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A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS COMO REFERENCIAL TEÓRICO PARA A PESQUISA EM ENFERMAGEM PSIQUIÁTRICA E EM SAÚDE MENTAL1 1 Artigo resultante da tese - Saúde mental e acesso à justiça na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, apresentada ao Programa de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP), em 2015

LA SOCIOLOGÍA DE LAS AUSENCIAS COMO REFERENCIAL TEÓRICO PARA LA INVESTIGACIÓN EN ENFERMERÍA PSIQUIÁTRICA Y EN SALUD MENTAL

RESUMO

Objetivo:

analisar possíveis contribuições do referencial teórico da Sociologia das Ausências, especificamente, da Ecologia de Saberes, para a construção de conhecimentos na área de enfermagem psiquiátrica e em saúde mental.

Método:

trata-se de um estudo qualitativo com análise de conteúdo, especificamente, a análise temática. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com pessoas com transtornos mentais ou em sofrimento mental e/ou com seus familiares, usuárias do serviço da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em regionais do Interior e da Região Metropolitana. No total, foram sete entrevistas realizadas tendo a participação de nove usuários do serviço.

Resultados:

a análise de dados foi organizada em três blocos temáticos: 1) condições de existência das pessoas que recorrem à Defensoria Pública do Estado de São Paulo com demanda de saúde mental; 2) Trajetória de busca por acesso aos direitos; e 3) A busca por acesso à Justiça na Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Identifica-se, no relato dos trabalhos desenvolvidos descritos pela demanda de saúde mental, que a instituição procura desenvolver uma escuta qualificada, possibilitando reconhecer as diferentes formas de existências e de necessidades de uma parcela da população tradicionalmente invisibilizada socialmente; o usuário do serviço com demanda de saúde mental e sujeito de direito.

Conclusão:

os resultados possibilitam identificar que o referencial teórico proposto pela Sociologia das Ausências pode ser considerado como alternativa promissora para ampliar as discussões teórico-metodológicas àqueles que buscam maior compreensão de existência, cuidados e direitos das pessoas com transtornos mentais ou com sofrimento psíquico.

DESCRITORES:
Saúde mental; Transtornos mentais; Direito à saúde; Direitos humanos; Serviços de saúde mental

RESUMEN

Objetivo:

analizar posibles contribuciones del referencial teórico de la Sociología de las Ausencias, específicamente, de la Ecología de Saberes, para la construcción de conocimientos en el área de enfermería psiquiátrica y en salud mental.

Método:

se trata de un estudio cualitativo con análisis de contenido, específicamente, el análisis temático. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con personas con trastornos mentales o en sufrimiento mental y / o con sus familiares, usuarias del servicio de la Defensoría Pública del Estado de São Paulo en regionales del Interior y de la Región Metropolitana. En total, fueron siete entrevistas realizadas con la participación de nueve usuarios del servicio.

Resultados:

el análisis de datos fue organizado en tres bloques temáticos: 1) condiciones de existencia de las personas que recurren a la Defensoría Pública del Estado de São Paulo con demanda de salud mental; 2) Trayectoria de búsqueda por acceso a los derechos; y 3) la búsqueda de acceso a la justicia en la Defensoría del Estado de São Paulo. Se identifica, en el relato de los trabajos desarrollados descritos por la demanda de salud mental, que la institución busca desarrollar una escucha cualificada, posibilitando reconocer las diferentes formas de existencias y necesidades de una parte de la población tradicionalmente invisibilizada socialmente; el usuario del servicio con demanda de salud mental y sujeto de derecho.

Conclusión:

los resultados posibilitan identificar que el referencial teórico propuesto por la Sociología de las Ausencias puede ser considerado como una alternativa prometedora para ampliar las discusiones teórico-metodológicas a aquellos que buscan mayor comprensión de existencia, cuidados y derechos de las personas con trastornos mentales o con sufrimiento psíquico.

DESCRIPTORES:
Salud mental; Trastornos mentales; Derecho a la salud; Derechos humanos; Servicios de salud mental

ABSTRACT

Objective:

to analyze possible contributions of the theoretical reference of the Sociology of Absences; specifically, the Ecology of Knowledge, for the construction of knowledge in the field of psychiatric nursing and mental health.

Method:

qualitative study with thematic content analysis. Semi-structured interviews were conducted with people with mental disorders or in mental suffering, and/or their family members, who are users of the Public Defender’s Office service of the State of São Paulo in several offices throughout the state. Seven interviews were conducted with nine users of the service.

Results:

the data analysis was organized into three thematic categories: 1) conditions of existence of people who resort to the Public Defender’s Office of the State of São Paulo with mental health claim; 2) Pursuit for access to rights; and 3) Pursuit for access to justice in the Public Defender’s Office of the State of São Paulo. It is possible to identify, in the collected statements regarding mental health claims, that the institution seeks to develop a qualified listening, which allows recognizing the different conditions of existence and needs of a portion of the population that is traditionally invisible for the society: the user with a mental health claim who is a subject of rights.

Conclusion:

the results make it possible to identify that the theoretical reference proposed by the Sociology of Absences can be considered as a promising alternative to broaden the theoretical-methodological discussions to those who seek for greater acknowledgment of existence and for greater care and rights for the people with mental disorders or in psychic suffering.

