Acessibilidade / Reportar erro

Comportamento da Rede de Atenção à Saúde durante situações de desastres: estudo de caso da Boate Kiss em Santa Maria-RS

Behavior of the Health Care Network during disaster situations: a case study of the Kiss Nightclub in Santa Maria-RS

RESUMO

O objetivo desta investigação foi avaliar o comportamento da Rede de Atenção à Saúde (RAS) durante situações de desastres. O estudo foi realizado em Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul, e teve como objeto a atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) após o incêndio ocorrido na Boate Kiss, em 2013. Trata-se de uma investigação qualitativa, com características da Avaliação de Quarta Geração. As principais fontes de informação foram entrevistas individuais e coletivas com representantes de grupos com diferentes interesses no tema proposto. A análise de dados identificou três momentos de atuação com características distintas. O enfrentamento inicial dependeu da capacidade de mobilização, conectividade, recursos da comunidade e capacidade convocatória; o atendimento aos sobreviventes e familiares – especialmente atendimento hospitalar – exigiu regulação, financiamento e capacidade de gestão e coordenação de equipes com visão das propostas assistenciais em disputa. Houve abertura para formas menos hierárquicas de gestão dos serviços. A institucionalidade do SUS, com mobilização de recursos, com rede e capacidade de regulação, foi o fator mais importante para enfrentar os efeitos do desastre. A fragmentação dos serviços e a fragilidade da atenção básica limitaram a qualidade da assistência imediata e dificultam o cuidado longitudinal.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção à saúde; Integralidade em saúde; Atenção Primária à Saúde; Regionalização da saúde; Planejamento em desastres

ABSTRACT

The aim of this study was to evaluate the behavior of the Health Care Network (RAS) during disaster situations. The study was carried out in Santa Maria, state of Rio Grande do Sul, and had as its object the performance of the Unified Health System (SUS) after the fire that took place at the Kiss Nightclub, in 2013. This is a qualitative study, with characteristics of the Fourth Generation Assessment. The main sources of information were individual and collective interviews with representatives of groups with different interests in the proposed topic. Data analysis identified three moments of action with distinct characteristics. The initial response depended on mobilization capacity, connectivity, community resources, and convening capacity; care for survivors and their families – especially hospital care – required regulation, funding, and the ability to manage and coordinate teams with a vision of the care proposals in dispute. There was openness to less hierarchical forms of service management. The institutionality of the SUS, with resource mobilization, network, and regulatory capacity, was the most important factor in facing the effects of the disaster. The fragmentation of services and the fragility of Primary Care limited the quality of immediate care and made longitudinal care difficult.

KEYWORDS
Delivery of health care; Integrality in health; Primary Health Care; Regional health planning; Planejamento em desastres; Disaster planning

Introdução

As dimensões do desastre na Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul (RS), justificam investigar as Redes de Atenção à Saúde (RAS) e o enfrentamento da crise. Santa Maria-RS é um município de médio porte, com população estimada, em 2013, em 271.574 habitantes11 Brasil. Ministério da Saúde. População residente. Estudo de estimativa populacionais por município, idade e sexo 2000-2021 – Brasil. [acesso em 2022 mar 19]. Disponível em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/popsvsbr.def.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
. Pertence à 4ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS) e à primeira região de saúde do RS. O incêndio na casa noturna, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, vitimou 242 pessoas, produzindo um dos piores desastres brasileiros: muitas vítimas ficaram feridas gravemente em decorrência da inalação dos gases tóxicos e, em função da propagação das chamas, tiveram queimaduras. A maioria das vítimas era composta de estudantes universitários, com idades entre 18 e 31 anos22 Cardoso EK, Fernandes AM, Rieder MM. Atuação da fisioterapia às vítimas da Boate Kiss: a experiência de um Hospital de Pronto-Socorro. Rev Bras Queimaduras. 2014; 13(3):136-141..

