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Educação do campo nos governos FHC e Lula da Silva: potencialidades e limites de acesso à educação no contexto do projeto neoliberal

Rural education in FHC and Lula da Silva's government: potentialities and boundaries of access to education in the context of the neoliberal project

Resumos

O artigo trata de uma análise sobre as contradições da política pública de educação do campo desencadeada em meio à luta pela Reforma Agrária por parte dos trabalhadores rurais frente ao projeto neoliberal do Governo Fernando Henrique Cardoso (1998-2002) e Governo Lula da Silva (2003-2010). A análise está pautada pela histórica resistência dos trabalhadores do campo na defesa da garantia do direito à educação pública de qualidade e o papel que os governos tiveram na estruturação de programas e de aprovação de marcos legais que acabaram por dar uma sustentação parcial às demandas. No entanto, como a Reforma Agrária não se materializou e o agronegócio continuou avançando no meio rural, a educação continua sendo a pauta importante dos movimentos sociais para que possam alimentar a esperança e conquistas contra o latifúndio, a exploração, o extermínio e a criminalização dos mais pobres.

educação do campo; política pública de educação; Reforma Agrária e educação; política neoliberal de educação


The article is an analysis of the contradictions of public policy on rural education unleashed amid the struggle for agrarian reform by the peasants against the neoliberal project of Fernando Henrique Cardoso (1998-2002) and Lula da Silva's government (2003-2010). The analysis is guided by the historic resistance of rural workers in defence of assuring the right to a quality public education and the governments' role in structuring programmes and adopting legal frameworks that eventually gave partial support to the demands. However, as agrarian reform has not materialized and agribusiness has kept growing in rural areas, education remains a major agenda of social movements so they can feed the hopes and achievements against the latifundia, exploitation, extermination and the criminalisation of the poor.

rural education; public education policy; agrarian reform and education; neoliberal education policy


Introdução

Em tempos de crise econômica, explosões de massas contra sistemas e regimes em diversas partes do mundo, as instituições também são questionadas quando não respondem às demandas da sociedade, dentre elas está a instituição educacional, a sua finalidade, seus objetivos e as condições de acesso e permanência, o currículo escolar, a formação de professores, dentre outros.

No Brasil, a luta pela educação pública de qualidade tem sido uma constante, pois a crise da educação é na realidade a crise da instituição pública em meio a um processo violento de privatização1 1 A educação tem sido um negócio que concentra renda de investidores internacionais tanto na educação básica quanto superior. Esta última com maior vantagem. Em 2012 somente os grupos Kroton Educacional e Anhanguera Educacional, ao se fundirem, somaram mais de 11 bilhões de reais. Mercado altamente lucrativo. (Guilherme, 2013). na "oferta" dos serviços, conjugado com o processo de concentração de riquezas nas mãos de poucos.

Em um país de base patrimonial e latifundista, as consequências da concentração de riqueza estão materializadas na não efetivação da Reforma Agrária e no aumento do agronegócio no campo, nos altos índices de analfabetismo, na ausência de política de saúde, educação, saneamento, no aumento do empobrecimento dos trabalhadores; mesmo os que possuem um pedaço de terra, estão endividados pela política perversa dos programas de crédito, como o Programa Nacional da Agricultura Familiar - PRONAF. Também se manifesta diretamente na falta de perspectiva de trabalho para a juventude, pois os jovens são empurrados para desenvolverem um trabalho precarizado, principalmente os que saem do norte e nordeste do país para serem explorados nos cortes de cana e na construção civil em diversos estados do sudeste e sul.

Por isso, a população cada vez mais ganha o seu espaço nas ruas, nos atos e manifestações que questionam o regime político, a corrupção e a negação dos seus direitos. É a partir da resistência dos trabalhadores do campo que a luta pela educação se constituiu como conteúdo importante da luta pela Reforma Agrária desde os anos de 1980, anos estes que, em meio a um processo de "redemocratização" no país, os trabalhadores organizados buscaram avançar nas suas reivindicações e na luta contra a lógica perversa do capital. O regime e o processo de organização política baseado no modelo de estado democrático burguês também foram e continuam sendo duramente questionados.

Do ponto de vista histórico podemos discutir as condições em que foram gestadas a educação do campo, seus acertos e suas consequências para o conjunto da classe trabalhadora. Para isto, faremos uma análise sobre a política pública de educação do campo, a dividiremos para fins metodológicos em dois momentos: a) a primeira estudando o período de 1998 a 2002, cujo Governo Fernando Henrique Cardoso - FHC implementou o primeiro programa de educação do campo. A segunda análise parte das políticas desenvolvidas pelo Governo Lula da Silva no período de 2003 a 2010. Essa separação tem como referência um conjunto de ações econômicas e políticas governamentais, bem como o papel dos movimentos sociais que marcaram a construção da educação do campo.

Os problemas do campo no projeto econômico de FHC

A luta em torno da Educação do Campo se reinicia no Brasil no final dos anos 1980 quando há uma maior disputa pela terra, após o processo da Ditadura Civil Militar, quando os movimentos sociais do campo, principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST desenvolvem novas estratégias de ocupação de frações do território nacional, exigindo diretamente dos Governos a Reforma Agrária. No entanto, as lutas massivas no Brasil não acontecem isoladas nesse período, mas se articulam a outras lutas de trabalhadores, contrárias ao processo de globalização e ao neoliberalismo que avançava, inclusive, financiando e apoiando candidaturas nos países periféricos ou em desenvolvimento para atender aos interesses do grande capital. O Governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o Governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) cumpriram bem esse papel.

Esses Governos foram marcados pela consolidação da política neoliberal que propõe, entre muitas de suas estratégias, uma reorganização profunda no papel do Estado e em suas relações com a sociedade civil. Desse modo, a educação desse período é concebida obedecendo aos mesmos critérios do capital, tendo em vista o avanço da mercantilização da educação brasileira em todos os níveis.

