabemos que essa é a ordem de grandeza da energia de ligação nuclear, e (ii) sabemos que a repulsão coulombiana entre núcleons é capaz de competir com a atração dos núcleons pela força nuclear, devido à inflexão na curva de energia de ligação para nuclídeos pesados (e também por causa da diferença observável entre as energias de ligações de pares de nuclídeos espelhados, i.e. que possuem mesmo número de massa mas diferentes números de prótons, como o 3H e o 3He).
  • 25
    Note, entretanto, que devido à possibilidade de tunelamento quântico, os nuclídeos podem fusionar mesmo tendo energia ligeiramente menor do que a altura da barreira.
  • 26
    Note que a formação de deutério no interior de estrelas não advém da captura de nêutrons livres, como descrito acima para a nucleossíntese primordial – pois nêutrons são escassos no meio estelar –, mas da fusão de dois prótons seguida de um decaimento do tipo β, i.e.
    p + p 2 H + e + + ν e .
    O processo de decaimento de um próton em um nêutron (um decaimento β) é ditado pela interação fraca, e não pela força nuclear. Por isso, não entraremos em maiores detalhes neste artigo (ver seção 2.9 2.9. Decaimentos nucleares Exceto pelo H1, que consiste apenas em um próton, todos os nuclídeos observados na Natureza são constituídos tanto por prótons quanto por nêutrons. A presença dos nêutrons contribui para a estabilidade do nuclídeo, aumentando a atração nuclear sem acrescentar nenhuma repulsão eletrostática. Mas, já que os nêutrons não se repelem eletrostaticamente, por que não observamos nuclídeos formados apenas por nêutrons? O motivo, um pouco mais sutil, é o princípio da exclusão de Pauli, que impõe que dois nêutrons não podem possuir simultaneamente as mesmas configurações. Isso significa que nem todos nêutrons podem ocupar o estado de menor energia no núcleo, de modo que o excesso deve ocupar estados de energias cada vez maiores. O mesmo vale para prótons, o que serve como ainda outro motivo (além da repulsão coulombiana) para coibir a existência de um nuclídeo com prótons excessivos. Mas, se metade dos constituintes do núcleo forem prótons, e a outra metade forem nêutrons, a distribuição de energia ficaria mais igualitária entre eles, e a energia total da configuração seria comparativamente menor (o que corresponde a uma maior energia de ligação, e portanto a um nuclídeo mais estável). Esse efeito31 está ilustrado na Figura 19. Figura 19: Distribuição esquemática de prótons e nêutrons em níveis de energia. A configuração de menor energia total (ou seja, de maior energia de ligação) é aquela em que o número de prótons e nêutrons é igual. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Se apenas esse efeito, devido ao princípio da exclusão, fosse relevante no equilíbrio energético nuclear, os nuclídeos estáveis teriam igual número de prótons e nêutrons. Mas já sabemos que existem outros fatores relevantes nessa dinâmica, como a repulsão coulombiana, que tende a favorecer a presença de nêutrons ao invés de prótons. O resultado líquido desses efeitos competitivos é que nuclídeos estáveis tendem a ter um ligeiro excesso de nêutrons sobre o número de prótons. Isso pode ser visto na Figura 20, que mostra os nuclídeos existentes na Natureza em termos de seu número de prótons e nêutrons. A curva preta corresponde aos nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos estáveis e leves, com A≲16, têm mesmo número de prótons e nêutrons, mas os mais pesados têm uma ligeira preferência por um excesso de nêutrons, pois eles contrabalanceiam a repulsão eletrostática. Figura 20: Distribuição de nuclídeos por número de nêutrons (N) e número de prótons (Z), coloridos de acordo com o principal tipo de decaimento observado para cada um deles. Os pontos pretos representam nuclídeos estáveis, que não decaem. Nuclídeos acima desses pontos têm um excesso de nêutrons e decaem por decaimento β- (convertendo um nêutron em um próton, pontos azuis), ou pela emissão de um nêutron (pontos lilás). Abaixo dos pontos de estabilidade ocorre o oposto: os nuclídeos têm um excesso de prótons