A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) afirma que os sistemas fragmentados agravam a condição de vulnerabilidade de um povo aos perigos externos, impactando no bem-estar e na proteção à saúde, assim como no desenvolvimento econômico e social. Dessa forma, no cenário de novas ameaças, é necessário, com urgência e prioridade máxima, que os sistemas de saúde atuais se tornem mais resilientes às mudanças33 Organização Pan-Americana da Saúde. Busca por tornar sistemas de saúde resilientes às novas necessidades e ameaças deve ser prioridade máxima, afirma diretora da OPAS. 2016. [acesso em 2017 jan 13]. Disponível em: http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5295:tornar-sistemas-de-saude-resilientes-as-novas-necessi-dades-e-ameacas-deve-ser-prioridade-maxima-afirma-diretora-da-opas&Itemid=450.
http://www.paho.org/bra/index.php?option...
.

A fundamentação teórica que sustenta este artigo destaca temas relativos às RAS, particularmente, a resiliência das Redes em desastres. A construção da resiliência deve tornar as sociedades e as comunidades aptas a desenvolverem as habilidades de responder adequadamente aos eventos, monitorá-los, antecipá-los e aprender com eles, fortalecendo sua capacidade de adaptação também após os desastres com a manutenção de um nível aceitável de funcionamento e estrutura para restabelecer-se, recuperar-se e reconstituir-se, não só retornando à normalidade de sua vida cotidiana em condições ainda mais sustentáveis e seguras do que as anteriormente existentes44 Freitas CM, Carvalho ML, Ximenes EF, et al. Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e construção da resiliência – lições do terremoto no Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2012; 17(6):1577-1586..

Para garantir que os sistemas de saúde possam responder às futuras emergências, absorver os choques e se adaptar às mudanças, os países precisam agir e fazer os investimentos necessários para tornar seus sistemas de saúde mais fortes e resilientes. Nesse contexto do incêndio na Boate Kiss, o termo resiliência será utilizado como sinônimo de capacidade de adaptação às mudanças ou sustentação no tempo, corroborando vários autores que o utilizaram no contexto de desastres naturais, como enchentes, inundações, furacões e terremotos55 Michels B, Barros VG. Integração interinstitucional e aumento de resiliência na gestão de desastres naturais dentro do contexto da Política Nacional de Pro-teção e Defesa Civil – Aplicação na Bacia Hidrográfica Do Rio Águas Vermelhas – Joinville, SC. Ciênc Nat. 2016; 38(3):1394-1402.. A resiliência organizacional dos sistemas de saúde é definida como capacidade das instituições, profissionais de saúde e população para efetivamente responder às necessidades geradas pela crise, o que implica aprender com o evento crítico e dar respostas que protejam a vida de todas as pessoas66 Anaut M. A resiliência: ultrapassar os traumatismos. Lisboa: CLIMEPSI Editores; 2005..

Assim, o objetivo desta investigação foi avaliar o comportamento da RAS durante situações de desastres. Foram objetivos específicos: reconhecer características da rede anterior ao desastre e identificar as adaptações que contribuíram para enfrentar os efeitos do desastre.

Material e métodos

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, avaliativa e participativa. As principais técnicas de coleta de dados utilizadas foram Grupo Focal (GF)88 Olsen W. Coleta de dados: debates e métodos fundamen -tais em pesquisa social. Porto Alegre: Penso; 2015. e Entrevista Semiestruturada (ESE)77 Barbour R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed; 2009. com 11 participantes representantes dos seguintes Grupos de Interesse (GI): Familiares (GIF); Gestor/ Apoiador da Secretaria Estadual de Saúde (SES) (Gigea); Gestor Estado Regional (Gier); Gestor/trabalhador Município (GIM); Gestor Estado Direção SES-RS (Giged); Gestor Estado Direção Regulação SES-RS (Giger); Serviço Local (GISL). O período de realização da pesquisa compreendeu os meses de outubro e novembro de 2017. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram observados os aspectos éticos, conforme Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi realizada após aprovação do projeto pelo CEP-Conep/UFSM com CAAE 72952117.6.0000.5346.