No período de 1998 a 2002, a população do campo estava calejada de relizar enfrentamentos com os latifundiários em todo o país. O Governo FHC (iniciado em 1994) implementava a política neoliberal a ferro e fogo, protegendo inclusive os crimes acontecidos em meio aos conflitos de terra. O massacre em Corumbiara (1995) e em Eldorado dos Carajás (1996) foram elementos centrais para a explosão cada vez maior dos trabalhadores e, desta vez, com maior atenção de organismos internacionais.

A esquerda composta, inclusive pelos movimentos sociais, enfrentou anos difíceis porque estava se desenvolvendo em todo o país, ainda que tardiamente em relação a outros países da Europa e da América do Sul, o projeto econômico de Base Neoliberal. A eleição de Fernando Henrique Cardoso (1994) foi um marco importante para que a organização empresarial desse a linha política e econômica a um projeto de sociedade voltado para os interesses do capital. Nesse Governo se iniciou a implementação do neoliberalismo de terceira via, em que os empresários passaram a assumir por dentro do próprio Estado a sua "responsabilidade" em "educar" os filhos da classe trabalhadora.

Trata-se de um conjunto de diretrizes que mantém os princípios centrais do pensamento hayekiano, formalizados no Consenso de Washington, mas introduz atualizações políticas importantes e inovadoras, envolvendo o redimensionamento do papel do aparelho de Estado, sobretudo em relação às políticas sociais, à arquitetura e à sociedade civil, além dos parâmetros de sociabilidade. (Martins, 2009, p. 140).

Foi no Governo FHC que o grupo de instituições, fundações e empresas assumiram os projetos sociais que tiveram como missão "[...] ordenar e incentivar a interevenção burguesa na 'questão social' a partir do que denominaram de 'investimento social privado'". (Martins, 2009MARTINS, André Silva. A direita para o social: a educação da sociabilidade no Brasil contemporâneo. Juiz de Fora: UFJE, 2009., p. 140). Por isso, o maior investimento em programas e políticas com o Sistema "S" e com um conjunto de empresas, principalmente às voltadas para o agronegócio, que deram sustentação ao Governo durante oito anos. Enquanto isto, o número de assassinatos por conflito aumentava no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra de 2002, houve um crescimento do número de conflito por terra no campo entre os anos de 1992 a 2001 de 361 para 681. Em dez anos - final de 2001 - se somavam 341 assassinatos. Outro dado importante de exploração está na constatação da quantidade de conflitos que têm sido gerados pelo trabalho escravo. Nos últimos dez anos tiveram 228 conflitos desta natureza, conforme dados da Comissão Pastoral da Terra - CPT (1992-2001) (Canuto; Luz, 2002CANUTO, Antonio; LUZ, Cassia Regina da Silva (Coords.). CPT (1992-2001). In:; CANUTO, Antonio LUZ, Cassia Regina da Silva Conflitos no Campo-Brasil. Goiânia: CPT Nacional-Brasil, 2002., p. 7).

Nesse período, para dar resposta às denúncias realizadas pelos movimentos sociais do campo à Anistia Internacional por conta da quantidade de assassinatos nos conflitos de luta pela terra, o Governo Federal iniciou, em 1998, o primeiro Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - Pronera por meio do Insituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA e à época Ministério Extraordinário de Política Fundiária - MPF, tendo em vista que o Ministério da Educação - MEC estava construindo todo um caminho de educação a partir dos critérios da terceira via (entregar a educação para a responsabilidade de programas financiados pelo Banco Mundial) - do tipo Alfabetização Solidária, Educação Profissional pelo Sistema "S", Escola Ativa, e nesse contexto, a educação nos assentamentos não era algo que devesse ter um nível de investimento como política pública.

O Governo não iria investir no acesso à educação no meio rural se o projeto econômico era de continuar expulsando os trabalhadores da terra. O Pronera servia ao Governo apenas para acalmar as demandas dos movimentos e dar uma "resposta" aos órgaos internacionais de direitos humanos. O Governo também trazia como preocupação principal o apoio do Banco Interamericano de Construção e Desenvolvimento - BIRD e outros investidores internacionais que ameaçavam suspender os empréstimos se houvesse continuidade de instabilidade política. FHC necessitava mostrar que o Governo construía um modelo de desenvolvimento com a participação dos trabalhadores do campo e os assassinatos ocorriam porque os trabalhadores eram intransigentes e não respeitavam a "democracia", queriam invadir terras produtivas e não sabiam dialogar para se ter o direito à terra.

Em meio às tensões, uma política de educação do campo começou a ser esboçada pelo Pronera, mas o Governo garantiu todo um processo de governabilidade e avanço do terceiro setor, afinal, os projetos para a educação do campo eram administrados pelas universidades por meio de Fundações de direito privado. Uma política frágil sem recursos contínuos, por um lado, e por outro, o avanço da privatização em todas as áreas, dentre elas o setor da educação para atender aos ajustes macroeconômicos instituídos pelo Consenso de Washington, formuladas ao final de 1989 por economistas e instituições como o Fundo Monetário Internacional - FMI, Banco Mundial e Tesouro dos Estados Unidos.

Em 1994, 22,5% das instituições de ensino superior eram públicas e 77,5% eram privadas. Ao final do segundo mandato do Governo FHC, apenas 11,9% eram públicas e 88,1% privadas. Tivemos durante o seu mandato um crescimento de 118% das instituições privadas, enquanto o número de instituições públicas permaneceu o mesmo, porém, cada vez mais sucateadas, sem crescimento em investimentos em pesquisas e com arrocho salarial. Com esta política o Governo manteve fora das universidades mais de 90% dos jovens entre 18 e 24 anos.

