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De objeto da pulsão a objeto-fonte da pulsão: um imperativo epistemológico

From drive object to source of drives object: An epistemological imperative

D’objet de la pulsion à objet-source de la pulsion: un impératif épistémologique

Del objeto de la pulsión al objeto fuente de la pulsión: un imperativo epistemológico

Resumos

A sexualidade humana, no que se refere à identidade sexual e à escolha de objeto, situa-se no campo do psíquico, ou seja, da pulsão, expressando-se pela fantasia. Sua instalação é precoce, ocorrida ao tempo da sedução da criança pelo adulto, num tempo complexo que conjuga fundação do inconsciente, nascimento da pulsão e instalação do objeto a partir de fora, na chamada situação antropológica fundamental. Como já demonstrado pelo fracasso nas tentativas científicas de encontro de determinantes genéticas para a identidade sexual, o discurso a incidir sobre a sexualidade humana sai definitivamente do campo do natural rumo ao campo do psíquico. Tal constatação implicou, a partir da psicanálise, um remanejamento na própria esfera da epistemologia, de modo análogo à revolução que a antropologia já havia operado ao definir objeto da cultura também fora do campo da natureza.

Palavras-chave:
Identificação sexual; escolha de objeto; relação de objeto; objetalidade


Human sexuality, with regards to sexual identity and object choice, is located in the psychic field, that is, the drive, expressing itself through fantasy. It starts early, when as a child, one is enchanted by an adult, a complex time that combines the foundation of the unconscious, the drive start and the installation of the object from the outside, in the so-called fundamental anthropological situation. As shown by the failure in scientific attempts to find genetic determinants for sexual identity, the discourse on human sexuality clearly leaves the realm of nature for the psychic. Such observation implied, in the field of psychoanalysis, a shift in epistemology similar to the revolution that anthropology had already operated by defining culture as object outside of nature.

Key words:
Sexual identity; object choice; object relation; objectality


La sexualité humaine, en ce qui concerne l’identité sexuelle et le choix d’objet, se situe dans le champ du psychique, c’est-à-dire de la pulsion, s’exprimant par le fantasme. Son installation est précoce, lorsque, enfant, on est enchanté par un adulte - une époque complexe qui conjugue la fondation de l’inconscient, la naissance de la pulsion et l’installation de l’objet à partir du dehors, dans ce que l’on appelle une situation anthropologique fondamentale. Comme l’a déjà démontré l’échec des tentatives scientifiques pour trouver des déterminants génétiques de l’identité sexuelle, le discours sur la sexualité humaine quitte définitivement le domaine de la nature pour celui du psychique. Cette conclusion impliquait, à partir de la psychanalyse, un remaniement dans la sphère même de l’épistémologie, de manière analogue à la révolution que l’anthropologie avait déjà opérée en définissant l’objet de la culture hors du champ de la nature.

Mots-clés:
Identité sexuelle; choix de l’objet; relation de l’objet; objectalité


La sexualidad humana, en lo que se refiere a la identidad sexual y a la elección del objeto, se sitúa en el campo psíquico, es decir, el de la pulsión, expresándose a través de la fantasía. Su instalación es precoz al ocurrir en el momento de la seducción del niño por el adulto, en un momento complejo que conjuga la fundación del inconsciente, el nacimiento de la pulsión y la instalación del objeto desde el exterior, en la llamada situación antropológica fundamental. Como ya lo ha demostrado el fracaso en los intentos científicos de encontrar determinantes genéticos para la identidad sexual, el discurso que incide sobre la sexualidad humana sale definitivamente del campo natural al campo de lo psíquico. Tal constatación implicó, a partir del psicoanálisis, una reformulación en la propia esfera de la epistemología, análoga a la revolución que la antropología ya había operado al definir el objeto de la cultura también fuera del campo de la naturaleza.

Palabras clave:
Identificación sexual; elección de objeto; relación de objeto; objetalidad


Tratarei aqui do antigo e persistente problema da chamada escolha de objeto, cujo processo de definição é correlato ao da identificação sexual dos sujeitos. Por objeto entende-se, então, na mais cristalina definição feita por Freud, “a pessoa de quem procede a atração sexual” (1905/1972hFreud, S. (1972h). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 6, pp. 123-252). Imago. (Trabalho original publicado em 1905)., p. 136). Notemos logo de início o caráter daquilo que se denomina objeto em psicanálise: trata-se de objeto sexual, como Freud cuidou de estabelecer nessa definição.