As entrevistas foram conduzidas pela coordenadora da pesquisa, enfermeira com doutorado em saúde coletiva, professora da universidade na qual o estudo foi desenvolvido. Os participantes conheciam a entrevistadora da atuação em diferentes espaços do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente a Política Nacional de Humanização (PNH). A orientação metodológica foi a análise de discurso, com ênfase no interesse dos grupos que o entrevistado representava. Os participantes foram selecionados a partir do mapeamento das instituições que atuaram no enfrentamento dos efeitos do desastre na Boate Kiss, os quais foram contatados por mensagem ou telefonema, sendo incluídos, neste texto, a contribuição de 11 pessoas. Não houve recusa à participação no estudo. As entrevistas foram realizadas em espaço da universidade, local de trabalho e/ou residência dos participantes. Em todas as situações, estiveram presentes apenas os entrevistados, a pesquisadora coordenadora e uma mestranda. Todos os participantes estiveram envolvidos diretamente com o desastre da Boate Kiss, sendo que parte da amostra foi como usuária do SUS, e parte, como trabalhadora de saúde. As entrevistas individuais e o GF tiveram duração de aproximadamente 90 minutos e foram gravados e transcritos. Alguns temas foram antecipados no projeto de pesquisa e outros emergiram das entrevistas. As notas de campo foram feitas durante e após as entrevistas. O gerenciamento e a análise dos dados foram feitos com apoio do software Atlas.ti®. No presente artigo, as citações foram utilizadas para ilustrar os achados, e os participantes estão identificados por sigla.

Para análise das entrevistas, inicialmente, foi criada, no software Atlas.ti®, uma unidade hermenêutica denominada REDES, na qual foram lançados os arquivos com os nomes dos GI. Esses arquivos foram designados por Dados Primários (DP), como sugere o próprio programa Atlas.ti®. A seguir, procedeu-se à codificação, resultando em 19 códigos/categorias: apoio, atenção básica, atravessamentos, características da rede, coletivo, competências de outros locais, cuidado longitudinal, efetividade do cuidado, estratégias de enfrentamento, fatores que contribuíram, fatores que dificultaram, gestão do cuidado, importância do SUS, judicialização dos medicamentos, público x privado, relações externas em desastres, relações interfederativas, saúde mental e trabalho dos voluntários.

A utilização da Avaliação de Quarta Geração ampliou a capacidade da pesquisa para lidar com posições (ou avaliações) divergentes dos diferentes GI. As principais questões foram inseridas nas entrevistas seguintes, conforme o conceito de círculo hermenêutico99 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011..

As transcrições lembravam os textos sem parágrafos de José Saramago e induziram leituras aceleradas, dando a dimensão de que, em um pequeno espaço de tempo, havia uma quantidade inimaginável de acontecimentos. A partir dessa constatação, optou-se pela narrativa do tempo como uma flecha, pois, conforme Bergson1010 Bergson H. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes; 2006. [acesso em 2022 fev 23]. Disponível em: https://www.cidadefutura.com.br/wp-content/uploa-ds/BERGSON-Henri.-Mem%C3%B3ria-e-Vida-1.pdf.
https://www.cidadefutura.com.br/wp-conte...
,

A flecha não está nunca em nenhum ponto do seu trajeto [...]. O fato é que, se a flecha parte do ponto A para ir ao ponto B, seu movimento AB é tão simples, tão indecomponível, enquanto movimento, como a tensão do arco que a lança.

Resultados e discussão

As pessoas entrevistadas responderam às questões tendo como referência o que denominavam momentos, atos ou fases do enfrentamento dos efeitos do desastre. No primeiro momento, foram destacados: óbitos, identificação de vítimas fatais, velórios coletivos, funerais, atuação das forças sociais, equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e equipes hospitalares. O segundo momento evidenciou: atendimento/assistência, transferências, hospitais, Regulação do SUS, outras entidades civis e militares como a Base Aérea, Bombeiros, Cruz Vermelha (CV) e Médicos Sem Fronteiras (MSF), que atuaram com trabalhadores/gestores das três esferas de gestão do SUS. No terceiro momento, os entrevistados fizeram referência ao Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidente (Ciava) e ao Acolhe Saúde, e avaliaram a capacidade da Atenção Básica/Atenção Primária à Saúde (AB/APS) para compor a continuidade do cuidado. Representantes de diferentes GI demonstram maior interesse ou conhecimento em uma das denominadas fases. A figura a seguir ilustra a mescla das narrativas nos três momentos de enfrentamento dos efeitos do desastre (figura 1).