e tendem a decair por β+ (convertendo um próton em nêutron, pontos laranjas) ou, em casos extremos, por emissão de um próton (pontos vermelhos). Para nuclídeos mais pesados (sobretudo os que contêm mais que ≃150 núcleons) o excesso de prótons pode ser aliviado também com decaimento α, que frequentemente é seguido de um decaimento β+. Note que não há nuclídeos estáveis com mais que 82 prótons e 126 nêutrons, que corresponde ao elemento chumbo (Pb208). A maior parte dos elementos nessa região decai por emissão de partículas α, e alguns até sofrem fissão espontânea – ambos processos reduzem o número de prótons e nêutrons, aliviando a repulsão coulombiana e diminuindo o raio do nuclídeo, aumentando a intensidade média da força nuclear atrativa entre núcleons, pois passam a estar mutuamente mais próximos. As linhas verticais e horizontais correspondem aos chamados “números mágicos”. Nuclídeos que possuem número de prótons e/ou nêutrons igual(is) a 6, 14, 28, 50, 82 ou 126 são excepcionalmente estáveis, por possuírem camadas nucleares completas (da mesma forma que os gases nobres são quimicamente estáveis por possuírem orbitais eletrônicos completamente preenchidos). Vários comportamentos ilustrados na figura são explicados por esses números mágicos. Vide, por ex., discussão no apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Fonte: Wikimedia Commons, sob licença CC-BY-SA 3.0 [54]. Um gráfico interativo e atualizado pode ser encontrado em [55]. Os pontos coloridos da Figura 20, fora da curva preta, são nuclídeos que possuem mais prótons ou mais nêutrons do que demandado pela condição de estabilidade. Nesse caso ocorrerá um processo de transmutação, em que esse excesso será aliviado de alguma forma, com tendência a transformar aquele nuclídeo em uma configuração estável. A esse processo de transmutação dá-se o nome de decaimento radioativo. Existem diversos tipos de decaimento, dentre os quais os principais são chamados de decaimentos α (alfa), β (beta) e γ (gama). Esses nomes foram dados no início das pesquisas radioativas, quando não se sabia nada sobre esses decaimentos a não ser que eram qualitativamente diferentes – por isso escolheram as três primeiras letras do alfabeto grego para nominá-los. Hoje sabemos que cada tipo de decaimento corresponde a um tipo diferente de partícula que é emitida. 2.9.1. Decaimento α O decaimento α ocorre para nuclídeos muito pesados, sobretudo para aqueles que têm mais de ≈150 núcleons, e consiste na emissão de um núcleo de hélio-4, como ilustrado na Figura 21. Nesse contexto, o nuclídeo de He4 é também chamado de partícula α. Figura 21: Decaimento do tipo α, em que um nuclídeo de 4He (2 prótons e 2 nêutrons) é emitido pelo nuclídeo mãe devido à repulsão coulombiana. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Trata-se de uma maneira eficiente de fazer um nuclídeo pesado reduzir a repulsão coulombiana – por emitir dois prótons – e também reduzir o seu tamanho, fazendo com que todos núcleons fiquem, em média, mais próximos uns dos outros, aumentando a energia de ligação média (pois a força nuclear é mais intensa a menores distâncias). O decaimento α se explica, portanto, pela repulsão eletrostática entre partículas no interior do nuclídeo – uma explicação bastante acessível a estudantes de nível médio32. A maior estabilidade do nuclídeo-filha pode ser vista também da Figura 11. Os nuclídeos que decaem por α estão à direita do Fe56, onde a curva é descendente. Os resultados desses decaimentos, i.e. os nuclídeos-filha, estão sempre à esquerda dos nuclídeos-mãe nesta curva descendente e, portanto, têm maior energia de ligação por núcleon, o que significa maior estabilidade. Na Figura 20, os pontos amarelos representam nuclídeos que decaem majoritariamente por emissão de partículas α. Uma proposta de atividade, nesse contexto, é usar essa figura como exercício de interpretação gráfica, bem como para desenvolver raciocínio físico a respeito dos decaimentos – vide apêndice Apêndice A: Propostas de Atividades. Por fim, a partir do déficit de massa entre os produtos do