Portanto, como afirma enfaticamente Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). Martins Fontes., obje- to, em psicanálise, diz respeito ao fenômeno da objetalidade, e não ao da objetividade, para o qual o que está em jogo é o objeto da percepção. Tal diferenciação feita por Laplanche é relevante para dar clareza epistemológica à definição do objeto da análise, que seria eminentemente o objeto psíquico (da pulsão), e não o objeto natural. Dito a partir de outro par correlato, seria o objeto da sexualidade, e não o da conservação. Todavia, a marcação cerrada desse limite pode ficar comprometida nos segmentos em que se encontra borrada a fronteira entre esses tipos de objeto, como na psicose — haja vista a importância que adquire a função do teste de realidade no reconhecimento do objeto. No campo estritamente freudiano, claro está que um objeto da percepção, uma vez investido libidinalmente, converte-se em objeto da pulsão. Ou seja, o objeto da objetalidade surge entrecruzado com o da objetividade, tanto na ontogênese quanto na teoria. Do “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895/1972gFreud, S. (1972g). Projeto para uma psicologia científica. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 381-533). Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).), até as “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (Freud, 1911/1972eFreud, S. (1972e). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 273-286). Imago. (Trabalho original publicado em 1911).), é assim que se concebe o objeto. Diga-se de passagem, esse texto de 1911, criticado por Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). Martins Fontes. exatamente por desconsiderar a separação entre objetalidade e objetividade, é o mesmo que adquire caráter seminal para a teorização que Bion (1962/1991Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência (P. D. Corrêa, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1962).)virá a fazer em O aprender com a experiência, justamente porque, para esse autor, o teste de realidade tem valor central quando é a experiência da psicose que impregna a construção da metapsicologia.

Mas voltemos ao nosso problema inicial. Embora a variedade dos objetos possa ser considerada infinita, grosso modo ela se dividiu historicamente nas duas categorias básicas da heterossexualidade e da homossexualidade, com todas as variações de que se tem notícia: bissexualidade, transexualidade etc., até chegar ao paroxismo taxonômico contemporâneo das mais de 30 classes de gênero enumeráveis. Este, porém, não será aqui nosso assunto principal.

Examinaremos o modo como, na teoria psicanalítica, a escolha de objeto se dá de maneira completamente solidária e correlata à formação da identidade sexual, ou identidade de gênero, por assim dizer. De partida, convém lembrar algumas constatações elementares, com todas as questões sociais, psicopatológicas e clínicas que implicam.

  1. Desde Freud, a psicanálise já sabia da precocidade da “escolha” de objeto, haja vista a insistência reiterada sobre a importância da primeira infância, com todo o rol de experiências psíquicas que ela envolve, na formação dos pontos de fixação que se atualizarão posteriormente tanto na psicopatologia como na definição da sexualidade adulta.

  2. A formação da identidade sexual se dá precocemente, ou seja, a pulsão sexual que surge nos primórdios da vida tem aí mesmo seu tempo ótimo de consolidação, o que problematiza sobremaneira a discussão sobre alterações estruturais nas fases posteriores da vida dos sujeitos. Apenas de modo incidental, antecipo que essa constatação é da maior relevância quando se aborda um tema candente da atualidade, que é a polêmica em torno da chamada cura gay, recurso que tenta como imposição para a heterossexualidade normativa.

  3. Se a psicanálise afirma essa escolha sexual no momento precoce da vida, não faz sentido, sob o ponto de vista do desenvolvimento ontológico, deixar de lado teorias psicológicas que lhe podem dar suporte. Por exemplo, a concepção de que haveria uma janela temporal para a consolidação da escolha objetal. Trata-se da teoria do imprinting,1 1 Esse conceito, introduzido nas conjecturas psicanalíticas por Robert J. Stoller, vem da etologia de Konrad Lorenz (1970). Traduzido para o português ora por cunhagem, ora por estampagem, significa a aquisição, em um momento crítico do início da vida — janela temporal —, de um padrão de comportamento não reversível, provocado por uma situação ou estímulo ambiental. ligada por Stoller (1978)Stoller, R. J. (1978). La difficile conquête de la masculinité. In J. Caïn (Org.), L’identification: L’autre, c’ést moi (pp. 91-104). Tachou. ao problema da escolha de objeto em psicanálise, em consonância com a concepção de Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). Martins Fontes. acerca da instalação do sexual na criança a partir da ação do adulto sobre ela.

A princípio, Freud define o objeto como um objeto total, o que vem a ser, sem rodeios, uma pessoa. Mas, ainda nos “Três ensaios...” (1905/1972hFreud, S. (1972h). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 6, pp. 123-252). Imago. (Trabalho original publicado em 1905).), a questão logo se complica pela entrada em cena dos objetos parciais, ou seja, partes específicas do corpo de outra pessoa. Isso porque, no desenvolvimento sexual, os objetos investidos pela libido seriam primeiro o seio materno, depois as fezes e, por fim, os órgãos genitais propriamente ditos. Aqui vai também uma simplificação, visto que qualquer parte do corpo pode assumir para um sujeito o papel de objeto. Além disso, como no fetichismo e em uma série das chamadas perversões, outros objetos, não humanos e até mesmo inanimados, podem se tornar destinatários do desejo sexual de alguém.