Figura 1
Momentos das narrativas nos três momentos do desastre

A narrativa do momento inicial continha mais detalhes sobre procedimentos, telefonemas, contatos, procedimentos e impacto com a vivência da experiência. O segundo momento era narrado uma conexão maior com o SUS, sua institucionalidade e capacidade de governo e de gestão, com destaque para a criação de um serviço específico, o Acolhe Saúde. O terceiro momento dizia respeito a projeção para o futuro, análise e avaliação das potências e fragilidades, bem como o efeito do impacto sobre a rede de saúde e as novas exigências. A importância do SUS foi registrada em todos os momentos de enfrentamento do desastre, com destaque às redes de urgência e emergência, à existência de equipamentos hospitalares públicos e experiência de gestão a partir de cooperação entre as três esferas de governo.

Primeiro momento

A reformulação da Política Nacional de Atenção às Urgências e a instituição da Rede de Atenção às Urgências no SUS, feitas dois anos antes pela Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011, foram importantes para as ações iniciais. A portaria definiu os componentes da rede, com atribuições – entre outros – para o Samu, Força Nacional, hospitais e AB. A existência do Samu foi registrada como facilitador importante.

O Samu, estruturado na cidade, com trabalhadores capacitados foi decisivo para o atendimento às vítimas. (Giged).

No Brasil, um grande facilitador no caso Kiss, foi a instalação, do ponto de vista nacional, a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O Rio Grande do Sul (RS), também começou, em Porto Alegre capital, com o Samu, ainda na década de 90. E, em 2003 começa efetivamente no Brasil o Samu. Ter o Samu em Santa Maria, vinculado a uma Política Nacional, auxiliou no atendimento inicial. (Giged).

As narrativas recuperaram o itinerário das ambulâncias com as vítimas mais graves. Inicialmente, os feridos foram levados ao Hospital de Caridade, instituição privada localizada a poucos minutos do local do desastre. A análise dos gestores enfatiza o itinerário de feridos graves, que deram entrada nos hospitais, foram avaliados, atendidos e transferidos de acordo com critérios de gravidade e existência de leitos. Na madrugada e manhã do domingo do acidente, foram os hospitais de Santa Maria que assumiram o atendimento e que estabeleceram comunicação e critérios para transferência. O Hospital de Caridade, uma instituição não conveniada ao SUS, pela proximidade com o local do incêndio, foi o primeiro a ser acionado. Em seguida, foi acionado o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM).

O enfrentamento inicial foi marcado pela necessidade de dar respostas a problemas novos e complexos em alta velocidade; para tanto, foi preciso acionar as redes. Foi o momento da solidariedade, as equipes dos hospitais não saíram dos plantões, e as pessoas que estavam em casa dirigiram-se aos postos de trabalho. Contudo, a capacidade dessas instituições não teria condições para seguir dando conta dos atendimentos, sendo necessário reforço para a assistência e reforço em equipamentos e tecnologias específicas, como aumento do número de respiradores, suporte para a assistência aos sobreviventes com queimaduras extensas e/ou complicações respiratórias. Ao mesmo tempo, nas recepções dos hospitais e no pátio do ginásio de esportes (para onde foram levadas as vítimas fatais), pais, irmãos e amigos buscavam informações e, também, necessitavam de suporte. Para o enfrentamento de um desastre, a gestão precisa, portanto, ter capacidade de convocação de sujeitos e instituições distantes e, simultaneamente, competência para articular a ação de quem está próximo, na cidade.

Então, algumas questões que já se tinha experiência, tem experiência acumulada no mundo. Poder transferir muito rapidamente para cá, contribuiu [...]. Ter conectividade ajuda, conexões de rede, rede ampliada, rede quente de pessoas com experiências também ajuda muito. (Giged).