decaimento (nuclídeo-filha + partícula α) e reagente (nuclídeo-mãe) é possível calcular a energia liberada na reação. Por exemplo, para o decaimento do polônio-214, que Rutherford usou como fonte de suas partículas α no experimento descrito na seção 2.1, tem-se (19) Po 214 → 210 Pb + α . Usando os valores tabelados para as massas envolvidas, encontra-se Eliberada ≈7.83MeV. Nem toda essa energia vai para a partícula α pois, por conservação de momento linear, o nuclídeo-filha também deve sofrer um recuo. É um simples exercício de mecânica33 mostrar que a fração de energia que vai para a partícula α é (20) E α = ( 1 1 + m α m filha ) ⁢ E liberada , que nesse caso dá Eα≈7.7MeV, valor utilizado na seção 2.1. 2.9.2. Decaimentos β Os tipos mais comuns de decaimentos são os chamados β- e β+. No primeiro caso, há a conversão de um nêutron em um próton, com emissão de um elétron (e também um antineutrino34), (21) n → p + e - + ν ¯ e ( decaimento ⁢ β - ) . Esses decaimentos ocorrem em nuclídeos que têm excesso de nêutrons, comparado ao valor ótimo para estabilidade (acima dos pontos pretos na Figura 20). Ao discutir esses decaimentos, o(a) professor(a) pode explorar o princípio da conservação da carga elétrica. Como o nêutron não possui carga, sua transmutação em um próton (que tem carga positiva) requer a simultânea emissão de uma partícula com carga negativa, que, no caso, é o elétron. O outro tipo de decaimento β é o oposto: um próton decai em um nêutron, com emissão de uma partícula com carga igual à do próton (ou seja, igual à do elétron em módulo, mas de sinal positivo) e também um neutrino. Ou seja, (22) p → n + e + + ν e (decaimento β + ) . Esse decaimento ocorre a fim de aliviar o excesso de prótons. Nota-se, novamente, a conservação da carga elétrica. A partícula e+ emitida nesse decaimento é idêntica ao elétron em todos aspectos, exceto pelo sinal de sua carga, que é positivo (o módulo da carga e a massa de ambas são iguais). Ou seja, trata-se de um “elétron com carga oposta”, também chamado de antielétron ou pósitron. Diz-se que o pósitron é a antipartícula associada ao elétron (e, reciprocamente, o elétron é a antipartícula do pósitron). Uma discussão sobre a interpretação dessas antipartículas e suas aplicações práticas pode ser encontrada na primeira parte desta série de artigos [1]. Também é pertinente comentar que o elétron (ou o pósitron) resultantes do decaimento não estavam no “interior” dos nêutrons/prótons que decaem. É comum se pensar que o decaimento é a emissão de uma partícula já pré-existente no reagente, e essa interpretação de fato se aplica ao decaimento α, mas não para o β. Ou seja, não é correto pensar que o nêutron é formado de um próton + um elétron, e que o decaimento β- apenas desintegra esse composto. Até porque isso traria problemas se tentássemos interpretar o decaimento β+ da mesma forma35. O próton não contém um pósitron, nem o nêutron contém previamente um elétron. O que ocorre é que esses elétrons e pósitrons são criados no processo do decaimento. Conforme já discutido na primeira parte desta série [1], partículas podem ser criadas ou destruídas, pois a famosa fórmula de Einstein, E=m⁢c2, garante que massa pode ser convertida em energia, e vice-versa. Esse processo de criação e destruição de partículas no decaimento β será assunto de discussões mais detalhadas em um artigo futuro desta série. 2.9.3. Decaimento γ O decaimento γ se distingue dos discutidos anteriormente na medida em que o nuclídeo-mãe não sofre transmutação, ou seja, não se alteram os números de prótons e de nêutrons. O que ocorre, nesse caso, é que um nuclídeo em um estado excitado decai para um estado de energia inferior, e a diferença de energia é liberada na forma de radiação eletromagnética. O processo é exatamente análogo à emissão de fótons por elétrons que transicionam entre diferentes camadas eletrônicas. A única diferença é que, agora, são prótons ou nêutrons transicionando entre camadas nucleares. A diferença de energia entre camadas eletrônicas no átomo é tipicamente da ordem de poucos elétron-volts, e