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O método como problema na pesquisa em literatura1 1 Resenha de: DURÃO, Fabio Akcelrud. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020. 128p.

Method as a Problem in Literary Research

DURÃO, Fabio Akcelrud. . Metodologia de pesquisa em literatura.São Paulo: Parábola, 2020. 128p.

Os livros de metodologia da pesquisa voltados para as humanidades são não raro atravessados por uma espécie de contradição performativa: ao buscar oferecer sugestões instrumentais e instrumentos operacionais para “calibrar as competências” (SOUZA, 2016SOUZA, Roberto Acízelo de. Um pouco de método: nos estudos literários em particular, com extensão às humanidades em geral. São Paulo: É Realizações, 2016., p. 71) de estudantes e pesquisadores em seus esforços investigativos - como escolher o tema e realizar leituras e fichamentos; como coletar os dados; como selecionar a bibliografia; como fazer uma tese etc. -, muitos manuais acabam por engessar justamente a dimensão criativa e imprevisível que de fato importa e decide o jogo das “descobertas” na área. Em outras palavras, propor atalhos procedimentais significa, paradoxalmente, diluir parte indispensável da atividade intelectual e analítica, ou melhor, dirimir obstáculos teórico-metodológicos que correspondem, eles próprios, a uma parcela significativa da ideia de pesquisa nas humanidades. Ora, talvez isso explique a ausência de volumes dessa ordem direcionados particularmente aos estudos literários, uma vez que, no caso específico da literatura, o que se chama de “metodologia” confunde-se com as operações mais básicas ou fundamentais do leitor diante das obras.

Seria possível pensar, então, em uma proposta de discutir o campo metodológico da pesquisa em literatura sem, com isso, imobilizar ou apagar o giro negativo e surpreendente que desperta e alimenta a vida indócil dos seus objetos? Seria possível, em suma, um volume capaz de delinear teoricamente o problema metodológico da pesquisa em uma área de contornos tão instáveis quanto a dos estudos literários? O livro de Fabio Akcelrud Durão intitulado Metodologia de pesquisa em literatura, recém-publicado pela editora Parábola (2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020.), constitui uma rara exceção - ou mesmo um caso único - no Brasil. Conforme o próprio autor de saída explica, em sua “Breve nota introdutória”, apesar de sua finalidade, por assim dizer, “prática”, o volume parte do pressuposto e sustenta a tese de que “não há pesquisa sem investimento do sujeito, algo que ele postula e que deve enfrentar a materialidade do corpus que analisa” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 10). Posições que constroem esquemas teórico-metodológicos enrijecidos e pré-ordenados, evaporando-se a concretude e “autonomia” relativa dos artefatos artísticos, estão fadadas a girar em falso em torno de si mesmas, sem dialogar com a singularidade da literatura e do que significa pesquisar “em literatura”. Nesse sentido, em sua conceituação mais forte, a metodologia tem de funcionar como radicalização de uma elaboração teórica que, por sua vez, decorre inevitavelmente da solicitação feita por um objeto que não deixa de desarmar expectativas ou construções prévias. Como afirma Durão (2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 22), “a repetição dos mesmos procedimentos de leitura é entediante, porque no final não diz coisa alguma sobre os objetos, e sim sobre os procedimentos”.

A bem da verdade, as preocupações debatidas e aprofundadas em Metodologia de pesquisa em literatura caminham com o autor há bastante tempo, e encontram algumas de suas formulações iniciais no volume seminal de 2011 intitulado Teoria (literária) americana. Nele, Durão debate o modus operandi característico daquilo que é conhecido nos Estados Unidos simplesmente como “Teoria”, com “T” maiúsculo e sem complemento ou delimitador algum de área. Em poucas palavras, o império da “Teoria” remete, segundo o autor, a uma “explosão de códigos interpretativos” relativamente autônomos em relação às obras literárias: a Teoria se assemelha “a uma máquina desterritorializada de enunciados, uma pura tecnologia produtora de narrativas explicadoras. [...] A Teoria fabrica aparatos interpretativos, bens de produção” (DURÃO, 2011DURÃO, Fabio A. Teoria (literária) americana. Uma introdução crítica. Campinas: Autores Associados, 2011., p. 29). Esse esquema de engessamento teórico-metodológico e de diluição ou desobstrução da materialidade dos artefatos, como no caso das demais tecnologias, costuma migrar do norte para o sul do globo, impactando inevitavelmente a pesquisa também nos trópicos. Seja como for, para além de Teoria (literária) americana, o livro de Durão sobre metodologia dialoga clara e diretamente com investigações e intervenções anteriores suas (cf., em particular, DURÃO 2012DURÃO, Fabio A. Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa. São Paulo: Nankin, 2012.; 2015DURÃO, Fabio A. Fragmentos reunidos. São Paulo: Nankin editorial, 2015. ; 2016DURÃO, Fabio A. O que é crítica literária. São Paulo: Nankin editorial ; Parábola editorial, 2016.; 2019DURÃO, Fabio A. Do texto à obra e outros ensaios. Curitiba: Appris, 2019.), de modo a compor e consolidar uma imagem invertida ou um contraponto ético-político, porém não menos teórico, para a “Teorização” e seu livre-comércio.