O misterioso problema da etiologia da escolha de objeto, sobretudo se o simplificarmos provisoriamente para a divisão entre hetero e homossexualidade, deita raízes tanto na psicanálise como na medicina e na psicologia. Quando não se o aborda por meio das hipóteses objetais ou propriamente psicológicas, é por meio das suposições biológicas que se o faz — para não incluir aqui o reduto místico-religioso, fora do campo largamente tipificado como ciência. As pesquisas médicas, recorrendo primordialmente à genética, são as mais renitentes na área. Assim como as investigações genéticas no campo da psicopatologia em geral, a busca da explicação genética para a homossexualidade nunca se estancou. Detalhe a ser anotado: se se busca a explicação da etiologia genética da homossexualidade, é porque se tem um pressuposto não declarado, que é o da normalidade da heterossexualidade. Como um pano de fundo ideológico, essa crença se instala no cerne da pesquisa científica, e foi a duras penas que se pôde chegar ao ponto de tratá-la como um viés.

Não será necessário listar aqui as dezenas ou centenas de tentativas de esclarecimento genético da causa da homossexualidade. Fiquemos com uma delas, recente, detalhada, obediente ao método científico e, enfim, bastante esclarecedora, ainda que seus resultados negativos iluminem o que não estava contido no desejo, por assim dizer, que animava o propósito da investigação. Não é o caso de atribuir-lhe especial valor. É apenas com o intuito de tomá-la por exemplar que a escolhi, ressaltadas, certamente, as qualidades técnicas e a reputação das instituições em que foi desenvolvida. Vejamos.

A pesquisa, conduzida pela Science, é assinada por Benjamin Neale, pesquisador do Hospital Geral de Massachusetts e do Instituto Broad (EUA), pelo italiano Andrea Ganna, seu colega no Instituto Broad, e pelo tailandês Fah Sathirapongsasuti, pesquisador da empresa de genômica 23andMe, estabelecida na Califórnia. Realmente não cabe aqui detalhar a metodologia da pesquisa, disponível em publicação para quem desejar conhecê-la (ver Lopes, 2019Lopes, R. J. (2019, 29 de agosto). Genes não ajudam a prever homossexualidade, mostra estudo. Folha de S. Paulo. https://bit.ly/32w3vVh
https://bit.ly/32w3vVh...
). O resultado obtido, em síntese, é o de que as “preferências” homossexuais não são detectáveis no DNA. Sugerem os pesquisadores que essa característica é tão multifacetada quanto outros traços humanos, como a inteligência e o talento para os esportes. Conclusão: os resultados devem sepultar de vez a busca por um único gene gay. Descobriram ainda que o comportamento homossexual, além de ser parte natural da biologia humana, não é único, mas diverso!

Ainda que aos psicanalistas e outros observadores da cena sexual humana nos pareça de uma obviedade atordoante, não deixa de ser interessante considerar esses dados quando oriundos da própria pesquisa biológica. Há algo que manca no discurso dessa Naturwissenschaft: em vez de promulgar seu achado como conclusão de uma investigação científica, o mais correto, sob o ponto de vista epistemológico, seria decretar que houve, isso sim, uma confusão. Ou seja, utilizou-se de um método para a investigação de um objeto cuja sondagem a ele não competia. Em suma, a determinação psicogênica da sexualidade humana foi reafirmada, incidentalmente, pelo resultado negativo de uma pesquisa genética.

Muito bem. Mas e a psicanálise, como fica nessa história? Embora parta dela a afirmação de que o objeto sexual humano é contingente,2 2 Essa perspectiva a respeito da contingência do objeto foi consolidada na psicanálise a partir dos anos 1980. Como síntese desse ponto de vista, os dois volumes de Jurandir Freire Costa (1994, 1995) sobre o homoerotismo foram cristalinos na explicitação e na defesa dessa tese, depurada interpretativamente do texto freudiano. alguma confusão foi feita até que chegássemos a esse ponto. Atribui-se a Freud boa parte dessa “descoberta”. No entanto, se examinarmos de perto sua obra, vamos encontrar marchas e contramarchas no caminho dessa definição.3 3 Laplanche (2015a) afirma: “Ora, apesar dos Três ensaios..., apesar da deriva que ele [Freud] propõe para a sexualidade infantil, Freud vai continuar a reduzir a pulsão a um modelo instintual” (p. 31). Trata-se do que o autor chamou em diversas ocasiões de desvio biologizante na questão da sexualidade. Para não falar que, na literatura psicanalítica, até certo período, a homossexualidade era tratada como desvio da norma heterossexual, quando não como patologia ou perversão. E a tese da psicogênese da chamada escolha de objeto — que de escolha nada tem — custou a se firmar, uma vez que se titubeou por muitas vezes e por muito tempo quanto à sua preponderância em relação ao papel da constitucionalidade, aqui considerada na acepção de biologia.