DESCRIPTORS:
Mental health; Mental disorders; Right to health; Human rights; Mental health services

INTRODUÇÃO

Uma análise crítica da temática de sofrimento mental possibilita identificar a importância de se explorar possibilidades teóricas e metodológicas que instrumentalizem a atuação em enfermagem. 11 Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta AMF. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4ª ed. São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016. Nessa perspectiva, o leitor é provocado a refletir sobre as doenças mentais como aquelas em que a morbidade não se tem modificado no curso dos tempos: “as práticas terapêuticas que nos últimos cem anos derivam dos modelos da clínica são altamente insatisfatórias”.11 Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta AMF. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4ª ed. São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016.:193

Embora reconhecendo que modelos clínicos tenham beneficiado pacientes, ressalta-se que isso não ocorreu de maneira notável, colocando a clínica em questão e fazendo surgir assim uma prática paralela ao modelo clínico, que permanece à espera de uma teoria, a Reabilitação Psicossocial.11 Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta AMF. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4ª ed. São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016. Entretanto, pensar em práticas que permaneçam sem teorias ameaça a Reabilitação Psicossocial a vir a se apoiar em alguma ideologia. “A ideologia de capacitar os descapacitados a tomarem partido numa sociedade forte e, então, pensar a Reabilitação Psicossocial como um processo de fortalecimento de fraquezas, ou ideologias populistas que pensam que os fracos devem ser apoiados, pois a sociedade, muito má, os condenou à marginalidade, que é ranço de uma retórica reabilitativo-populista muito perigosa e ideológica. Isso tudo para evitar a condição angustiante de não termos uma teoria suficientemente forte que formalize, justifique uma prática que é muito mais avançada que a teoria”.11 Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta AMF. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4ª ed. São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016.:195 Imprescindível se faz um modelo de referência que seja construído com a devida cautela para que não se retome, por pressa, gerada pela angústia de não tê-lo, a antiga clínica como modelo, ou se retome uma referência ideológica que justifique a prática.11 Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma prática à espera de teoria. In: Pitta AMF. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 4ª ed. São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016.

No Brasil, as principais mudanças nas políticas de saúde mental ocorreram enfrentando-se impasses, que se estabeleceram num processo ousado de transição paradigmática: “olhar para o sofrimento psíquico para além dos diagnósticos que nos afastam da vida concreta do sujeito com sua singularidade, seus vínculos, seu lugar e seu tempo. Resgatar a vida com seus percalços, paradoxos, impasses, mas também como possibilidades, potenciais de laços e encontros, invenção de modos diferentes de ir em frente. Tomar como tarefa ver e ouvir ‘A vida como ela é’ vai muito mais além de aprender uma nova técnica [...]. Surge aqui a dimensão ética, estética e política de nosso fazer quotidiano, [...] que apontam para a indissociabilidade entre clínica e política, gestão e cuidado”.22 Yasui S. Ira, amor, resistência e invenção: reflexões sobre o legado da Reforma Psiquiátrica. In: Fernandes JA, Campo GWS, organizadores. Reconhecer o patrimônio da Reforma Psiquiátrica: o que queremos reformar hoje? São Paulo (SP): Editora Hucitec; 2016.:20-1

“As transformações de conceitos na área da saúde mental impulsionadas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica possibilitam novas formas de conceber o processo saúde-doença mental, de tratamento e postura ético-profissional no cuidado à pessoa com transtorno mental, sob a perspectiva psicossocial, que se mostra como um dos desafios na formação de profissionais com competência para a prática em saúde mental neste contexto”.33 Villela JC, Maftum MA, Paes MR. The teaching of mental health in a nursing undergraduate course: a case study. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Dec [cited 2017 Feb 23]; 22(2):397-6. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000200016
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
:398 Tais preocupações se fazem presentes entre pesquisadores voltados para o ensino de saúde mental, sobretudo para graduandos de enfermagem. Estudo demonstra a existência de dificuldades em adequar o conteúdo teórico-prático à realidade assistencial ressaltando os resquícios manicomiais na concepção dos profissionais de saúde mental e as dificuldades de articulação no trabalho multiprofissional.33 Villela JC, Maftum MA, Paes MR. The teaching of mental health in a nursing undergraduate course: a case study. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 Dec [cited 2017 Feb 23]; 22(2):397-6. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072013000200016
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Se por um lado avolumam-se as críticas ao modelo clínico e diagnóstico quando o assunto em pauta refere-se à transição paradigmática que valorize as dimensões psicossociais e a reabilitação, por outro, tal posicionamento também é alvo de diversas críticas pela variedade de práticas que geram um estado confusional da saúde mental brasileira.44 Gava CAG, Becker P. A reabilitação psicossocial e o empreendedorismo solidário: experiência de Rio Claro - SP. In: Fernandes JA, Campo GWS, organizadores. Reconhecer o patrimônio da Reforma Psiquiátrica: o que queremos reformar hoje? 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2016. Dentre as críticas recorrentes, destacam-se: 1) “a existência no Brasil de uma ‘miscelânia de conceitos’, tentativas de reprodução fragmentada de experiências internacionais, estruturadas em diferentes contextos socioculturais”;44 Gava CAG, Becker P. A reabilitação psicossocial e o empreendedorismo solidário: experiência de Rio Claro - SP. In: Fernandes JA, Campo GWS, organizadores. Reconhecer o patrimônio da Reforma Psiquiátrica: o que queremos reformar hoje? 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2016.:962 “práticas pautadas em espaços de ‘entretenimento’ e ‘recreação’, trabalhos repetitivos e esvaziados de sentidos”.44 Gava CAG, Becker P. A reabilitação psicossocial e o empreendedorismo solidário: experiência de Rio Claro - SP. In: Fernandes JA, Campo GWS, organizadores. Reconhecer o patrimônio da Reforma Psiquiátrica: o que queremos reformar hoje? 1ª ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2016.:99

Apesar do reconhecimento de que são muitas as críticas direcionadas, também, ao trabalho de Reabilitação Psicossocial no Brasil, deve ser ressaltado que a mudança paradigmática de um modelo hospitalocêntrico para a proposta psicossocial encontra-se nos fundamentos da atual legislação brasileira da saúde mental e, consequentemente, da política nacional. Nesse sentido, se faz imperativo pensar possibilidades, estratégias, metodologias e teorias que provoquem reflexões para promover o rompimento do tradicional isolamento social das pessoas em sofrimento e, também, do paradigma assistencial em saúde mental. Estratégias essas que possam atuar no desenvolvimento da autonomia pessoal e coletiva, que estimulem práticas emancipatórias.