portanto a energia do fóton emitido em transições atômicas é dessa ordem de magnitude. Mas já vimos, na subseção 2.5.1, que as energias associadas à interação nuclear são da ordem de MeV, ou seja, a radiação emitida em decaimentos nucleares é um milhão de vezes mais energética do que em transições eletrônicas no átomo. A essa radiação emitida por transições entre camadas nucleares dá-se o nome de raios gama ou radiação gama. O fato de essa radiação ser extremamente energética é o motivo de ela ser tão danosa a organismos vivos. Decaimentos γ geralmente ocorrem após o nuclídeo ter passado anteriormente por um decaimento α ou β. Por exemplo, a Figura 24 (esquerda) ilustra a distribuição de prótons e nêutrons nas respectivas camadas para o carbono-15. Esse nuclídeo é instável por possuir excesso de nêutrons, e decai por β-, convertendo o nêutron da quarta camada em um próton, e se transmutando em um nitrogênio-15. O nuclídeo-filha possui um próton na quarta camada (já que essa era a energia do nêutron original), mas a terceira camada está vazia, como mostra a Figura 24 (direita). E as camadas mais superiores são mais energéticas que as inferiores. Portanto, a fim de minimizar a energia da configuração, esse próton vai decair para a terceira camada, e a diferença de energia entre as camadas será liberada na forma de um fóton. Figura 22: Decaimento β-, em que um nêutron se converte em um próton, emitindo um elétron (e também um antineutrino, que não está mostrado na figura). Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 23: Decaimento γ, que corresponde à emissão de um fóton (ou seja, radiação eletromagnética, vide ref. [1]) por um nuclídeo excitado. À radiação emitida dá-se o nome de raios gama. Fonte: Chemistry LibreTexts [26], sob licença Creative Commons BY-NC-SA 3.0 [27]. Figura 24: Distribuições de prótons e nêutrons em suas respectivas camadas para (esquerda) carbono-15 e (direita) nitrogênio-15. As camadas inferiores são menos energéticas que as superiores. Quando o carbono-15 decai por β- em nitrogênio-15, um dos prótons passa a ocupar a quarta camada (pois essa era a energia do nêutron que decaiu), sendo que ainda há espaços disponíveis na terceira. Portanto, em seguida ao decaimento β inicial, haverá um decaimento γ para levar o nitrogênio-15 ao seu estado fundamental. 2.9.4. Outros tipos de decaimentos Os decaimentos α, β e γ descritos anteriormente foram os primeiros a serem identificados e são os mais comuns observados na Natureza. Mas, para nuclídeos que possuem um enorme excesso de nêutrons ou de prótons, existem outros tipos de decaimentos possíveis, como se vê da Figura 20. É possível que o excesso de nêutrons (respectivamente prótons) seja aliviado pela emissão de uma dessas partículas, ao invés de se convertê-la em um próton (respectivamente nêutron), como ocorre no decaimento β. Além disso, para nuclídeos muito pesados, é possível que sofram fissão espontânea e se subdividam em dois nuclídeos menores. Ou seja, esse caso seria análogo ao ilustrado na Figura 13, porém sem a necessidade de se incidir um nêutron para induzir a fissão. Trata-se de um fenômeno muito raro. É importante mencionar que o urânio e o plutônio, dois dos elementos mais usados como combustíveis nucleares, não sofrem fissão espontânea. Nesse caso a fissão precisa ser induzida por um nêutron incidente, ou seja, é preciso um gatilho que dê início à reação. É isso o que permite que tenhamos controle sobre essas usinas, pois quando quisermos diminuir a produção de energia basta capturarmos os nêutrons presentes no reator (usando um material chamado absorvedor, presente nas chamadas barras de controle do reator – ver seção 2.8). ), mas em trabalhos futuros sobre outras partes desta sequência didática.
  • 27
    Durante o colapso do núcleo a densidade fica tão grande que há várias absorções de elétrons por parte dos prótons, que são convertidos em nêutrons. Muitos desses nêutrons são ejetados durante a explosão, e outros permanecem na região do núcleo que sobra, formando um objeto astrofísico denominado estrela de nêutrons.