Por isso, a abrangência do Pronera foi pequena, se comparada às necessidades educacionais dos trabalhadores assentados. De 6.175 assentamentos, o Pronera conseguiu chegar em quatro anos há 2.281 destes. O número de assentamentos foi signficativo, mas o número de pessoas sendo alfabetizadas - 109.489 pessoas -, distribuídas em 1.003 municípios brasileiros, não significava muito. Em termos percentuais o Pronera conseguiu alcançar 36,93% dos assentamentos existentes, mas o número exato de pessoas que necessitavam ser alfabetizadas nessas áreas não se conhece ao certo. No entanto, os movimentos sociais e as universidades estimavam que o analfabetismo de jovens e adultos chegava a 60% dos assentados da Reforma Agrária. O próprio INCRA, responsável pela política de Reforma Agrária, não apresentava dados confiáveis sobre a realidade educacional. Segundo pesquisa realizada em 2004 pela Ação Educativa e Pronera (Andrade; Di Pierro; Molina; Jesus, 2004ANDRADE, M. R.; DI PIERRO, M. C.; MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. de. A educação na Reforma Agrária em Perspectiva: uma avaliação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: PRONERA, 2004., p. 29),

[...] o Sistema de Informações dos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária (SIPRA) do Incra não dispõe de dados atualizados de escolaridade para o conjunto da população jovem e adulta que permitam aferir com rigor os índices de cobertura dos cursos de alfabetização de jovens e adultos promovidos pelo Pronera.

Outro ponto importante que provocou uma série de descontinuidade nos cursos oferecidos no Governo FHC foi a falta de estrutura nas áreas de Reforma Agrária. O fato de não existir escolas construídas acabou por provocar a realização das aulas em salas improvisadas, sem energia elétrica, sem material didático. A realidade cruel em que são colocadas dezenas de famílias em áreas sem estrutura física que garanta a reprodução da vida inviabilizou não só a Reforma Agrária, mas a escolarização conforme também aponta a pesquisa. (Andrade; Di Pierro; Molina; Jesus, 2004ANDRADE, M. R.; DI PIERRO, M. C.; MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. de. A educação na Reforma Agrária em Perspectiva: uma avaliação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: PRONERA, 2004.).

Cabe ressaltar que entre o planejado pelo Governo e o descentralizado houve inúmeros problemas que provocaram a descontinuidade das ações.

O planejamento original do Pronera estimava uma ação contínua que levasse à erradicação do analfabetismo nos assentamento rurais até 2004, com um investimento anual de R$ 21 milhões destinados à formação de 65.200 alfabetizandos e 3.260 monitores por ano. Como o governo federal investiu menos da metade dos recursos planejados, essas metas não foram atingidas. No período de 1998 a 2002, os 139 convênios estabelecidos pelo Pronera tiveram por objetivo elevar a escolaridade de 122 mil jovens e adultos assentados, mas é provável que percalços na implementação tenham comprometido o alcance efetivo dessas metas quantitativas. (Andrade; Di Pierro; Molina; Jesus, 2004, p. 23-24).

A política compensatória adotada pelo Governo apenas para maquear a realidade resultou em mais protestos e luta por parte dos movimentos sociais do campo. Os movimentos adotaram estratégias de lutar no legislativo para conseguir liberação de recursos e o descontingenciamento dos mesmos pelo executivo para que as metas do programa fossem razoavelmente atendidas e o nível de escolaridade nessas áreas pudesse se elevar. Mesmo assim, o Pronera continuou com atendimento baixíssimo em relação às necessidades. "Em 2001 e 2002, os gastos com o Pronera variaram entre 3% e 2% da despesa federal com a educação de jovens e adultos, revelando o lugar marginal atribuído pelo governo federal à Educação do Campo". (Andrade; Di Pierro; Molina; Jesus, 2004ANDRADE, M. R.; DI PIERRO, M. C.; MOLINA, M. C.; JESUS, S. M. S. de. A educação na Reforma Agrária em Perspectiva: uma avaliação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: PRONERA, 2004., p. 25).

O que podemos observar com os dados do único programa que incluía precariamente alguns trabalhadores do campo nos projetos educacionais durante o Governo FHC, nos leva a interpretar que este Governo esteve a serviço do aumento da exploração dos trabalhadores, basta que observemos a quantidade de conflitos relacionados ao trabalho escravo. Nos últimos dez anos tivemos 228 conflitos desta natureza, conforme dados da CPT (1992-2001).

Esses dados mostram que a política operada esteve a favor da concentração da propriedade privada da terra2 2 Segundo censo agropecuário de 1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, pode se verificar a concentração de terra. As propriedades com área superior a mil hectares representavam 1% do total dos imóveis e detinham 45% da área total. , do endividamento do Estado e dos próprios trabalhadores a partir dos empréstimos ao BIRD para financiar a Reforma Agrária de mercado, como também do incentivo à manutenção do histórico predomínio da monocultura de exportação organizada pelo latifúndio e financiamento direto do agronegócio para substituir a diversidade de culturas e continuar exterminando as populações do campo. Este nível de extermínio se aprofunda principalmente junto às populações indígenas e não somente aos agricultores e ribeirinhos.

As contradições do campo no Governo Lula da Silva

Com as eleições em 2003 que levaram Lula da Silva ao poder, um dos relatórios da CPT (Canuto; Luz; GonçalvesCANUTO, Antonio;; LUZ, Cassia Regina da Silva GONÇALVES, João Batista (Coords.).. Conflitos no Campo-Brasil Goiânia: CPT Nacional-Brasil, 2003., 2003) apontava que o país estava vivendo um momento político em que "a esperança venceu o medo" e que havia uma expectativa de que houvesse mudança na realidade excludente no país.

A vitória de Lula parecia que iria transformar essa política, no entanto, o que ocorreu foi uma pactuação que aprofundou mais ainda a intervenção privada na esfera pública, reafirmou compromissos do Governo FHC com o capital financeiro (banqueiros), capital comercial, capital agrário (agronegócio e empresas estrangeiras de exploração dos recursos da terra, água e ar) e capital industrial. Se observarmos a resposta deste pacto somente pelos conflitos por água, observaremos que estes saltaram de 14 em 2002 para 87 em 2010. Ao todo é possível registrar 475 conflitos por água neste período de oito anos (Canuto; Luz; WichinieskiCANUTO, Antonio;; LUZ, Cassia Regina da Silva WICHINIESKI, Isolete (Coords.)., Conflitos no Campo-Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional-Brasil, 2012. 182 p., 2012, p. 15).

Os balanços dos conflitos agrários dos últimos oito anos desse Governo (2002-2010) apontam para o crescimento da violência no campo, principalmente o número de assassinatos e expulsão dos trabalhadores.