No capítulo 3 de “O ego e o id” (1923/1972cFreud, S. (1972c). O ego e o id. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 11-83). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).), Freud se detém num exame pormenorizado da relação entre o complexo de Édipo e a definição da identidade sexual, antecipando-se a pontos que seriam debatidos nos anos seguintes em “A dissolução do complexo de Édipo” (Freud, 1924/1972bFreud, S. (1972b). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 213-224). Imago. (Trabalho original publicado em 1924).) e “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (Freud, 1925/1972aFreud, S. (1972a). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 301-320). Imago. (Trabalho original publicado em 1925).). Ali o encontramos num esforço por compreender a formação da masculinidade e da feminilidade, em homens e mulheres. É assim que o argumento da bissexualidade constitutiva retoma a cena como solo que, de partida, abrigaria e justificaria ambas as possibilidades de desfecho da formação da identidade sexual e da correlata escolha de objeto. O que assistimos aí é a um verdadeiro debate sobre a complexidade do complexo de Édipo, se me permitem a redundância da expressão. Freud alega que não se pode considerar simplesmente sua forma simplificada, na qual o menino desenvolveria o interesse erótico pela mãe, e a menina, pelo pai, mas que haveria que se levar em conta as catexias libidinais da mãe e do pai, tanto pelo menino quanto pela menina. Seria o Édipo dúplice, positivo e negativo. Sem me estender, o que temos nesse texto é a descrição da cena de luta entre as tendências hetero e homossexuais.

Neste ponto, é importante citar uma passagem desse texto, em que certa ambiguidade parece insinuar-se. Diz Freud (1923/1972cFreud, S. (1972c). O ego e o id. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 11-83). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).), à guisa de conclusão sobre a escolha objetal:

Pareceria, portanto, que em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais masculina e feminina [grifo meu] é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe. Esta é uma das maneiras pelas quais a bissexualidade é responsável pelas vicissitudes subsequentes do complexo de Édipo. (p. 47)

Ora, como entender o significado de “disposições sexuais masculina e feminina”? Se for como resultante dos conflitos vivenciados no período edípico, em seu desfecho estaríamos então no campo da formação psicogênica da tendência hetero ou homossexual. Mas aí entra um complicador, que assim posso explicitar: Freud fala aqui do desfecho do complexo de Édipo, quando, por definição, a identidade sexual e o superego se consolidam. Nesse caso, os elementos de fixação, a formar as disposições, já teriam, por uma razão lógica, que ser pretéritos, servindo de antecedentes causais para o que agora se consolidaria em termos de identidade. Se for esse o raciocínio, somos obrigados a considerar que tais “disposições sexuais masculina e feminina”, remanescentes da bissexualidade, situar-se-iam no campo do constitucional, entendido aqui como herança da filogênese.

Essas considerações visam a expor dificuldades epistemológicas que implicam volteios teóricos. Não quero, com elas, retirar Freud do lugar de operador de uma subversão na herança positivista, que exigia a prova material para tudo que se postulasse, inclusive no campo da mente. Como fica patente na argumentação de Paul-Laurent Assoun (1983)Assoun, P. -L. (1983). Introdução à epistemologia freudiana (H. Japiassu, Trad.). Imago., Freud produz essa total subversão, sem, contudo, o confessar. Em virtude de seu compromisso com a ciência oficial, necessidade política para a legitimação social da psicanálise, ele declara até o fim que a psicanálise se inscreve no campo das Naturwissenschaften.4 4 Ao tempo de Freud, a oposição que se fazia era entre as Naturwissenschaften, ciências da natureza, e as Geisteswissenschaften, ciências do espírito. Essas últimas, para Freud, seriam contrárias ao espírito científico, razão pela qual não lhes dava crédito e, ademais, queria delas manter sua psicanálise distante. Mezan (2007) propõe que aquela divisão entre as ciências dificultava o enquadramento da psicanálise, por Freud, num campo externo ao da ciência natural. Examinando seu discurso à luz das divisões contemporâneas da ciência, o trabalho de Freud situar-se-ia no âmbito do que se convencionou chamar de ciências humanas. Essa questão está minuciosamente discutida por Neves Neto (2019) em um trabalho sobre a natureza epistemológica do psíquico.

Pois bem: consideremos, afinal, afirmado o discurso que situará a sexualidade humana, no que esta contém de escolha objetal, no campo psíquico propriamente dito — seja pela via da postulação freudiana (assim interpretada), seja pelos resultados negativos da pesquisa genética. Isso posto, abre-se para a psicanálise a enorme responsabilidade de se pronunciar sobre a etiologia da sexualidade psíquica e os complexos mecanismos que ela envolve.

Não faltaram autores a fazer suas conjecturas, e seria impraticável levantar aqui as teses formuladas em um século de literatura psicanalítica. Houve tentativas mais frágeis, que apelavam a uma suposta obviedade e, ainda assim, veiculavam erros grosseiros. Refiro-me, sucintamente, à ideia de que a não identificação masculina do menino decorria da ausência de uma figura paterna forte, justificativa que se popularizou como explicação fácil para a gênese da homossexualidade do menino. Pecava por atribuir excessiva materialidade a uma questão inconsciente. Convém lembrar Freud (1923/1972cFreud, S. (1972c). O ego e o id. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 11-83). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).), que, a respeito da formação do superego, desvinculava sua severidade daquela das figuras parentais e da educação, enfatizando a primazia da pulsionalidade em sua configuração.