O interesse por metodologias que contribuam para ampliar o conhecimento sobre pessoas com transtorno mental ou em sofrimento mental encontra na reflexão epistemológica da sociologia das ausências uma possibilidade ao mesmo tempo atraente e desafiadora, que nos remete a pensar em pessoas que carregam ‘não existências’ e experiências de vida ‘do outro lado da linha’, na metáfora colonial proposta. Nessa perspectiva, as colônias representam um modelo de exclusão que permanece nos pensamentos e nas práticas modernas ocidentais, como aconteceu no ciclo colonial.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).

7 Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010.

8 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo (SP): Cortez; 2010.
-99 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo (SP): Cortez; 2010.

As teorias sociológicas e antropológicas criadas em quatro ou cinco países do Atlântico Norte, no século XIX, foram consideradas universais. Consequentemente, ampla experiência do mundo teria sido desconsiderada, principalmente as das colônias, por não fazerem parte do imaginário europeu e eurocêntrico como alternativas viáveis, credíveis às consciências dos países do Norte.1010 Santos BS. Conhecimento e transformação social: para uma ecologia dos saberes. Rev Estud Amazônicos. 2007; 7(1):175-89. Ao se considerar a experiência dos oprimidos/excluídos como ponto de partida da concepção de conhecimento identifica-se a proposta de uma ‘racionalidade cosmopolita’ de expandir o presente e contrair o futuro, criando espaço-tempo para ampliar o conhecimento e valorizar a experiência social, evitando o desperdício da experiência.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4). Assim vai se delineando a Sociologia das Ausências. São descritas cinco lógicas ou modos de produção de não existência: 1) “a ‘monocultura do saber e do rigor do saber’, em que a não existência assume a forma de ignorância ou de incultura; 2) a ‘monocultura do tempo linear’, em que a não existência assume a forma de residualização - selvagem, tradicional, obsoleto, subdesenvolvido; 3) a ‘monocultura da naturalização das diferenças’, em que a não existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural; 4) a ‘lógica da escala dominante’, em que a não existência é produzida sob a forma do particular e do local e 5) a ‘lógica de não existência produtivista’, em que a não existência é produzida sobre forma de improdutiva (esterilidade, desqualificação)”.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).:102-4 Para cada uma das cinco formas de produção de não existência (reconhecidamente formas de monoculturas), são propostas ecologias, entendendo-se “por ecologias a prática de agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas”.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).:105

O presente estudo se restringirá a análise da proposta da Ecologia dos Saberes, em substituição a uma monocultura do saber e do rigor científico. A ideia central neste domínio é a de que não há ignorância em geral nem saber em geral, toda a ignorância é considerada ignorante de certo saber e todo o saber é a superação de uma ignorância particular. “Essa ecologia parte do pressuposto de que todas as práticas relacionais entre seres humanos implicam mais do que uma forma de saber e, portanto, de ignorância. É no princípio da incompletude de todos os saberes que se encontra a condição de diálogo e debates epistemológicos entre diferentes formas de conhecimento”.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).:107 Uma das contribuições da Ecologia dos Saberes é a de permitir superar a monocultura do saber científico e, também, a ideia de que os saberes não científicos têm uma conotação de subalternidade. Visa criar nova forma de relacionamento entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento, concedendo igualdade de oportunidades às diferentes formas de saber envolvidas em disputas epistemológicas. O presente estudo apresenta como objetivo analisar possíveis contribuições do referencial teórico da Sociologia das Ausências, especificamente, da Ecologia de Saberes, para a construção de conhecimentos na área de enfermagem psiquiátrica e em saúde mental.

MÉTODO

Trata-se de estudo qualitativo com análise temática e com fundamentação teórica nas Sociologias das Ausências. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com usuários do serviço da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP). A opção pela DPESP para a realização do estudo teve como principais fatores motivadores: a) trata-se de uma instituição pautada em princípios democráticos e previsão de espaços institucionais bem definidos para a participação social, coerentes com os valores preconizados pela legislação e política atual de saúde mental em vigor no Brasil; b) o fato de ser uma instituição do Sistema de Justiça que tem por missão a defesa e a garantia de direitos das pessoas que vivem em maior vulnerabilidade social; e c) possuir uma proposta institucional de atendimento da população que insere atuação interdisciplinar, considerada fundamental para a abordagem de temas relacionados à saúde (mental).

Considerando os objetivos propostos e o referencial teórico selecionado - cuja ênfase recai na valorização de diferentes saberes -, entende-se que a abordagem qualitativa e seu comprometimento com o caráter interativo do processo de produção de conhecimento se apresentam metodologicamente congruentes. A perspectiva qualitativa possibilita o reconhecimento da dinâmica constante no processo de construção do conhecimento. O pesquisador reconhece que o processo de pesquisa, desde o momento de sua concepção até seu término, é uma interação dialética contínua - análise, crítica, reiteração, reanálise e assim por diante, levando a uma construção articulada do objeto de estudo.1111 Moreira H, Caleffe LG. Metodologia da pesquisa para o professor universitário. Rio de Janeiro (RJ): DP&A; 2006.