Quanto à violência, o número de assassinatos recuou em 28, em 2008, para 25, em 2009. Outros indicadores, porém, cresceram, alguns exponencialmente. As tentativas de assassinatos passaram de 44, em 2008, para 62, em 2009; as ameaças de morte, de 90, foram para 143; o número de presos aumentou de 168, para 204. Mas o que mais choca é o número de pessoas torturadas: 6, em 2008, 71, em 2009. O número de famílias expulsas cresceu de 1.841, para 1.844, e significativo foi o aumento do número de famílias despejadas de 9.007, para 12.388, 36,5%. Também elevou-se o número de casas, de roças destruídas 163%, 233%. Em 2009, registrou-se 9.031 famílias ameaçadas pela ação de pistoleiros, contra 6.963, em 2008, mas de 29,7%. (Canuto; Luz; Gonçalves, 2010).

Em oito anos a CPT (Canuto; Luz; Wichinieski, 2012CANUTO, Antonio;; LUZ, Cassia Regina da Silva WICHINIESKI, Isolete (Coords.)., Conflitos no Campo-Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional-Brasil, 2012. 182 p.) registrou 260 assassinatos decorrentes dos conflitos por terra no país. Um número altíssimo para um Governo que prometia estar voltado para os trabalhadores. Os discursos do Governo Lula, de que a Reforma Agrária era coisa do passado, tomaram conta das políticas que passaram a defender desde 2003 a chamada "consolidação dos assentamentos". Mas o crescimento dos conflitos no campo diz o contrário, que a Reforma Agrária continua sendo necessária para desconcentrar renda e fazer justiça.

O campo continuou com altos investimentos no agronegócio e a balança comercial brasileira saltou de 24,84% em 2002 para 76,44% em 20103 3 Ministério da Agricultura. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/>. Acesso em: 14 ago. 2014. . Isto mostra qual o modelo de desenvolvimento econômico que prioriza a monocultura, em especial a produção de soja, milho, café para a exportação em detrimento da agricultura familiar de base camponesa e da diversidade das culturas.

Para esse modelo de desenvolvimento, a Reforma Agrária só pode ser coisa do passado, um atraso, por isso, a resistência dos indígenas, dos trabalhadores rurais, representa um empecilho ao pleno avanço e crescimento da balança comercial do agronegócio4 4 Balança Comercial do Agronegócio Brasileiro (2002-2013). Disponível em: <http://www.brasilglobalnet.gov.br/ARQUIVOS/IndicadoresEconomicos/agronegocioBrasileiro.pdf>. Acesso em: 13/07/2014. , cujas exportações visam apenas o aumento do lucro por meio das "commodities". Enquanto isto, segundo dados do Sistema de Informações dos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária - SIPRA/INCRA (Brasil, 2010BRASIL. Sistema de Informações dos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária - SIPRA/INCRA (2010), Incra, 2010. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso em: 08 nov. 2014.
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), o número de Projetos de Assentamentos - PA do Governo Lula (3.630 PA com 640.860 famílias) é menor do que no período de FHC (4.144 PA com 510.301 famílias). Os dados mostram qual tem sido a prioridade dos Governos. Lula assentou a mais que FHC apenas 130.559 mil famílias.

O novo pacto do Governo Lula trazia o aperfeiçoamento do ajuste estrutural acordado com o FMI com um componente a mais - programas de renda mínima e de combate à fome e à miséria com base na equalização entre consumo e produção. Os programas de bolsa extrapolam os ministérios e chegam até aos funcionários públicos, a exemplo dos professores universitários que, ao invés de terem salários dignos, recebem bolsas para coordenar e executar diversos projetos de ensino, pesquisa e extensão. Esses programas alimentam a relação de exploração promovida pelo capital, pois na lógica do consumo, os recursos voltam para os empresários e banqueiros e, os primeiros possuem isenção de impostos para continuar realizando a exploração dos mais pobres. Tudo isso faz parte da política de ajuste estrutural com disciplina fiscal para os mais pobres.

[...] O governo Lula da Silva admitiu não haver alternativas ao movimento de financeirização do capital, sendo impossível alterar o eixo da política neoliberal no país. Defendeu que no máximo seria possível encaminhar adequações pontuais dentro do universo político-econômico estabelecido, não cabendo, portanto, mudanças de rumo na economia nacional.

As políticas implementadas pelo bloco no poder fizeram com que a classe empresarial ampliasse as margens de concentração de riqueza, seguindo a mesma tendência dos períodos anteriores de governo. Basta dizer que de janeiro de 2003 a junho de 2005 as instituições financeiras em atuação no Brasil atingiram lucros exorbitantes. Segundo Novo (2005), somente as dez maiores empresas privadas deste setor acumularam um lucro de 23,5 bilhões de reais, algo maior do que todo o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, quando a taxa de lucro das dez maiores empresas daquele período foi de 16,217 bilhões de reais. (Martins, 2009, p. 225).

O Governo Lula contou com o apoio de muitos movimentos sociais e sindicais que antes faziam oposição às políticas neoliberais. No âmbito da educação esses movimentos tinham forte atuação nos Fóruns em Defesa da Escola Pública, na elaboração de propostas e projetos de lei como foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No entanto, ao chegar ao poder, o Governo deixou de escanteio a proposta de reforma universitária no congresso nacional e enviou um pacote de reforma desconsiderando tudo que havia sido construído democraticamente, no início do processo de "redemocratização".

O Governo de Lula da Silva criou o Programa de Reestruturação e Expansão da Universidade - REUNI (Decreto nº 6.096/2007), exigindo de todos os gestores a adesão com o argumento que somente repassaria os recursos para as instituições que atendessem ao programa e às suas metas, quebrando completamente com o princípio da autonomia universitária; permitiu o processo de privatização e mercantilização do conhecimento com a Lei de Inovação Tecnológica (Lei nº 10.9737, de 02 de dezembro de 2004) que permite a produção de tecnologia por profissionais públicos em empresas privadas; criou a Empresa de Serviços Hospitalares para administrar os hospitais escola das universidades públicas (Decreto nº 7.661, de 28 de dezembro de 2011); extinguiu dívidas do sistema particular de ensino para com os direitos dos trabalhadores e criou um Programa de concessão de bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de ensino superior - o Programa Universidade para Todos - PROUNI (Lei nº 11.096 de 13 de janeiro de 1995). O Governo provocou o aprofundamento da crise institucional pautada pela relação público-privado, mas manteve o "aumento" do atendimento das demandas sociais por meio de programas, com trabalho precarizado e intensificado, além de privatizar por dentro as instituições públicas, comprometendo a formação dos futuros profissionais. A expansão do número de matrículas com a criação de novos campi e de novos cursos não foi suficiente para diminuir o número de instituições privadas. Ao contrário, o Governo fortaleceu a fusão das universidades e a concentração do lucro.