Nesse momento inicial, ao mesmo tempo que as pessoas telefonavam e criavam uma rede local de enfrentamento, a organização MSF orientava, por exemplo, medidas para evitar a exposição dos corpos das vítimas fatais. Iniciava-se a criação das frentes, também com suporte da organização internacional mediada pela gestão da SES-RS, já em deslocamento para o território. Na tarde de domingo, identificavam-se as vítimas fatais, os hospitais atendiam os sobreviventes, as famílias transportavam seus mortos para as suas cidades de origem e, nas dependências do Ginásio de Esportes, 70 famílias velavam seus mortos em um espaço coletivo. A repercussão imediata, pela imprensa, e as publicações posteriores salientaram a ação dos voluntários. Contudo, esta investigação constatou que foram trabalhadores que coordenaram e assumiram as ações dentro e fora do espaço hospitalar. Os bombeiros, por exemplo, atuaram com suporte dos trabalhadores de saúde do município, sendo simultânea a assistência no local e contatos para garantir o apoio das outras esferas de governo. A regionalização do SUS, a capacidade de gestão e as competências de equipes locais foram acionadas o tempo todo. A área da saúde mental foi constituindo sua intervenção e seu modo de trabalhar imediatamente no pátio do Ginásio de Esportes.

O deslocamento da gestão estadual do SUS, especialmente a Direção de Ações de Saúde e a Coordenação de Saúde Mental, definiu a forma de gestão do trabalho. Na tarde de domingo, as equipes da SES-RS, já em Santa Maria-RS, assumiram a condução das ações, fazendo o primeiro revezamento e permitindo o afastamento, para descanso, da primeira equipe da linha de frente. Evidencia-se a existência e a presença das instâncias de gestão, a capacidade de gestão, a capacidade de convocação e o trabalho anterior em rede. O SUS, na sua condição de sistema de acesso universal, foi decisivo para o atendimento aos sobreviventes.

No primeiro momento, se desloca de forma competente a equipe de Samu, com pessoas que tiveram treinamento e tinham formação fora do Samu de SM. Essas pessoas conseguiram organizar esse primeiro atendimento. (Giger).

Na assistência, portanto, “o protagonismo inicial é da equipe do município; o Samu faz os primeiros atendimentos” (Giger). Contudo, “não tem capacidade para dar conta de catástrofes desse tamanho, nenhuma equipe do estado teria, nem mesmo Porto Alegre...” (Giger). A seguir, várias instituições entraram em ação, como os bombeiros e as Forças Armadas, que garantiram o transporte imediato e se organizaram para o transportar sobreviventes entubados.

Mas o primeiro ponto é esse, entra em cena a SES, com vários níveis, vários departamentos, várias áreas. A primeira área é a regulação do Samu e as equipes ligadas a ela. (Giger).

A central de regulação do estado do RS atuou desde o primeiro momento. Trata-se de ação de um dos departamentos da SES-RS, estruturado para fazer regulação. A coordenação estadual do Samu também se deslocou para a cidade.

A pesquisa vai delimitar esse primeiro momento com a chegada da Presidenta da República, do Ministro da Saúde e do Secretário de Estado da Saúde do RS. O reconhecimento da gravidade exigiu o deslocamento da gestão do SUS para a cidade afetada; esse foi um gesto que, além de garantir a tomada de decisão a partir do local, indicou o esforço do sistema de saúde para a ação emergencial que a situação exigia. Trata-se do deslocamento de estruturas dos níveis estadual e nacional.