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e aprovado com o Protocolo CAAE 16965813.0.0000.5393.

Foram realizadas sete entrevistas com a participação de nove usuários selecionados, respeitando os seguintes critérios: a) ser familiar (ou representante legal) de pessoas com demanda de saúde mental ou ser pessoa com demanda de saúde mental, com idade igual ou superior a 18 anos, e que tenha preservada a responsabilidade legal por seus atos e buscado espontaneamente o serviço; b) ser indicado pelos responsáveis pelo atendimento interdisciplinar da DPESP; e c) ser usuário do serviço da DPESP pertencente à Unidade da Região Metropolitana ou do Interior do estado de São Paulo. As entrevistas foram realizadas nos prédios da DPESP, em salas autorizadas pelos responsáveis locais, e que possibilitaram condições adequadas para garantir a privacidade e preservação das informações. A condução das entrevistas teve como referência roteiro elaborado pela pesquisadora (um roteiro elaborado para a pessoa com demanda de saúde mental que buscava o atendimento espontaneamente, e outro roteiro elaborado para familiares que buscavam atendimento para membro da família com demanda de saúde mental), e com duração aproximada de 1 hora.

A análise das entrevistas seguiu a proposta de Análise de Conteúdo, que se caracteriza por partir “de uma literatura de primeiro plano para atingir um nível aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos”.1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec; 2004.:103 Dentre as diferentes possibilidades de análise de conteúdo, optou-se pela utilização da Análise Temática, que consiste em identificar e interpretar os núcleos de sentido que compõem o material.1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec; 2004.-1313 Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Coletiva. 2012; 17(3):621-6. O procedimento de análise caracterizou-se pela: 1) realização da transcrição das entrevistas; 2) leitura com análise aprofundada dos dados, a partir do material coletado e 3) análise final (em que as duas etapas anteriores fazem uma inflexão sobre o material empírico), um movimento interpretativo e dialético (teórico e empírico), em busca de significado.1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec; 2004. A análise foi realizada por meio de procedimentos sistemáticos e os dados organizados e classificados buscando as especificidades e o significado com ênfase nas perspectivas dos participantes, nas diferentes formas como diferentes pessoas dão sentido às suas vidas. Apreendendo as perspectivas dos participantes, aprofundando sobre a dinâmica interna das situações, dos fatos e as suas experiências, o investigador constrói o significado. 1414 Bogdan R, Biklen S. Investigação qualitativa em educação. Porto (PT): Editora Porto; 1994.-1515 Pope C, Mays N. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. 3ª ed. Porto Alegre (RS): Artmed; 2009. A partir da transcrição das entrevistas, foi possível sistematizar os resultados procurando a valorização dos aspectos mais relevantes de cada entrevista. Terminada a estruturação, foram identificados os temas emergentes, nomeadas e organizadas as categorias e subcategorias sistematizadas a seguir.

Quadro 1
Temas identificados e suas respectivas categorias e subcategorias

RESULTADOS

Os participantes

As entrevistas com os usuários do serviço efetivaram-se com pessoas que recorreram ao serviço para si ou para familiares. Sete entrevistas foram realizadas, sendo que em uma delas compareceram duas pessoas que tinham demandas pessoais de saúde mental (mãe e filha); em outra, estiveram presentes dois familiares da pessoa que apresentava a demanda (filho e sobrinha) e em uma terceira entrevista, o participante buscou o serviço para dois familiares (dois filhos). Nas outras quatro, uma pessoa foi entrevistada para cada caso de demanda. Em síntese, foram identificadas nove pessoas com demanda de saúde mental. Dentre elas: cinco são mulheres e quatro homens; cinco são provenientes da Região Metropolitana do Estado e quatro do Interior; duas são casadas, duas separadas e cinco solteiras; duas pessoas declararam a profissão (pintor e confeiteiro) e as demais não; uma pessoa encontra-se presa, três apresentam histórico de viver em situação de rua; uma estava internada; uma reside em pensão; uma mora sozinha e duas com a família. A idade dessas pessoas variou de 25 a 68 anos: 25, 29, 31, 38, 40 (2), 41, 52 e 68. Das nove pessoas com demanda de saúde mental, três buscaram o serviço espontaneamente e seis recorreram ao serviço por demanda de familiar.

As condições de existência das pessoas que recorrem à Defensoria Pública do Estado de São Paulo com demanda de saúde mental

Foram consideradas como demanda de saúde mental as pessoas com transtornos mentais e, também, aquelas com sofrimento mental que não necessariamente apresentavam tais transtornos, porém relatavam histórias de vida de violência e de intensos conflitos emocionais. A análise dos dados permitiu observar três temas centrais que emergiram das referências dos usuários do serviço e se entrelaçavam reiteradamente: doença mental, uso abusivo de drogas e violência. Tais temas foram sistematizados de modo a descrever formas de existência: A existência diagnosticada, A existência violentada e A existência compulsória.

A existência diagnosticada

A temática da doença mental, com referência aos diagnósticos e às nomenclaturas médicas, se mistura ao longo de diversas definições apresentadas pelos participantes, evidenciando diferentes esforços em busca de compreensão das definições sobre si ou o entendimento sobre os familiares. Identifica-se a presença de comentários sobre tratamentos e diagnósticos, tanto como informações vagas e distantes do repertório dos usuários do serviço (Existência incompreensível), quanto demonstrando certa apropriação e reprodução do linguajar técnico da psiquiatria (Existência rotulada).