Enquanto a política nacional de educação se estrutura por meio das privatizações, ainda que se tenham nesse Governo ampliado a oferta de vagas para concurso público para docentes e técnicos com a criação de novos campi e universidades, é fato que estes estão longe de cumprir a real demanda de atendimento à população estudantil além de alimentar a parceria público-privada que destrói as condições de uma verdadeira política de educação pública. A Reforma da Universidade realizada pelo Governo Lula tem alguns marcos que Roberto Leher (2005) apontou como "linhas de força":

[...] a consolidação do eixo privado como o vetor do fornecimento da educação superior; 2) a naturalização de que os (poucos) jovens das classes populares que terão acesso ao nível superior receberão ensino de qualidade drasticamente inferior; 3) a transformação da universidade em organização de serviços demandados pelo capital, metamorfoseados como inovação tecnológica; 4) a conversão da educação tecnológica em um braço da ação empresarial; e 5) a hipertrofia do controle governamental (produtividade, eficiência e ideológica, reguladas por meio da avaliação) e do mercado (financiamento e utilitarismo) sobre a universidade pública, inviabilizando a autonomia e, principalmente, a liberdade acadêmica (Associação de Docentes da Unicamp - ADUNICAMP, 2005, p. 5).

Nesse processo os trabalhadores da educação e estudantes vivem em péssimas condições de trabalho. Muito pior se encaminhou a educação do campo que não conseguiu avançar para atender as demandas dos trabalhadores, pois nem mesmo as políticas afirmativas conseguem garantir a permanência do estudante com qualidade na educação pública. O máximo que o Ministério da Educação conseguiu realizar foi a criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo por meio da política de editais. Esses cursos iniciados em 2008 foram incorporados pelo Programa Nacional de Educação no Campo - Pronacampo, já no Governo Dilma Rousseff (2012).

No entanto, o que existe somente foi possível de ser visualizado em função da luta dos trabalhadores contra o avanço do capitalismo no campo. Foi a partir de enormes resistências, inclusive contra a criminalização da luta, que os trabalhadores rurais, encontrando aliados nas universidades e em outros movimentos sociais, conseguiram realizar intervenções mais firmes contra a judicialização da luta pela terra e pela educação. Por esses caminhos garantiram alguns avanços na legislação e recursos, ainda que seja por dentro do INCRA e Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, e de forma marginal do Ministério da Educação.

Até então, a única política que foi se construindo com maior consistência porque viabilizava a continuidade dos estudos dos Jovens e Adultos até o curso superior foi o Pronera. Mesmo assim, este Programa atende apenas à população dos assentamentos e não cobre a demanda concreta de todos os assentados. Nos oito anos do Governo Lula (2002-2010), as matrículas nos cursos do Pronera não passavam de 300 mil, segundo relatórios do INCRA e, os indicadores educacionais das escolas do campo apresentaram índices inferiores à educação ofertada na cidade. As escolas mais precárias estão no campo, sem laboratórios, água potável, energia elétrica, material didático adequado à cultura produzida pelos trabalhadores, dentre outros.

Pode-se afirmar que a maior conquista dos trabalhadores, do ponto de vista de marcos legais, foi a aprovação, no apagar das luzes do segundo mandato do Governo, do Decreto de nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Este decreto dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - Pronera. A única política que ainda se fez presente nas áreas de Reforma Agrária com metodologia e currículos específicos que traduzem a história da luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo.

Paralelo à política de fortalecimento do agronegócio no campo, o que provoca cada vez mais a expulsão das famílias, no âmbito da educação, cresce o número de escolas fechadas, criação de escolas nucleadas e deslocamento de crianças e jovens para sede dos municípios para realizar a sua escolarização. O descaso com a educação do campo é o reflexo da relação de exploração das nossas riquezas e dos agricultores. O agronegócio e a instalação de empresas nacionais e transnacionais produzem uma nova organização do trabalho que afasta cada vez mais os agricultores, ribeirinhos, extrativistas, das possibilidades de continuarem reproduzindo sua vida no campo. Portanto, nesta lógica, a educação vai continuar sendo marginalizada e, se depender do Governo, somente se materializa para acomodar as demandas e os povos que seguem em luta.