Há autores que, com aguçado senso clínico, estabeleceram hipóteses sobre as relações entre as ações parentais e a formação da identidade sexual. Sem pretender de modo algum ser exaustivo, recordo, por exemplo, que Stoller (1986)Stoller, R. J. (1986). Perversion: The erotic form of hatred. Karnac., Chasseguet-Smirgel (1991)Chasseguet-Smirgel, J. (1991). Ética e estética da perversão (V. Jacques, Trad.). Artes Médicas. e Masud Khan (1987)Khan, M. M. R. (1987). Alienación en las perversiones (F. Setaro, Trad.). Nueva Visión. arriscaram hipóteses clínicas consistentes sobre o papel da mãe na formação da identidade sexual do perverso, apontando, grosso modo, para a prorrogação excessiva das gratificações da criança e o desestímulo à consideração do terceiro interditor.

Se ficarmos nos textos de Freud dos anos 1920 sobre o complexo de Édipo e sua superação, o que assistimos bem poderia ser descrito como o drama de uma criança às voltas com sua própria identificação, perdida em meio a conflitos e, dito quase caricaturalmente, aproximando-se de um momento fatídico a exigir-lhe uma tomada de decisão. É claro que não é dessa forma esquemática que Freud propõe o problema da escolha. No entanto, o pouco detalhamento das atitudes parentais — e ambientais, como podemos acrescentar após Winnicott — que tomam parte desse processo, aliado à infelicidade da palavra escolha, induzem os mais desavisados a assim interpretar o enredo. Mas é verdade, por outro lado, que Freud (1933/1972d)Freud, S. (1972d). Feminilidade. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22, pp. 139--165). Imago. (Trabalho original publicado em 1933)., antevendo a importância do papel do objeto externo nessa novela, escreverá em seu último trabalho sobre a questão da identidade sexual que é necessário levar em conta as relações precoces entre a menina e sua mãe para pensar a respeito da determinação da feminilidade. Ou seja, a vida precoce e os acontecimentos pré-edípicos agora entram em cena nessa quase autocrítica.

O problema da definição do objeto sexual tornou-se, assim, um desafio a um só tempo metapsicológico e epistemológico para a psicanálise. Urgia propor para o tema um tratamento que fosse consistente, levando às últimas consequências a proposição da psicogênese por meio de um discurso que não fosse meramente especulativo. O tratamento do assunto ganhará, em Jean Laplanche, a abordagem consistente pela qual se esperava até então. Vejamos como ele equaciona a questão de maneira absolutamente rigorosa, no que tange às exigências epistemológicas. Ainda que em um ponto longínquo, reconhece-se a mão de Lacan nessa trajetória. Explico: não por concordância com seu ponto de vista — antes, ao contrário —, mas pela trilha que Lacan deixou aberta para a afirmação da psicogênese e pela defesa inarredável do ponto de vista de que é no campo das significações (fora, portanto, do constitucional e dentro do regime da alteridade) que a constituição do eu vai se realizar.

Ribeiro (2010)Ribeiro, P. C. (2010). Identificação passiva e teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche. Percurso, 22(44), 79-90., num trabalho que reflete com rigor a proposição laplanchiana, privilegiará a ideia de que, na ontogênese do sujeito, convém falar em ser identificado por, em vez de identificar-se com. Ou seja, a partir do entendimento de que a identidade é algo fornecido pelo outro, por meio de nomeações que funcionam como significantes enigmáticos, só podemos chegar à postulação de que a identificação é um processo que se sofre passivamente. Um adulto identifica uma criança como sendo fulana de tal, com toda a gama de atribuições que essa nomeação pode conter. Esse é um ponto do rigor epistemológico do trabalho de Laplanche que tem como consequência liberar a psicanálise da posição incômoda de ter que supor um bebê “escolhendo” ativamente os traços da alteridade com que se identificar.

Para Laplanche (2015a)Laplanche, J. (2015a). Pulsão e instinto. In J. Laplanche, Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006 (V. Dresch & M. Marques, Trads., pp. 27-43). Dublinense., há que se discernir entre instinto e pulsão, pois é a confusão entre esses termos que fará o discurso sobre a identidade sexual patinar nos domínios da constitucionalidade. Desse modo, ele faz justiça à biologia, dando-lhe o lugar que lhe convém no terreno da sexualidade humana. E desmonta o discurso naturalista segundo o qual a heterossexualidade é uma herança biológica, restando à homossexualidade a condição de ser um desvio ou uma patologia. Não retomarei a teoria longa e complexa de Laplanche, por impossível neste espaço e por desnecessário para chegar ao ponto a que viso.5 5 Na verdade, as ideias de Laplanche sobre a gênese da sexualidade psíquica encontram-se em diversos de seus escritos. Para uma síntese delas, ver Novos fundamentos para a psicanálise (Laplanche, 1992). Enfatizo, porém, que a diferenciação entre instinto e pulsão é parte essencial desse programa. A pressão biológica para a descarga sexual, com os componentes hormonais que carrega, ficaria do lado do instinto. Mas a fantasia sexual e o desejo (desejo pelo que ou por quem) situam-se definitivamente no campo da pulsão, donde a já mencionada assertiva de que o objeto sexual, para o ser humano, é contingente.