A existência violentada

Assinala-se a presença constante de violência nos relatos. A ênfase recai em situações em que a pessoa que apresenta demanda de saúde mental é descrita como tendo comportamentos violentos contra familiares em ambientes domésticos, violência física e psicológica (Existência na condição de agressor doméstico). Relatos de manifestações violentas nas quais as pessoas com demandas de saúde mental vivenciam a condição de vítimas em ambiente doméstico (Existência na condição de vítima de violência doméstica). Referências nas quais foram evidenciadas hostilidade e violência em situação de rua, em que pessoas com demandas de saúde mental estavam em condição de vítimas (Existência na condição de vítima de violência em situação de rua).

A existência compulsória

A demanda de saúde mental relacionada ao uso abusivo de drogas (Existência dependente) emerge na verbalização dos familiares, tendo em vista que não se constatou, nessa situação, casos de busca espontânea pelo serviço. Entretanto, foram mencionadas circunstâncias em que os filhos explicitam a necessidade de intervenção dos pais para tratamento, por admitirem o risco de não sobrevivência ou insanidade. Ficam evidenciados aspectos de vulnerabilidade e de riscos para os usuários, envolvimento em atos de vandalismo e infrações, situação de abandono da casa dos pais e recusa de tratamento ambulatorial. Há casos em que a demanda de uso abusivo de drogas coexiste com outros quadros de transtornos mentais.

Foram reconhecidas situações em que o consumo abusivo ameaçava as condições de existência; riscos de suicídio; falta de cuidados pessoais e nutricionais; situações de riscos por envolvimento em brigas; vulnerabilidade em situação de rua e de exposição em área rural (Existência ameaçada). Referências a diferentes instituições e/ou autoridades acionadas para tutelar a existência das pessoas intercedendo diante das demandas de saúde mental (Existência tutelada).

A trajetória de busca por acesso aos direitos

Serão o foco da presente análise as referências expressas pelos usuários relacionadas às buscas por serviços, as quais foram consideradas como alternativas encontradas por eles em suas trajetórias para terem acesso aos cuidados com a saúde. Tais temas foram agrupados em internações, serviços extra-hospitalares encontrados na rede de saúde, mais especificamente no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e críticas às clínicas conveniadas ao SUS e à gestão de saúde mental.

Trajetórias de internações: impotência e impactos

Ao abordarem o tema das internações, fica patente o papel ativo, sofrido e ambivalente do familiar na busca pela internação da pessoa com demanda de saúde mental; a presença do SAMU e da polícia em face de dificuldade da família para efetivar a internação; a impotência da pessoa internada diante da decisão do familiar e da conduta dos profissionais da instituição que a recebe.

Trajetória em serviços extra-hospitalares: o princípio de diálogos

Ao serem observadas as referências aos serviços extra-hospitalares constata-se a presença de diferentes profissionais da saúde e possibilidade de maior abertura de diálogo entre usuário do serviço e profissionais. Contudo, embora a relação com o profissional possa se instaurar de modo mais dialógico e com maior aceitação do tratamento por parte da pessoa que busca o serviço com demandas de saúde mental (quando comparado às referências apresentadas nas trajetórias de internações), tal aceitação não repercute na adesão ao tratamento medicamentoso. A presença de um exercício dialógico também é identificada em referência à convivência comunitária, à troca de experiência entre os moradores de um mesmo bairro sobre as temáticas da saúde mental e em iniciativa de instituição de ensino para conversar sobre as experiências das pessoas com tais demandas.

A trajetória no Centro de Atenção Psicossocial

A trajetória no CAPS surge com diferentes enfoques. Em alguns locais, os apontamentos são relativos à ausência do serviço. Nos locais em que o Centro se faz presente, os participantes demonstraram frequentar e conhecer como se estabelece a rotina dos trabalhos e da equipe. Embora reconheçam a importância do CAPS para a mudança de proposta de atendimento, evitando as internações prolongadas e introduzindo diferentes profissionais para um acompanhamento mais próximo da realidade e das necessidades das pessoas, avaliações clínicas e trabalhos multidisciplinares, não são poucas as críticas aos serviços. São frequentes as alusões ao abandono do serviço por parte da pessoa com transtornos mentais e a baixa adesão ao tratamento medicamentoso, assim como a dificuldade da pessoa com transtorno mental de cumprir horário e comparecer no serviço para as atividades programadas. Diante da descontinuidade do tratamento medicamentoso, e da ausência para as atividades programadas no CAPS, são comuns os relatos de permanência em situação de rua, vivências de violências e privações.

Críticas às clínicas conveniadas ao Sistema Únivo de Saúde e à gestão de saúde mental

A gestão de saúde mental surge no relato dos participantes como o “pior serviço de saúde”, “vítima de descaso de políticos”, aquele serviço “que não é levado a sério no país”. Os profissionais do CAPS são considerados “estressadíssimos” com “constantes desvios de funções entre os profissionais da equipe”. Nos hospitais “falta espaço físico, não tem alimentação adequada, faltam leitos para a retirada da crise”, “não têm profissionais responsáveis”. Referências de maiores impactos se fazem em relação às clínicas conveniadas ao SUS e comunidades terapêuticas: “maus tratos verbais com familiares”, “ausência de contato com profissionais”, “reuniões somente com ex-dependentes químicos”, “contato de assistente social somente para pedir produtos de higiene”, “falta de acompanhamento, de auditoria e de fiscalização do Judiciário em relação às clínicas conveniadas”.