A proposta do volume fica evidente já a partir de uma divisão de capítulos que, em vez de sinalizar quais são as “gravatas e suspensórios” da pesquisa - valendo-me aqui da bela epígrafe retirada do Brás Cubas de Machado -, habita inequivocamente o centro do torvelinho. O primeiro capítulo, intitulado “Literatura e universidade”, lança aquela que seria a hipótese central de trabalho do livro por meio de uma equação: “pesquisa em literatura = interpretação + aparato acadêmico” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 15). Cabe explicar: com a perda do prestígio social da literatura - que, conforme Durão observa, vem desaparecendo dos jornais, do âmbito público, da vida familiar e mesmo da esfera amorosa -, a universidade se mantém como um dos poucos lugares em que o literário pode ser enfrentado a partir de “condições mais adequadas para a formação de leitores e a construção de uma objetividade forte” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 17). No entanto, essa negatividade ou autonomia mínima sobre a qual a universidade se assenta não pode ser encarada aprioristicamente ou tomada como certa; pelo contrário, ela resulta de uma “política científica” permanente que a sustenta e que permite tomar a literatura, ainda hoje, como espaço vital para a produção de pesquisa e conhecimento. O capítulo discute, portanto, essa tensão ou impasse constitutivo da área: “atualmente a universidade é tanto aquilo que acolhe e oferece liberdade à literatura quanto aquilo que potencialmente a tolhe” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 26). Como é dispensável dizê-lo, a universidade da inovação e do empreendedorismo, por exemplo, produzirá, por razões óbvias, pressões significativas para a continuidade da realização de pesquisa em literatura.

O segundo capítulo de Metodologia, “O processo de descoberta”, seguindo a fórmula “pesquisa em literatura = interpretação + aparato acadêmico”, volta-se para a discussão em torno do gesto interpretativo, isto é, do que significa interpretar uma obra literária. Temos aqui uma leitura incisiva e potente desse processo que se coloca em confronto declarado com posições estritamente descritivo-factuais ou subjetivistas: “interpretar significa acrescentar algo à literalidade de um objeto de forma que, ao final, aquilo que foi adicionado pareça pertencer à própria coisa” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 28). Tal como já formulara em outro momento - a crítica “realmente bem-sucedida [...] adere tão perfeitamente a seu objeto que pode, por fim, calá-lo; se alguma outra interpretação contundente não for realizada, o texto estará morto” (DURÃO, 2016DURÃO, Fabio A. O que é crítica literária. São Paulo: Nankin editorial ; Parábola editorial, 2016., p. 20) -, em sua caracterização do ato interpretativo, o autor insiste no encontro e embate entre, por um lado, o desejo e a inventividade do leitor, aquilo que há “de mais precioso na interpretação”, e, por outro, a necessidade de conferir concretude aos seus desejos, ou seja, de demonstrar a produtividade da sua leitura na materialidade composicional do artefato artístico. Segue disso a defesa de que a “leitura cerrada” ou, simplesmente, a “leitura atenta” nada mais é do que um “procedimento heurístico [...] para a constituição dos estudos literários como disciplina acadêmica legítima” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 40).

O capítulo três de Metodologia de pesquisa em literatura, intitulado “Configurações da institucionalização”, encerra a equação/fórmula estruturante do livro a partir da exposição de questões e problemas vinculados precisamente ao laço que une a literatura à universidade, atravessando, entre outras, as noções decisivas de “área”, “campo” e “gêneros discursivos”, para culminar com um debate sobre a publicação acadêmica, ou melhor, sobre aquele que seria “o ponto de chegada de qualquer pesquisa” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 70). Vale destacar aqui a importante discussão sobre o lugar ou adequação da forma-artigo para os estudos literários e, como resultado, a “relevância do livro como veículo privilegiado de trabalho” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 72), algo que, embora longe de constituir uma realidade para as agências nacionais e internacionais de fomento à pesquisa, poderia se estender para as humanidades de modo geral. Segundo o crítico (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 72), o risco da mera “adequação formal entre aquilo que se escreve e a noção de artigo”, tributária das chamadas “ciências duras”, significaria “um empobrecimento enorme do campo”. Na verdade, o que se chama de “artigo científico” ou simplesmente “artigo”, nos estudos literários, vincula-se via de regra à forma mais aberta e complexa do ensaísmo acadêmico.