Vejamos, apenas a título de recapitulação sumária, a teoria de Laplanche sobre a sexuação, que bem pode ser entendida como uma teoria da implantação da sexualidade psíquica na criança pelo adulto, na cena inexorável da sedução generalizada. Trata-se de uma decorrência dos cuidados que visam à própria sobrevivência da criança, levados a cabo por um adulto sexuado sobre uma criança que ainda não o é. Na prática do cuidado, o adulto, portador de inconsciente recalcado, dirige à criança significantes enigmáticos que serão submetidos por ela a tentativas de tradução. Tais significantes — e isto é fundamental — não são enigmáticos apenas para a criança, que os recebe passivamente, mas também para o próprio adulto, que os emite ativamente.

Vale a pena trazer uma citação um pouco longa de Dejours (2019)Dejours, C. (2019). Psicossomática e metapsicologia do corpo. In C. Dejours, Psicossomática e teoria do corpo (P. S. Souza Jr., S. Krieger & R. M. Volich, Trads., pp. 113-143). Blucher., dada a clareza com que expõe a posição laplanchiana:

A comunicação entre a criança e o adulto é mobilizada pela autoconservação: de um lado, as necessidades do corpo fisiológico da criança; de outro, os cuidados do corpo dispensados à criança pelo adulto. A onda portadora dessa comunicação é o apego. Mas, nessa comunicação, a relação é desigual. A criança se dirige ao corpo do adulto sob o efeito de estímulos fisiológicos que provêm de seu próprio corpo. O adulto, de sua parte, não pode responder no registro estrito dos cuidados higieno-dietéticos, isto é, unicamente na dimensão instrumental da autoconservação. Pois, por seu pertencimento ao mundo dos adultos, não reage somente com um comportamento de cuidado. O adulto não pode, quando responde aos apelos do corpo da criança, fazer outra coisa além de reagir também sexualmente. A comunicação, a mensagem dirigida pelo adulto à criança (no corpo a corpo com a criança, por ocasião dos cuidados) é “comprometida”, diz Laplanche — até mesmo corrompida —, pelo sexual. Nolens volens, o adulto sempre excita a criança. Na verdade, o que é mais comprometedor — e, por conta disso, o mais excitante — nessa comunicação adulto-criança é precisamente aquilo de que o adulto não tem consciência, isto é, aquilo que vem da mobilização de seu próprio inconsciente. O adulto seduz a criança, mas não sabe que, ao fazê-lo, implanta o sexual no corpo da criança. Assim se encontram situados dois tempos: o primeiro é o apelo da criança veiculado pela onda que carrega o apego; o segundo é aquele do retrieval do comportamento de cuidado do adulto comprometido pelo seu inconsciente sexual. Agora a criança encontra-se excitada pelo adulto, o que mobiliza nela uma forma particular de exigência de trabalho, ligação, que Laplanche descreve com o nome de tradução: tradução, pela criança, da mensagem comprometida emitida pelo adulto. É esse o terceiro tempo: o tempo tradutório. (pp. 125-126)

Chegamos aqui a um ponto fundamental para a compreensão da razão pela qual a sexualidade humana, no que toca à determinação do objeto, descola-se do biológico para percorrer a trilha do psíquico, que tange à pulsão e à fantasia, com a instalação do inconsciente e do campo do desejo. Como argumenta Laplanche, o objeto da pulsão se instala a partir de fora, num momento em que os estímulos sexuais biológicos (hormonais) ainda não exercem pressão. Portanto, a sexualidade infantil é eminentemente psíquica, ainda que implique processos de excitação. Mas é a onda pubertária, como Freud já postulava nos “Três ensaios...” (1905/1972hFreud, S. (1972h). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 6, pp. 123-252). Imago. (Trabalho original publicado em 1905).), que fará exigências transformadoras, no sentido da descarga. Aí já estaremos no campo do instinto, com seus esquemas herdados da filogênese, que, no entanto, não são preenchidos por determinações qualitativas quanto ao objeto. Na bela expressão de Laplanche (2015a)Laplanche, J. (2015a). Pulsão e instinto. In J. Laplanche, Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006 (V. Dresch & M. Marques, Trads., pp. 27-43). Dublinense., quando emerge o instinto sexual, pubertário e adulto, ele “encontra o lugar ocupado pela pulsão infantil” (p. 43).

Essa tese de Laplanche corrobora uma das principais ideias de Freud, qual seja, a de que a sexualidade se determina precocemente, pelo apoio do erótico sobre o somático, ou, dito de outro modo, pela decolagem da sexualidade psíquica do solo da conservação. Disso podemos caminhar para nossas conclusões finais.

Primeiramente, já ficou claro que a sexualidade humana situa-se no campo do psíquico, ou seja, da pulsão, expressando-se pela fantasia. Sua instalação é precoce, ocorrida ao tempo da sedução da criança pelo adulto, num tempo complexo que conjuga fundação do inconsciente, nascimento da pulsão e instalação do objeto a partir de fora, na chamada situação antropológica fundamental. Como já demonstrado pelo fracasso no encontro de determinantes genéticas, visto, a título de mero exemplo, na pesquisa antes citada, o discurso a incidir sobre a sexualidade humana sai definitivamente do campo do natural rumo ao campo do psíquico, o que implicou, a partir da psicanálise, um remanejamento na esfera da epistemologia, com a diferenciação dos objetos das diversas formas de ciência.