A busca por acesso à Justiça na Defensoria Pública do Estado de São Paulo: motivos da busca pelo serviço e os procedimentos institucionais

A motivação da busca pelo serviço

Dentre os motivos mencionados pelos usuários do serviço para a busca pela DPESP, destacam-se: reivindicar o direito à guarda de irmã, interdição da mãe, defesa em processo de interdição movido pelo filho e por irmão, internação compulsória do filho, defesa em processo de filho preso por roubo para aquisição de drogas, intervenção em processo de acusações da filha e guarda de netos, ação contra o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para requerer aposentadoria de irmão, proteção diante de ameaças e pensamentos persecutórios, reivindicação de pagamento de pensão para os filhos, disputa por guarda de filhos; acesso a tratamento médico, solicitação de defesa diante de situações de violência e reivindicação de benefícios.

Em relação à temática dos procedimentos adotados pela DPESP que pudessem descrever a rotina de trabalho implantada, visando proporcionar o acesso da população à Justiça, as referências foram organizadas em 1) protocolo de rotina do serviço; 2) escuta e a identificação das demandas; 3) elaboração de relatório e instrução para defesa e 4) encaminhamento para internações.

O protocolo de rotina do serviço

Composto pela descrição da rotina do serviço e os diferentes papéis desempenhados, assim como os procedimentos adotados para cada etapa do trabalho: o trabalho de recepção e triagem, atendimento psicossocial e/ou com os estagiários, para a orientação sobre encaminhamentos ou documentação necessária para a elaboração da defesa nos casos de ação judicial.

A escuta e a identificação das demandas

Foram identificadas referências que ilustram as relações dialógicas entre os profissionais e os usuários do serviço com ênfase em atendimentos individuais (“conversas”) que objetivavam a busca de informações, orientações e maior entendimento das necessidades dos usuários do serviço. Abordou-se, também, a dificuldade de compreensão das reais condições de vida dos usuários do serviço (e de suas formas de expressão verbal) por parte de estagiários e/ou profissionais do atendimento.

Elaboração de relatório e instrução de defesa

Apresentação dos procedimentos para o levantamento de informações que possam instruir o processo e auxiliar nos encaminhamentos a serem adotados: entrevistas e as anotações das informações coletadas; visitas domiciliares; entrevistas com familiares e vizinhos; encaminhamento judicial ou a mediação de conflitos. Em tais procedimentos, mencionaram-se contatos com estagiários e diferentes profissionais do serviço - defensor público, assistente social e psicólogo.

Encaminhamento para internações

Apreciações aos procedimentos adotados nos casos em que a internação foi a alternativa encontrada diante dos comprometimentos de saúde mental dos usuários do serviço.

DISCUSSÃO

Analisar possibilidades teóricas e metodológicas para a pesquisa em enfermagem (psiquiátrica) e saúde (mental) nos remete a impasses que se originam em disputas epistemológicas arraigadas ao modelo de referência clínico (e seu reconhecimento científico) e à proposta da reabilitação psicossocial, que surge do questionamento a esse modelo, especificamente, das críticas direcionadas à atuação hospitalocêntrica. Nesse sentido, a saúde mental brasileira se depara com um processo de transição paradigmático, discutido exaustivamente pelos movimentos da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, repercutindo na elaboração da legislação de saúde mental e das políticas em vigor no país. A ênfase na garantia de direitos humanos se instala no centro das discussões, a partir de denúncias das violações nos contextos hospitalares.

Se, por um lado, é fato que tais situações provocaram indignações e evocaram exigências de mudanças, também é fato que o modelo clínico passou a ser considerado como o verdadeiro “bode expiatório” diante de práticas de violação. Tal cenário facilitou o emergir de práticas de reabilitação psicossocial pautadas nos princípios de direitos humanos. As pessoas em sofrimento mental que permaneciam isoladas em hospitais psiquiátricos passam, então, a serem consideradas como sujeitos de direitos e a ocuparem espaços públicos, até então a elas negados, desafiando tanto estruturas e serviços a se adaptarem a essa nova realidade, quanto pesquisadores a repensarem seus modelos teóricos.

Ao chamar a atenção para aqueles que historicamente foram invisibilizados (não existentes) e colocados ‘do outro lado da linha abissal’, somos instigados a pensar o sistema de justiça e a produção científica sem repetir as diferentes formas de produção de não existências. É proposta uma forma de se pensar ecológica, em contraposição à monocultura do saber, uma ecologia de práticas de saberes que parte do pressuposto de que em todas as práticas de relação entre seres humanos participa mais de uma forma de saber e, portanto, de ignorância. Nessa perspectiva, a injustiça social é entendida estando assentada na injustiça cognitiva, isso porque o conhecimento científico não está distribuído socialmente de forma equitativa e, consequentemente, as intervenções que privilegia tendem a serem aquelas que fornecem os grupos sociais que detêm o acesso ao conhecimento. A proposta de uma ecologia de Saberes é a de luta contra a injustiça cognitiva.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).,88 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo (SP): Cortez; 2010.

Análises que abordam a proposta de se pensar a saúde sob a perspectiva da Ecologia de Saberes são recentes, e ao mesmo tempo promissoras, indicando que a reflexão proposta no presente estudo encontra questões similares em diferentes contextos. Estudo sobre o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, caracterizado por ser radicalmente democrático, inclusivo e participativo, analisa-o sob a perspectiva de uma Ecologia de Saberes.1616 Souto LRF, Oliveira MHB. Movimento da Reforma Sanitária brasileira: um projeto civilizatório de globalização alternativa e construção de um pensamento pós-abissal. Saúde Debate. 2016; 40(108):204-18. É abordado o caráter contra-hegemônico, nas dimensões política e epistemológica do Movimento e sua relevância na criação do campo de conhecimento da saúde coletiva, sendo proposto um alinhamento do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira ao pensamento pós-abissal.