Cabe observar que durante o Governo Lula da Silva, os trabalhadores da educação seguiram em luta em defesa da educação pública e continuaram organizados para que este tirasse da gaveta a proposta do Plano Nacional de Educação da Sociedade Brasileira. Porém, os congressos e fóruns organizados pela sociedade em torno da luta pela educação pública passaram a ser organizados institucionalmente. Primeiramente, pela Comissão de Educação da Câmara de Deputados (2000-2005) e, posteriormente, deflagrada pelo Ministério da Educação. Uma das mais expressivas Conferências ocorreu em abril de 20105 5 A Conferência Nacional de Educação (CONAE) contou com 3.500 participantes entre delegados, indicados, apoio, imprensa e observadores/convidados/palestrantes. Destes, como delegados para a conferência ficou definida a participação de: 1) 1.000 delegados da educação básica, distribuídos entre os seguintes segmentos: gestores estaduais (16%), trabalhadores da educação básica pública (21%), gestores municipais (16%), gestores da educação básica privada (5%), trabalhadores da educação básica privada (9%), conselheiros estaduais, gestores estaduais e municipais da educação profissional (15%), gestores de estabelecimentos federais da educação profissional (5%), gestores da educação profissional privada (20%), trabalhadores da educação profissional privada (20%), trabalhadores da educação profissional pública (20%), conselheiros estaduais de educação da educação profissional (5%), estudantes (15%); 2) 600 delegados da Educação Superior, distribuídos entre os seguintes segmentos: gestores de instituições federais de educação superior (5%), gestores estaduais e municipais de estabelecimentos de educação superior (5%), gestores da educação privada (10%), trabalhadores da educação superior privada (25%), funcionários técnico-administrativos da educação superior pública (10%), docentes da educação superior pública (10%), estudantes (35%); 3) 266 delegados por setores - indicação nacional - sendo: ministérios da área social (66), órgãos colegiados normativos ou executivos (57), órgãos de fiscalização e controle (6), gestores do MEC (83), parlamentares (54); 4) 547 delegados por setores - indicação estadual - sendo: entidades municipalistas (15), instituições religiosas (3), movimento sindical (54), articulações sociais em defesa da educação (120), comunidade científica (87), instituições de empresários (27), movimentos de afirmação de diversidade (104), órgãos de fiscalização e controle (58) e parlamentares (79). A CONAE contou, ainda, com 291 participantes de apoio (estrutura geral e feira de amostra); 44 participantes da imprensa e 281 participantes como observadores/convidados/palestrantes da educação básica (6%), conselheiros municipais da educação (9%), estudantes (10%) e pais (9%); 5) 400 delegados na Educação Profissional. com o objetivo de se elaborar proposta para o Plano Nacional de Educação - PNE. A Conferência Nacional de Educação (CONAE) contou com 3.500 participantes e dentre professores e estudantes da rede de educação básica e superior, estavam lá um número significativo de comissionados do poder executivo, órgãos de controle, entidades religiosas, empresários e instituições de empresários, representantes das escolas e faculdades privadas, dentre outros. Essa conferência já anunciava que era apenas um espaço de aparente democracia, mas uma porta aberta para os interesses privados deliberarem mais uma vez sobre os destinos da educação brasileira e, foi exatamente o que aconteceu. Após a conferência o Governo conciliatório com a burguesia empresarial elaborou um projeto de lei de Plano Nacional que desrespeitava as deliberações da própria CONAE.

Dentre os pontos de desrespeito está o reforço de um Sistema Nacional de Educação fortalecido por meio da parceria público-privada; a política de educação estruturada por meio de programas que ficarão à mercê da conjuntura e das definições governamentais e dos recursos definidos, inclusive pelo terceiro setor e, neste caso, o sistema "S" retirando o financiamento público para o setor privado. O PNE não fez referência à política de educação do campo e deu ênfase à formação de professores por meio da educação a distância. Por sua vez, depende de um regime de colaboração entre os entes federados onde nenhum deles assume concretamente quanto e em que condições a educação será assegurada como política pública. Por fim, o PNE, encaminhado pelo Governo à Câmara de Deputados, não se pautou por nenhuma base de dados atualizada, portanto, as metas descritas não estão adequadas às reais necessidades educacionais. Esse Plano de Lei n.º 13.005 foi aprovado em 2014 e com ele a concepção do movimento de investidores capitalistas "Todos pela Educação", que propõe uma educação cuja missão é a de

[...] formar recursos humanos de distintos tipos, difundir as "competências" desejadas pelo capital, empreender meios de controle finalísticos por meio de sistemas padronizados de educação que possibilitem rankings, remuneração por desempenho em nome de uma falsa "meritocracia", a distribuição de recursos em conformidade com as metas alcançadas. A feitichização tecnológica e a diversificação das formas e itinerários educativos, distribuídos por classe e frações de classes, em contraponto com a escola unitária (Associação dos Docentes da Universidade do Rio de Janeiro - ADUFRJ, 2014, p. 10).

A concepção de Estado que vivenciamos, quando se fala em Estado Neoliberal, é que "Sua função é tão-somente responder pelo provimento de alguns bens essenciais a exemplo da educação, da defesa e da aplicação das leis." (Azevedo, 2001AZEVEDO, Janete M. Lins de. A Educação como Política Pública. 2. ed. Campinas/SP: Autores Associados, 2001., p. 9). A compreensão da livre competição está presente também quando a questão diz respeito às políticas sociais. Os direitos conquistados pelos trabalhadores, e as formas de proteção aos excluídos do mercado de trabalho, são considerados pelos neoliberais fatores adversos ao livre mercado. Entendem que a intervenção do Estado provoca aos beneficiários certa letargia, uma acomodação e dependência aos subsídios públicos estimulando-os à indolência e permissividade social.

Ao problematizar a relação entre as políticas públicas e o papel do Estado, Azevedo (2001AZEVEDO, Janete M. Lins de. A Educação como Política Pública. 2. ed. Campinas/SP: Autores Associados, 2001.) inicia uma discussão sobre o papel deste e entende que os interesses conflitantes entre os capitais os impedem de reproduzir as condições sociais de reprodução, fato que conduz o mesmo Estado a intervir e objetivar a preservação dos interesses globais no processo de acumulação do capital.

Para Poulantzas (1990POULANTZAS, Nico. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990.), uma das principais funções do Estado junto à classe dominante é a de organizar seus interesses políticos e buscar satisfazer todas as facções da burguesia no poder. Afirma que a burguesia é constituída por diversas facções, que nem sempre todas estão ocupando o poder, logo, há conflito de interesses. Neste caso, o Estado atua exatamente como organizador dos diversos interesses.

O Estado não se reduz a relação de forças, ele apresenta uma capacidade e uma resistência próprias. Uma mudança na relação de forças entre classes certamente tem sempre efeitos no Estado, mas não se expressa de maneira direta e imediata: ela esgota a materialidade de seus diversos aparelhos e só se cristaliza no Estado sob sua forma refratada e diferencial segundo seus aparelhos. Uma mudança de poder do Estado não basta nunca para transformar a materialidade do aparelho de Estado: essa transformação provém, sabemos de uma operação e ação específicas. (Poulantzas, 1990, p. 150).