O momento de instalação do objeto, como postulado por Ribeiro (2010)Ribeiro, P. C. (2010). Identificação passiva e teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche. Percurso, 22(44), 79-90. com base em Stoller (1978)Stoller, R. J. (1978). La difficile conquête de la masculinité. In J. Caïn (Org.), L’identification: L’autre, c’ést moi (pp. 91-104). Tachou., encontra-se de acordo com esquemas herdados da filogênese, definidos por Lorenz (1970)Lorenz, K. (1970). Studies in animal and human behavior. Harvard University Press. por meio do conceito de imprinting. Há um tempo ótimo para que ocorra a instalação do objeto sexual. Instalação, aqui, é o termo que substitui a palavra escolha, por nada haver de escolha nesse processo. Escolha pressuporia outro engano conceitual, geralmente veiculado pelo emprego da expressão identificar-se com. Já o termo implantação conecta--se harmoniosamente com a expressão ser identificado por. A fixidez do objeto, instalado na janela de tempo aberta para o imprinting, desautoriza qualquer investidura clínica que pretenda alterá-lo. Voltamos, então, tout court, à impossibilidade técnica e à impostura ética contida em qualquer tentativa de cura gay.

Há outra conclusão importante, que diz respeito ao aspecto inconsciente da mensagem dirigida pelo adulto à criança. Reitero: o significante é enigmático tanto para o receptor quanto para o emissor. Disso desdobram-se consequências fundamentais. Uma delas é que não se pode determinar conscientemente o rumo a ser tomado pela identificação sexual e, outrossim, pelo desejo. Pode ocorrer até mesmo que o destino da sexualidade de uma criança se dê no sentido contrário daquilo que, conscientemente, desejavam os adultos responsáveis por seus cuidados. O desejo da criança estará de acordo com o desejo inconsciente dos pais, do qual eles podem nada saber.

Bettelheim e Sylvester (1950)Bettelheim, B., & Sylvester, E. (1950). Delinquency and morality. The Psychoanalytic Study of the Child, 5(1), 329-342., ainda que trabalhando num contexto que não o do estrito desejo sexual, demonstraram que certos comportamentos delinquentes de jovens, mesmo que exasperassem os pais, correspondiam a seu desejo inconsciente sobre o filho. Este fazia algo de que eles, os pais, tinham sido privados de fazer na juventude, eventualmente por estarem em situação financeira e social menos favorecida do que aquela que podiam agora prover para seus rebentos.

Em resumo: a sexualidade não está sujeita à educação e não pode conter nenhuma previsibilidade. Ninguém escolhe a sexualidade de ninguém, sendo até possível que o objeto do desejo do filho se dê nas antípodas do que foi “estimulado” pelo meio. Ademais, o objeto é tão singular quanto o são as identidades. Em vez de situá-lo no campo da psicopatologia, melhor seria compreendê-lo como situado no campo da singularidade idiopática, esse fértil conceito de Maurice Dayan (1994)Dayan, M. (1994). Normalidad, normatividad, idiopatía. In Fundación Europea para el Psicoanálisis (Org.), La normalidad como síntoma (pp. 83-107). Kliné.. Note-se, incidentalmente, que a sexualidade, se não constituiu um objeto das ciências da natureza, tampouco será objeto das ciências da cultura. Não me refiro aqui ao comportamento sexual no âmbito social, mas à questão estrita da objetalidade. Não é ela, a objetalidade, objeto natural nem cultural, mas uma terceira forma de objeto, que vem a ser o objeto psíquico.6 6 Mezan (2001) esclarece sobre as diferenças entre os vários objetos no campo epistemológico, demarcando o terreno do objeto psíquico como aquele constituído pela psicanálise, à diferença dos objetos natural (das ciências duras), cultural (das ciências sociais) e ideal (da matemática). É a natureza do objeto que deve determinar o método apropriado para sua investigação.

Por fim, temos que considerar as implicações dessas conclusões sobre a metapsicologia, que não são de pouca monta. Elas dirão respeito à necessidade de repensar o conceito de fonte (Quelle) da pulsão, já que a noção de objeto (Objekt), a ela correlata, também sofreu remanejamentos. Ana Maria Sigal (2020)Sigal, A. M. (no prelo). A antropofagia do objeto: Desconstrução e reconstrução. In D. Gurfinkel, & L. Fulgencio, Relações de objeto na psicanálise: ontem e hoje. Blucher., falando em antropofagia do objeto, propôs, acertadamente, que, a partir do momento em que se postula o objeto como algo que se implanta na criança, tornando dela o desejo daquele, já não faz sentido determinar com precisão o que seria o dentro e o fora — secundando-a: o que seria o eu e o outro.