Nas “dicas de pesquisa”, quarto capítulo de Metodologia, Durão retoma o estilo aforístico de um livro como Fragmentos reunidos (2015DURÃO, Fabio A. Fragmentos reunidos. São Paulo: Nankin editorial, 2015. ) - sua crítica literária “a golpes de martelo” - para oferecer uma lista de princípios práticos que, sem abandonar os problemas teóricos antes abordados, conferem certa dimensão “pedagógica” ao volume. A rigor, os fragmentos ou sugestões do autor, ao assumir um caráter de imediaticidade ou ponto de partida mínimo (acentuado, ademais, pelo corte preciso das notas e pela brevidade da própria seção), oferecem desdobramentos materiais que derivam dos capítulos anteriores e alertam para equívocos tão frequentemente cometidos - não só por novatos - que mais parecem retratar o funcionamento corriqueiro ou habitual da área. Algumas das dicas, capazes de proteger os diferentes leitores de embaraços bastante comuns, são particularmente valiosas e mesmo contraintuitivas:

( Evite, se possível, aquela forma de exposição que primeiro elucida a teoria para depois se voltar ao objeto. [...] O ideal é que o texto literário forneça os conceitos que serão usados em sua análise [...];

( Tenha clareza a respeito de quem é seu antagonista. É impossível argumentar a favor de algo sem com isso sugerir aquilo contra que (ou contra quem) se está argumentando;

( Primeiro um trabalho precisa existir, só depois disso é que ele pode ser bom. (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 77-80).

O livro conta, ainda, com três apêndices: “A máquina acadêmica”, redigido com Tauan Tinti, “O financiamento da pesquisa em literatura” e “Notas para a avaliação”. Em linhas gerais, os textos finais buscam aprofundar as discussões e problemas apresentados nos capítulos precedentes, voltando o olhar, por exemplo, para um caso particular, relacionado ao amplo alcance dos estudos da memória nos departamentos de Literatura hoje, para a questão do financiamento das investigações na área e, por fim, para o problema específico da avaliação - assunto de grande interesse, porém pouco teorizado - e os impactos sobre a decisão de onde alocar os muitas vezes parcos recursos disponíveis para a pesquisa. Ao encenar dilemas pontuais e esclarecer o todo a partir deles, os apêndices nos ajudam a compreender retrospectivamente, sem dúvida, o projeto conduzido por Durão, cuja postura e proposta, como dizem as últimas palavras do livro, é a de constante “autorreflexão” e “crítica”.

O que torna Metodologia de pesquisa em literatura, de Fabio A. Durão, desde já um livro incontornável para a área de Letras no Brasil, como se buscou aqui demonstrar, é menos um suposto convite pedagogizante ou facilitador, tecido para que os não iniciados metam logo a mão na massa, do que, ao contrário, a imagem consistente que ele constrói das dificuldades, impasses e promessas que compõem as singularidades do território de pesquisa a ser habitado. Nas palavras do autor, a sua aposta dirige-se, acima de tudo, à possibilidade do surgimento de uma “artimanha da razão” que, ao solicitar do leitor um posicionamento próprio, ainda que (ou principalmente?) na refutação, acabará por realizar o intuito do livro em espírito, mesmo que não em conteúdo” (DURÃO, 2020DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020., p. 14). Somente essa conduta ao mesmo tempo teórica e autoconsciente, capaz de ultrapassar o campo meramente propositivo das fórmulas prontas e dos artifícios imediatos de pesquisa, pode de fato se endereçar à metodologia sem violentar o sentido mais relevante do termo e as questões investigativas que dele decorrem.

Referências

  • DURÃO, Fabio A. Do texto à obra e outros ensaios Curitiba: Appris, 2019.
  • DURÃO, Fabio A. Fragmentos reunidos São Paulo: Nankin editorial, 2015.
  • DURÃO, Fabio A. Metodologia de pesquisa em literatura São Paulo: Parábola, 2020.
  • DURÃO, Fabio A. Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa. São Paulo: Nankin, 2012.
  • DURÃO, Fabio A. O que é crítica literária. São Paulo: Nankin editorial ; Parábola editorial, 2016.
  • DURÃO, Fabio A. Teoria (literária) americana. Uma introdução crítica Campinas: Autores Associados, 2011.
  • SOUZA, Roberto Acízelo de. Um pouco de método: nos estudos literários em particular, com extensão às humanidades em geral. São Paulo: É Realizações, 2016.
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    Resenha de: DURÃO, Fabio Akcelrud. Metodologia de pesquisa em literatura. São Paulo: Parábola, 2020. 128p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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