É a partir das contradições, e dos jogos de interesses dos grupos que estão no poder, que vai se constituindo a sede do poder. "É o jogo dessas contradições na materialidade do Estado que torna possível, por mais paradoxal que possa parecer, a função de organização do Estado." (Poulantzas, 1990POULANTZAS, Nico. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990., p. 153). No entanto, quando a educação é chamada a uma função de mera reprodução ideológica da estrutura desse poder, é muito mais difícil de alterar por dentro o Estado capitalista, centralizador e autoritário. Por isso que a educação do campo, pelos seus princípios e metodologias participativas, não consegue passar de programas à margem do sistema educacional.

Para essa complexa configuração há algumas características que facilitam nossa compreensão, que em seu texto Poulantzas (1990POULANTZAS, Nico. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990., p. 154) destaca em cinco pontos, a saber:

1. Um mecanismo de seletividade estrutural da informação dada por um aparelho e de medidas tomadas, pelos outros; 2. Um trabalho contraditório de decisões, mas também de não-decisões por parte dos setores e segmentos de Estado; 3. Uma determinação presente na ossatura organizacional de tal ou qual aparelho ou setor do Estado segundo sua materialidade própria e tais ou quais interesses que eles representam, prioridades mas também contra prioridades; 4. Uma filtragem escalonada por cada ramo e aparelho, no processo de tomada de decisões e; 5. Um conjunto de medidas pontuais, conflituais e compensatórias face aos problemas do momento.

É possível enxergar a educação do campo no Brasil como política de Estado presente em várias das estratégias acima apresentadas, especificamente, no que diz respeito às prioridades e contraprioridades, de tomada de decisões e de não decisões, e das medidas pontuais e compensatórias. Os programas existentes são: no âmbito do INCRA/Ministério do Desenvolvimento Agrário (Pronera) e do Ministério da Educação (Procampo), este último criado em 2009 com o objetivo de apoiar a implementação de cursos superiores de Licenciatura em Educação do Campo. No entanto, dentro da reestruturação da universidade o Procampo continuará com uma política discriminada, pois os cursos não se implementam em meio a um sistema articulado que garanta o acesso dos que estão no campo, principalmente os professores que já atuam nas redes públicas. O Procampo foi instituído por meio de editais anuais com a determinação de vagas para docentes e técnicos, mas com exigência desproporcional entre o número de vagas e de docentes, tendo em vista que os editais obrigam a abertura de mais de cem estudantes para 15 professores6 6 Os editais anuais do Procampo exigem que cada universidade proponente proponha a abertura de no mínimo 120 vagas por ano com apenas concurso para 15 docentes e uma única vez. A Universidade em seguida amplia o número de estudantes sem garantia de docentes para dar continuidade ao curso e ainda impõe um tempo de formação de três anos, inferior às demais licenciaturas regulares e presenciais das universidades públicas. Os recursos são condicionados ao orçamento do Ministério da Educação - MEC, portanto, não se constitui em uma política pública permanente de formação. MEC. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=17439&amp;Itemid=817>. Acesso em: 14 nov. 2014. .

A aprovação e publicação de um corpo normativo como diretrizes, decretos e portarias, deliberando sobre a organização, estrutura e funcionamento da Educação do Campo, que se contradiz com a falta de garantia de assessoramento, de apoio, e de orientação aos entes federados, se configuram como exemplos de contraprioridades. Ao mesmo tempo, os cursos financiados pelos Pronera e pelo próprio Pronacampo, quando institucionalizados em espaços como escolas profissionais e universidades, não permitem a autonomia financeira e política, portanto, também comprometem a autonomia pedagógica e acabam por provocarem alterações na base da estrutura desses cursos construídos pela força dos movimentos sociais. Um dos estudos realizados sobre a Licenciatura em Educação do Campo aponta uma crítica do que ocorre no processo de institucionalização.

São as contradições próprias da natureza da institucionalidade que conhecemos e com a qual nos defrontamos cotidianamente. É comum que ações desenvolvidas com o forte protagonismo social, uma vez institucionalizadas, percam seu componente crítico, e sejam capturadas pelo modelo padrão, perdendo também os seus elementos de disputa contra-hegemônica. Isto tudo ainda potencializado por uma certa tendência de eliminação dos movimentos sociais do campo como sujeitos, atores dos processos, no presente modelo hegemônico de gestão pública. É como se fossem importantes na proposição, na apresentação da demanda, mas considerados incapazes de oferecer algum tipo de contribuição "da porta de dentro" às instituições (Santos, 2012, p. 146).

O Estado, entretanto, não está reduzido ao seu papel de unificador da classe dominante. Ele congrega também a classe dominada, seja para manter a ordem estabelecida, seja para garantir a hegemonia ao grupo dominante no poder. As lutas populares também compõem a ossatura do Estado, "[...] os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemonia ao estabelecer um jogo de compromissos provisórios entre o bloco no poder e determinadas classes dominadas" (Poulantzas, 1990POULANTZAS, Nico. O estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1990., p. 161). Por essa razão, o Governo Lula da Silva, mesmo contando em seus mandatos com apoio de diversos movimentos sociais, não conseguiu explicar à sociedade a negação dos direitos públicos que deveria ser a função do Estado.

Por isso, Santos (2012SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do Campo e políticas públicas no Brasil: o protagonismo dos movimentos sociais do campo na instituição de políticas públicas e a Licenciatura em Educação do Campo na UnB. Brasília: Liber Livro, 2012. ) também analisa a luta dos trabalhadores do campo na disputa pelos recursos, por projetos, por leis e normas para que estas possam estar a serviço da classe trabalhadora, afirmando que,

[...] Não há ilusão de parte destes sujeitos, em relação a que a classe trabalhadora cabe a tarefa de, por todos os meios, destruir o estado capitalista e instaurar a nova ordem. Não há ilusão, neste processo, de que pela sua atuação na perspectiva de ampliar direitos possa provocar as rupturas requeridas. O que há é a consciência histórica do que deve ser feito, em cada momento, atuando no conjuntural como parte de uma totalidade (Santos, 2012, p. 147).

Na luta pelo direito à educação pública no/do campo, os trabalhadores seguem para cunhar a sua necessidade nos marcos legais. No entanto, os limites do sistema capitalista para atender tais interesses podem pressionar a população para abrir outras frentes de luta contra o próprio sistema. Eis um grande desafio para os próximos anos.