  • 28
    O cálculo é simples, bastando converter 1 eV 1.6×10-19J e lembrar que 1 mol de 235U possui 6.02×1023 átomos e totaliza uma massa de aproximadamente 235 g.
  • 29
    Note que, devido ao baixo nível de enriquecimento do urânio usado em reatores, é impossível ocorrer uma explosão similar ao de uma bomba nuclear, mesmo nos acidentes em que a reação escapa de controle. As explosões de reatores, nesses casos, decorrem da elevada pressão de vapor que é produzida em quantidade maior do que a usina foi desenhada para suportar.
  • 30
    Os números exatos podem variar muito, a depender da região geográfica em que se encontra a usina em questão.
  • 31
    O efeito é exatamente análogo ao que ocorre para elétrons na eletrosfera atômica. Cada orbital comporta apenas dois elétrons, devido ao princípio da exclusão, desde que estejam com spins desemparelhados. Assim, quanto mais elétrons o átomo possuir, mais externos serão os orbitais por eles ocupados, o que significa que eles são mais facilmente ionizáveis (i.e. possuem menor energia de ligação). Assim como a eletrosfera, o núcleo também possui camadas energéticas, e cada uma comporta dois nêutrons e dois prótons, desde que seus spins estejam desemparelhados. Em nuclídeos mais pesados que o He4, portanto com mais do que 2 prótons e 2 nêutrons, o excesso deve ocupar níveis de energia maiores, como mostrado na Figura 19.
  • 32
    Mais precisamente, o processo envolve o tunelamento quântico de uma partícula α através da barreira produzida pela atração nuclear e a repulsão coulombiana. Ou seja, nesse modelo a partícula α é vista como pré-existente e confinada no interior do nuclídeo, rebatendo em suas “paredes” até eventualmente tunelar. Esses detalhes esclarecem o caráter quântico do fenômeno – não se trata de uma repulsão clássica, até porque o evento é probabilístico. No entanto – e esse é o ponto central dessa série de artigos – a simples compreensão do mecanismo central por trás do decaimento α, como uma disputa entre as interações nuclear e eletrostática, já fundamenta uma compreensão sólida do fenômeno, além de fomentar o uso da intuição física por parte do(a) discente, demonstrando a aplicabilidade de conceitos simples, como a repulsão eletrostática, na compreensão de fenômenos da Física Contemporânea.
  • 33
    No referencial de repouso do nuclídeo-mãe, o momento inicial é zero, portanto o momento final deve também se anular, ou seja,
    m filha v filha = m α v α .
    Por outro lado, por conservação de energia de repouso + cinética,
    m mãe c 2 = m filha c 2 + m filha v filha 2 2 + m α c 2 + m α v α 2 2 ,
    de onde se chega à equação (20).
  • 34
    Neutrinos e antineutrinos são partículas neutras e com massa muito pequena, desprezível para a maior parte dos efeitos. Essas partículas são tão elusivas que suas descobertas ocorreram décadas após os primeiros estudos sobre radioatividade. A história e as características dessas partículas são importantes na discussão sobre a interação fraca, que será tema de artigo posterior. Por isso, não falaremos muito sobre elas aqui.
  • 35
    Afinal, seria o nêutron composto de um próton + elétron, ou seria o próton composto de um nêutron + pósitron? A resposta não é nenhuma das duas opções: os elétrons e pósitrons não estão previamente presentes dentro desses núcleons.
  • 36
    Lembrando que uma amostra com 1 mol da substância tem cerca de 1023 nuclídeos, que é um número imenso.
  • 37
    Há aproximadamente 1 átomo de radiocarbono para cada 1 trilhão de átomos de carbono na atmosfera.
  • 38
    Na verdade não se mede diretamente a concentração de radiocarbono, e sim a quantidade de decaimentos por cada grama de todo o carbono presente na amostra. Como a quantidade de decaimentos é obviamente proporcional à quantidade de átomos presentes, as duas medições são equivalentes. Em um organismo vivo, há cerca de 0.226 decaimentos por segundo e por cada grama de carbono da amostra. Então, se uma amostra tem 0.113 decaimentos por segundo e por grama de carbono, isso significa que o organismo morreu há 5730 anos.