Trazendo a reflexão especificamente para o campo da saúde mental, encontramos um estudo que analisa o referido movimento como uma resposta radical e criativa à desumanização da “desrazão/loucura”, propondo formas inovadoras de ação coletiva, de redefinição de saberes e de modos de expressão. Nesse processo, o reconhecimento da dimensão estética como elemento central da descolonização dos saberes e práticas de saúde mental, e da invenção de ecologias de saberes, descentralizariam radicalmente a autoridade dos saberes hegemônicos.1717 Nunes JA, Siqueira-Silva R. Dos "abismos do inconsciente" às razões da diferença: criação estética e descolonização da desrazão na Reforma Psiquiátrica brasileira. Sociologias. 2016; 18(43):208-37. Esta ideia é corroborada em estudo que apresenta a articulação teórico-metodológica entre o Teatro do Oprimido, enquanto construtor de dados, e a Sociologia das Ausências e das Emergências como referencial para análise.1818 Campos FN, Panúncio-Pinto, MP, Saeki T. Teatro do oprimido: um teatro das emergências sociais e do conhecimento coletivo. Psicol Soc. 2014; 26(3):552-61. Para os autores, essa articulação é identificada como uma ferramenta potente de democratização do conhecimento, valorizando saberes e experiências consideradas marginais.Apresentam o Teatro das Emergências “enquanto uma ferramenta do Teatro do Oprimido compromissada em dilatar o presente e arriscar-se em traduções de culturas, grupos e saberes, contribuindo para interconhecimento e a emancipação dos participantes por meio do cultivo da Ecologia de Saberes [...]. O Teatro das Emergências é considerado um convite à construção de ações e saberes coletivos”.1818 Campos FN, Panúncio-Pinto, MP, Saeki T. Teatro do oprimido: um teatro das emergências sociais e do conhecimento coletivo. Psicol Soc. 2014; 26(3):552-61.:558-560

Em estudos que abordam, especificamente, a enfermagem, é possível se pensar em dois aspectos importantes analisados em recentes publicações. Em um deles, os autores nos convidam a refletir sobre o ensino inovador da enfermagem sob a perspectiva das Epistemologias do Sul. Destacam os conceitos de descolonização do saber, pensamento pós-abissal e ecologia de saberes, que ofereceriam subsídios para se pensar na efetivação do processo ensinar-aprender com base no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles, sem comprometer a autonomia de todos. As tecnologias para o ensino são propostas como integradas a um processo pedagógico mais amplo, resultantes de reflexões teóricas e de competências dialógicas do enfermeiro como educador. Para os autores, esse referencial teórico pode subsidiar o ensino inovador da Enfermagem, em consonância com a compreensão da diversidade epistemológica necessária ao ensino que compreende a coparticipação entre os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem e o reconhecimento da diversidade de saberes como aspecto enriquecedor do ensino.1919 Rodrigues CCF, Carvalho DP, Salvador PTC, Medeiros SM, Menezes RM, Ferreira JMA, et al . Ensino inovador de enfermagem a partir da perspectiva das epistemologias do Sul. Esc Anna Nery. 2016; 20(2):384-9.

Em um segundo estudo, o autor argumenta que a enfermagem se apresenta e afirma-se como ciência, num quadro de transição paradigmática, que se caracteriza por ser um conhecimento em ação, uma ciência humana prática, uma ciência de saberes plurais (saberes científicos que se entrecruzam com outros saberes). Nesse sentido, propõe a enfermagem como um misto de conhecimentos que coexistem e agem entre si, e entre si e o contexto, fazendo do seu conhecimento uma verdadeira ecologia de saberes.2020 Pina Queirós PJ. Enfermagem, uma ecologia de saberes. Cultura de los cuidados (Edición digital). 2016; 20(45):137-46.

Ao nos remetermos à reflexão dos resultados do presente estudo, tendo como parâmetro os aspectos encontrados na literatura recente, que se fundamentam na Ecologia de Saberes, é possível identificar, inicialmente, que a própria possibilidade de se escutar e analisar a demanda de saúde mental no sistema de justiça pode ser considerado como um avanço em uma perspectiva democrática de participação desse novo sujeito de direito na sociedade, isso porque, historicamente, o sistema de justiça manteve-se encastelado em seus rituais e em sua linguagem jurídica específica mantendo um distanciamento das condições de existência e das diferentes formas de comunicação de demandas de maior vulnerabilidade social. Tais observações nos conduzem aos aspectos introduzidos pelos estudos que abordam uma reflexão contra-hegemônica sobre os princípios do Movimento da Reforma Sanitária, que inaugura novos espaços para a participação de diferentes atores sociais em defesa de seus direitos à saúde e ampliam as possibilidades de se vivenciar a cidadania.