Caminhos a serem trilhados: há muitas cercas para serem derrubadas

Mas para de fato ampliar direitos, é necessária a análise crítica de como os Governos FHC e Lula da Silva produziram políticas e discursos para manter a hegemonia do capital e discutir com os movimentos sociais do campo sobre a materialidade da formação escolar e superior com currículos que possam garantir a ampliação da consciência política sobre a realidade. Neste sentido, não se pode abrir mão da organização dos trabalhadores para continuar a luta contínua pelo direito à terra, ao trabalho e à educação. Este é o grande desafio que somente se conquista se estes movimentos estiverem não somente organizados, mas unificados em torno da resolução dos problemas indo até à sua raiz.

No momento de escrita deste artigo, o Plano Nacional de Educação (2014-2024) aprovado, mesmo sem resistência dos trabalhadores rurais, continua sendo questionado por docentes e estudantes das universidades; O Encontro Nacional de Educação - ENE realizado em 2014 com apoio do Sindicato Nacional dos Docentes - ANDES, na cidade do Rio de Janeiro, também mostra que a luta pelo direito à educação fora dos marcos do capital continuará forte e a tendência nos próximos anos é de se ampliar a unificação das mesmas entre trabalhadores da cidade e do campo. Pesquisas realizadas no âmbito da pós-graduação apontam a necessidade da continuidade do Pronera e a implementação de política pública de educação do campo, conforme aponta Santos (2012SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do Campo e políticas públicas no Brasil: o protagonismo dos movimentos sociais do campo na instituição de políticas públicas e a Licenciatura em Educação do Campo na UnB. Brasília: Liber Livro, 2012. ). No entanto, essa política deve estar vinculada diretamente à luta pela Reforma Agrária. O agronegócio necessita ser combatido com todas as forças pela classe trabalhadora.

Nesse sentido, a educação do campo é estratégica para ampliar a consciência e para reinventar o trabalho no campo porque ela alimenta a defesa da redistribuição da terra, do acesso às águas e às florestas, assim como a distribuição de renda para todo o país e a luta contra o projeto de desenvolvimento econômico capitalista. Que os trabalhadores em luta possam cada vez mais plantar sementes de esperança em tempos de desesperança e desilusões.

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  • SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do Campo e políticas públicas no Brasil: o protagonismo dos movimentos sociais do campo na instituição de políticas públicas e a Licenciatura em Educação do Campo na UnB. Brasília: Liber Livro, 2012.
  • 1
    A educação tem sido um negócio que concentra renda de investidores internacionais tanto na educação básica quanto superior. Esta última com maior vantagem. Em 2012 somente os grupos Kroton Educacional e Anhanguera Educacional, ao se fundirem, somaram mais de 11 bilhões de reais. Mercado altamente lucrativo. (Guilherme, 2013).
  • 2
    Segundo censo agropecuário de 1996 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, pode se verificar a concentração de terra. As propriedades com área superior a mil hectares representavam 1% do total dos imóveis e detinham 45% da área total.
  • 3
    Ministério da Agricultura. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/>. Acesso em: 14 ago. 2014.
  • 4
    Balança Comercial do Agronegócio Brasileiro (2002-2013). Disponível em: <http://www.brasilglobalnet.gov.br/ARQUIVOS/IndicadoresEconomicos/agronegocioBrasileiro.pdf>. Acesso em: 13/07/2014.
  • 5
    A Conferência Nacional de Educação (CONAE) contou com 3.500 participantes entre delegados, indicados, apoio, imprensa e observadores/convidados/palestrantes. Destes, como delegados para a conferência ficou definida a participação de: 1) 1.000 delegados da educação básica, distribuídos entre os seguintes segmentos: gestores estaduais (16%), trabalhadores da educação básica pública (21%), gestores municipais (16%), gestores da educação básica privada (5%), trabalhadores da educação básica privada (9%), conselheiros estaduais, gestores estaduais e municipais da educação profissional (15%), gestores de estabelecimentos federais da educação profissional (5%), gestores da educação profissional privada (20%), trabalhadores da educação profissional privada (20%), trabalhadores da educação profissional pública (20%), conselheiros estaduais de educação da educação profissional (5%), estudantes (15%); 2) 600 delegados da Educação Superior, distribuídos entre os seguintes segmentos: gestores de instituições federais de educação superior (5%), gestores estaduais e municipais de estabelecimentos de educação superior (5%), gestores da educação privada (10%), trabalhadores da educação superior privada (25%), funcionários técnico-administrativos da educação superior pública (10%), docentes da educação superior pública (10%), estudantes (35%); 3) 266 delegados por setores - indicação nacional - sendo: ministérios da área social (66), órgãos colegiados normativos ou executivos (57), órgãos de fiscalização e controle (6), gestores do MEC (83), parlamentares (54); 4) 547 delegados por setores - indicação estadual - sendo: entidades municipalistas (15), instituições religiosas (3), movimento sindical (54), articulações sociais em defesa da educação (120), comunidade científica (87), instituições de empresários (27), movimentos de afirmação de diversidade (104), órgãos de fiscalização e controle (58) e parlamentares (79). A CONAE contou, ainda, com 291 participantes de apoio (estrutura geral e feira de amostra); 44 participantes da imprensa e 281 participantes como observadores/convidados/palestrantes da educação básica (6%), conselheiros municipais da educação (9%), estudantes (10%) e pais (9%); 5) 400 delegados na Educação Profissional.
  • 6
    Os editais anuais do Procampo exigem que cada universidade proponente proponha a abertura de no mínimo 120 vagas por ano com apenas concurso para 15 docentes e uma única vez. A Universidade em seguida amplia o número de estudantes sem garantia de docentes para dar continuidade ao curso e ainda impõe um tempo de formação de três anos, inferior às demais licenciaturas regulares e presenciais das universidades públicas. Os recursos são condicionados ao orçamento do Ministério da Educação - MEC, portanto, não se constitui em uma política pública permanente de formação. MEC. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=17439&amp;Itemid=817>. Acesso em: 14 nov. 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2015
  • Aceito
    06 Mar 2015
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