  • 39
    Da palavra grega δϵ´νδρoν (“árvore”), ou seja, cronologia (através) das árvores.
  • 40
    Vale notar que, em caso de pinturas produzidas pós-Renascimento, i.e. nos últimos 500 anos, os métodos de datação radioativa não são tão eficientes, pois transcorreu-se ainda pouco tempo desde a produção do artefato (comparativamente à meia-vida do carbono-14) e não se detectaria ainda uma diferença significativa na abundância desse elemento relativamente ao que se espera para o organismo vivo.
  • 41
    Lembrando que a precisão da datação por radiocarbono depende crucialmente de conhecermos a concentração de carbono-14 na atmosfera na época em que o organismo viveu. Essa concentração é aproximadamente constante, mas pode flutuar devido a eventos climáticos ou até antropomórficos. Por exemplo, é sabido que os inúmeros testes com armamentos nucleares realizados desde a década de 1950 aumentaram drasticamente a concentração de radiocarbono na atmosfera. Portanto o valor que se mede hoje não corresponde à concentração de radiocarbono na época em que o organismo viveu há séculos. É preciso fazer uma correção para levar em conta esses efeitos, e para isso usa-se outros métodos de datação como referência, por exemplo a dendrocronologia.
  • 42
    Para o caso do 18F a meia-vida é de aproximadamente 109 minutos. Por isso o paciente deve chegar à clínica e tomar a injeção de contraste com alguma antecedência antes de realizar o exame.
  • 43
    A regulamentação atual vigora desde o ano de 2001, mas uma atualização está prevista para 2023 [62[62] Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Agenda Regulatória 2021/2023 (Projeto 3.12), disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/regulamentacao/agenda-regulatoria/agenda-2021-2023, acesso em 21/06/2023.
    https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos...
    ].
  • 44
    O césio-137 é um dos produtos colaterais de fissões que ocorrem na produção de energia nuclear. Seu uso como fonte de radiação para preservação de alimentos constitui um reaproveitamento do que seria considerado “lixo nuclear”.
  • 45
    Se o bombardeamento fosse feito com nêutrons ou prótons, essas partículas poderiam ser absorvidas por algum núcleo atômico presente no alimento, alterando sua estrutura e possivelmente tornando-o radioativo. Por exemplo, bombardeando-se o carbono-12 com nêutrons pode-se produzir o carbono-14, que é radioativo. Mas fótons não são capazes de converter um isótopo em outro.
  • 46
    O(a) leitor(a) mais atento poderia pensar que o fóton bombardeado poderia excitar um núcleo atômico presente no alimento, executando o processo inverso ao descrito na Figura 24 (direita). Esse nuclídeo excitado tenderia a decair com nova emissão de γ, que, se ocorresse dentro de nosso corpo, poderia ser danoso às nossas células. Ocorre que o fóton incidente só pode ser absorvido se sua energia for exatamente igual à diferença de energia entre dois níveis nucleares mostrados na figura. Então o fóton só seria absorvido por um nuclídeo que tenha níveis com a mesma diferença de energia dos níveis do cobalto-60 ou do césio-137. Mas as energias dos níveis nucleares servem como a “impressão digital” do núcleo, e cada elemento tem níveis com espaçamentos característicos. Então a radiação γ emitida pelo cobalto-60 não seria absorvida por um núcleo de carbono, nitrogênio, oxigênio, ou outros elementos que encontramos na matéria orgânica.
  • 47
    A redução dos níveis de vitamina são menores quando a irradiação é feita a frio.
  • 48
    Ressaltamos que as três primeiras aulas da sequência didática versaram sobre uma introdução à Física de Partículas e a interação eletromagnética, cujo material e análise podem ser consultados no primeiro artigo desta série [1[1] G.C. Dorsch e T.C. da C. Guio, Rev. Bras. Ens. Fis. 43, e20210083 (2021).].
  • 49
    Como o processo é quântico, existe uma probabilidade de a fissão ocorrer de uma determinada maneira. Não é possível determinar, de antemão, qual será o resultado da fissão. Mesmo que repliquemos o experimento exatamente sob as mesmas condições, o resultado da fissão em cada caso vai variar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2023
  • Aceito
    12 Jun 2023
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