É possível pensar, também, que a presença da demanda de saúde mental explicitando suas necessidades e participando da construção da defesa de seus direitos juntamente com uma equipe interdisciplinar no sistema de justiça inova as práticas de abordagem das demandas de saúde mental, tendo em vista que o encaminhamento de cada situação em particular, se constrói a partir dos relatos das condições de existência e das relações dessa demanda com os diferentes serviços públicos, proporcionando tanto a defesa individual quanto ações civis públicas nos casos de omissões do Estado em relação aos direitos à saúde mental. Situação similar à abordada por estudo que enfatizou o Movimento de Reforma Psiquiátrica como uma resposta radical e criativa à desumanização da “desrazão/loucura”, propondo formas inovadoras de ação coletiva e de redefinição de saberes.1616 Souto LRF, Oliveira MHB. Movimento da Reforma Sanitária brasileira: um projeto civilizatório de globalização alternativa e construção de um pensamento pós-abissal. Saúde Debate. 2016; 40(108):204-18.

As entrevistas realizadas puderam evidenciar que as pessoas com transtornos mentais ou sofrimento mental e/ou seus familiares demonstraram estar presentes reivindicando o direito de serem tratadas como sujeitos de direitos no sistema de justiça e, consequentemente, terem direito à voz, tanto denunciando condições de existências precárias e violentadas em diferentes espaços sociais, quanto denunciando a violação de seus direitos pelo próprio Estado nos diferentes serviços públicos que deveriam garantir seus direitos fundamentais. Nesse contexto, as entrevistas podem ser pensadas como construtoras de dados e a Sociologia das Ausências como referencial para análise, aproximando-se de proposta de estudo sobre o Teatro das Emergências e corroborando a ideia de ser essa articulação uma ferramenta potente de democratização do conhecimento, valorizando saberes e experiências consideradas marginais.1818 Campos FN, Panúncio-Pinto, MP, Saeki T. Teatro do oprimido: um teatro das emergências sociais e do conhecimento coletivo. Psicol Soc. 2014; 26(3):552-61.

A aproximação da Sociologia das Ausências possibilitou, de maneira complementar no decorrer dos trabalhos das entrevistas, a reflexão do processo de construção de conhecimento, identificando a importância de se pensar ciência sem desmerecer a forma científica de se buscar o conhecimento, mas alertando para o fato de que não se deve descartar nenhuma forma de conhecimento a priori.66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4). Na perspectiva de uma Ecologia de Saberes, o usuário do serviço (participante do estudo) deixa de ser considerado destinatário passivo da atuação profissional da instituição (pesquisa), para ser pensado como cidadão que participa da construção dessa instituição com proposta democrática (e do conhecimento científico que se produz). Passa, então, a ter voz ativa, a ter visibilidade social e já não permanece ‘do outro lado da linha’ da ciência e do sistema de justiça. Entende-se que dessa maneira trabalha-se de modo coerente com o proposto pela Sociologia das Ausências, valorizando as experiências até então desperdiçadas (não existentes), de modo que se tornem presentes. Ao serem incorporadas experiências disponíveis nas análises, dilata-se a percepção do presente e torna-se possível pensar o futuro não como algo indeterminado, mas como possibilidades resultantes das diferentes alternativas, que partem de uma realidade ampliada, multiplicada por uma ecologia de saberes, ampliada por pistas e sinais, que podem ser identificadas se a concepção de presente não estiver desperdiçando experiências com a produção das inexistências. 66 Santos BS. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010. (Coleção para um novo senso comum, 4).

7 Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª ed. São Paulo (SP): Cortez; 2010.

8 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo (SP): Cortez; 2010.
-99 Santos BS, Meneses MP, organizadores. Epistemologias do sul. São Paulo (SP): Cortez; 2010. É justamente nesse aspecto que se compreende estar o caráter promissor do referencial teórico da Sociologia das Ausências para futuros estudos que abordem a atuação em pesquisa para a enfermagem psiquiátrica e saúde mental.

CONCLUSÃO

Estudos recentes demonstram que a Sociologia das Ausências tem subsidiado reflexões em saúde abordando tanto o caráter participativo e democrático, que guiaram o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, quanto práticas implantadas sob a perspectiva participativa emancipatória da Reforma Psiquiátrica no país. A relação direta da Ecologia de Saberes com a enfermagem se faz presente em referências sobre a formação de graduandos, em reflexões sobre a presença dos diferentes saberes (científicos e não científicos) na atuação do enfermeiro, assim como na abordagem sobre a enfermagem como uma área de saber que se desenvolve num processo de transição paradigmática, podendo ser enriquecida a partir da ampliação da percepção da realidade e do reconhecimento de saberes produzidos socialmente até então como não existentes. Os resultados do presente estudo com usuários do serviço da Defensoria Pública do estado de São Paulo evidenciam a presença de pessoas com sofrimento mental (socialmente produzidas como não existentes) e/ou seus familiares, em uma instituição do sistema de justiça, participando da construção da defesa de seus direitos.

Ao se concluir o presente ensaio, entende-se que ao se propor colocar em condições de horizontalidade de saber aqueles que historicamente permaneceram do “outro lado da linha abissal” do conhecimento científico, das teorias e das metodologias que buscam desenvolver o conhecimento em enfermagem psiquiátrica e em saúde mental, a pessoa em sofrimento psíquico passa a ocupar o espaço efetivo de sujeito de direito, tendo voz em suas demandas de existências. Dessa maneira, identifica-se a coerência desse referencial com a proposta de humanização na saúde, partindo do princípio da dignidade humana. Entretanto, há muito trabalho a ser feito para que a academia possa melhor assimilar a ideia recente de que a Ecologia de Saberes, ao valorizar a importância de reconhecimento das não existências sociais, propõe sua superação por intermédio de um pensamento ecológico que possa contribuir para os avanços do conhecimento. O desafio está posto.

  • 1
    Artigo resultante da tese - Saúde mental e acesso à justiça na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, apresentada ao Programa de Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP), em 2015

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2017
  • Aceito
    03 Ago 2017
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