Em Freud (1915/1972fFreud, S. (1972f). O instinto e suas vicissitudes. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 129-162). Imago. (Trabalho original publicado em 1915).), lemos que, “por fonte de uma pulsão entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo” (1915/1972fFreud, S. (1972f). O instinto e suas vicissitudes. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 129-162). Imago. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 143). Grosso modo, depreende-se daqui que a fonte da pulsão seria somática, localizada primordialmente nas zonas erógenas. Entretanto, se o objeto a pulsar é o objeto externo que foi implantado, ainda que tenha se tornado parte constitutiva do sujeito, não resta senão postular que a fonte original da pulsão não está no somático, mas no próprio objeto.7 7 Laplanche (2015b) levanta uma série de problemas decorrentes da ideia de que a fonte da pulsão se localiza no plano somático. Não cabe aqui elencá-los, mas remeto o leitor a seu texto para um aprofundamento na questão. Donde a mudança conceitual efetuada por Laplanche (1992)Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). Martins Fontes., que incidirá sobre uma reformulação terminológica necessária: de objeto da pulsão, passa-se a falar em objeto-fonte da pulsão, o que, como nomeei no título deste texto, tornou-se um imperativo epistemológico.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio. / This work received no funding.
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    Esse conceito, introduzido nas conjecturas psicanalíticas por Robert J. Stoller, vem da etologia de Konrad Lorenz (1970)Lorenz, K. (1970). Studies in animal and human behavior. Harvard University Press.. Traduzido para o português ora por cunhagem, ora por estampagem, significa a aquisição, em um momento crítico do início da vida — janela temporal —, de um padrão de comportamento não reversível, provocado por uma situação ou estímulo ambiental.
  • 2
    Essa perspectiva a respeito da contingência do objeto foi consolidada na psicanálise a partir dos anos 1980. Como síntese desse ponto de vista, os dois volumes de Jurandir Freire Costa (1994Costa, J. F. (1994). A inocência e o vício: Estudos sobre o homoerotismo. Relume--Dumará., 1995)Costa, J. F. (1995). A face e o verso: Estudos sobre o homoerotismo II. Escuta. sobre o homoerotismo foram cristalinos na explicitação e na defesa dessa tese, depurada interpretativamente do texto freudiano.
  • 3
    Laplanche (2015a)Laplanche, J. (2015a). Pulsão e instinto. In J. Laplanche, Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006 (V. Dresch & M. Marques, Trads., pp. 27-43). Dublinense. afirma: “Ora, apesar dos Três ensaios..., apesar da deriva que ele [Freud] propõe para a sexualidade infantil, Freud vai continuar a reduzir a pulsão a um modelo instintual” (p. 31). Trata-se do que o autor chamou em diversas ocasiões de desvio biologizante na questão da sexualidade.
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    Ao tempo de Freud, a oposição que se fazia era entre as Naturwissenschaften, ciências da natureza, e as Geisteswissenschaften, ciências do espírito. Essas últimas, para Freud, seriam contrárias ao espírito científico, razão pela qual não lhes dava crédito e, ademais, queria delas manter sua psicanálise distante. Mezan (2007)Mezan, R. (2007). Que tipo de ciência é, afinal, a psicanálise? Natureza Humana, 9(3), 319-359. propõe que aquela divisão entre as ciências dificultava o enquadramento da psicanálise, por Freud, num campo externo ao da ciência natural. Examinando seu discurso à luz das divisões contemporâneas da ciência, o trabalho de Freud situar-se-ia no âmbito do que se convencionou chamar de ciências humanas. Essa questão está minuciosamente discutida por Neves Neto (2019)Neves Neto, A. A. (2019). Questões subjacentes ao diálogo entre psicanálise e neurociência: Sobre a natureza do psíquico. Relatório de iniciação científica, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. em um trabalho sobre a natureza epistemológica do psíquico.
  • 5
    Na verdade, as ideias de Laplanche sobre a gênese da sexualidade psíquica encontram-se em diversos de seus escritos. Para uma síntese delas, ver Novos fundamentos para a psicanálise (Laplanche, 1992Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise (C. Berliner, Trad.). Martins Fontes.).
  • 6
    Mezan (2001)Mezan, R. (2001). Sobre a epistemologia da psicanálise. In R. Mezan, Interfaces da psicanálise (pp. 436-519). Companhia das Letras. esclarece sobre as diferenças entre os vários objetos no campo epistemológico, demarcando o terreno do objeto psíquico como aquele constituído pela psicanálise, à diferença dos objetos natural (das ciências duras), cultural (das ciências sociais) e ideal (da matemática). É a natureza do objeto que deve determinar o método apropriado para sua investigação.
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    Laplanche (2015b)Laplanche, J. (2015b). Os Três ensaios e a teoria da sedução. In J. Laplanche, Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano: 2000-2006 (V. Dresch & M. Marques, Trads., pp. 232-246). Dublinense. levanta uma série de problemas decorrentes da ideia de que a fonte da pulsão se localiza no plano somático. Não cabe aqui elencá-los, mas remeto o leitor a seu texto para um aprofundamento na questão.

Referências

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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2021
  • Aceito
    11 Nov 2021
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