Segundo momento

A ênfase do segundo momento do enfrentamento está relacionada com as formas de gestão e capacidade para propor e coordenar estratégias de enfrentamento dos efeitos do desastre1010 Bergson H. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes; 2006. [acesso em 2022 fev 23]. Disponível em: https://www.cidadefutura.com.br/wp-content/uploa-ds/BERGSON-Henri.-Mem%C3%B3ria-e-Vida-1.pdf.
https://www.cidadefutura.com.br/wp-conte...
. A circulação de técnicos de diferentes esferas de governo – e com diferentes responsabilidades e competências – e a grande movimentação de voluntários acrescentaram desafios à gestão. Delimitou-se o segundo momento pelo impacto da dimensão do desastre nos serviços locais e a ativação da rede do SUS no estado. Foram, portanto, ações decorrentes da dimensão do desastre, que ampliaram e redimensionaram as atribuições do Ministério da Saúde (MS) e da SES-RS. Foi também o momento de disputas pela condução das ações (entre município, estado e União) e pelos recursos. Veículos de comunicação e vendedores de produtos e insumos passaram a circular pelos diferentes espaços da cidade. No campo da atenção psicossocial, ficou evidente a necessidade de pactuação dos modos de cuidado. Respostas às novas necessidades foram dadas por essa nova institucionalidade do SUS, e a forma de resposta indicou, paradoxalmente, acúmulos e fragilidades.

Dois espaços importantes passaram a desenvolver ações simultaneamente: a frente de atenção psicossocial e a regulação de leitos. A existência da Força Nacional de Saúde – outro componente da Rede de Atenção às Urgências no SUS, também foi decisiva.

A FNS buscou solucionar com maior agilidade a questão da infraestrutura de tecnologia; [...] ajudou muito na questão do voluntariado, a FNS foi importante, assim como ela nos ajudou na abordagem especializada, por que mobilizou especialistas. (GE-2).

O Acolhe Saúde, estruturado em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), reuniu, cerca de 30 horas após o desastre, a coordenação das frentes de trabalho, criando-se uma coordenação para recepção e organização dos voluntários que chegavam à cidade. No acolhimento, pensado a partir de referenciais da saúde mental e da saúde coletiva. Na frente de atenção psicossocial, havia grande proximidade entre representantes SES-RS, PNH e trabalhadores de saúde de Santa Maria-RS. Ademais, a SES-RS deu suporte para

Montar gabinete de situação e olhar para o problema com a emergência necessária em situações críticas, em uma realidade que se sabe difícil, com o desconhecido, o inesperado. (GIA).

Para os representantes da gestão estadual que deram suporte para a criação das frentes de trabalho e o Acolhe Saúde, a experiência “ensina a lidar com as redes, falando uma nova linguagem, promovendo o cuidado” (GIA). Trata-se de “fazer uma aposta na vida e não na patologização, produzir cuidado, mas não necessariamente esse cuidado hegemônico” (GIA). Para a representante do grupo trabalhadores locais, “foi muito importante nós estarmos juntos na [Rede de Atenção Psicossocial] Raps, no cuidado” (GIT). Essa entrevista acrescenta o tema da relação entre quem é do local e quem veio para apoiar. “Veio a FNS, então tudo isso impactou e nós da SMS ficamos com a Atenção Psicossocial, naquele momento foi o que nos possibilitou fazer” (GIT). Destacam-se aspectos importantes do contrato entre apoiadores, os técnicos de outros níveis de governo e o serviço, o que possibilitou que a equipe local fosse retomando a capacidade de coordenação que vinha sendo assumida por equipes externas ao município. “O staff` da saúde mental se fez presente, juntamente com o MS, psiquiatras vieram; na parte clínica de cuidado, de Raps, foi muito pesado” (GIT). No mesmo depoimento, ouviu-se que “foi excelente a qualidade, nos ensinaram muito e os casos clínicos eram passados nas rodas, nas passagens de plantão instituídas, também para os voluntários” (GIT).

Essa construção foi moldada pelas características da gestão, marcada pela fragmentação e fragilidade da rede e, paradoxalmente, potencializada pela presença, na cidade, de trabalhadores com experiência na organização de serviços e enfrentamento de desastres. A representante da gestão estadual/apoio acrescentou aspecto novo a essa análise:

Vamos entrando no campo das características da gestão de Santa Maria no momento do desastre: uma gestão tradicional pautada pelos problemas que vão se apresentando. (Gigea).

As equipes identificaram falta de ação intersetorial, ausência de planejamento e inexistência de definição de um modelo de atenção.

Como em muitos outros locais, em Santa Maria não se visualiza/identifica planejamento ou ação intersetorial; a rede vai se conformando como se não houvesse opção por modelo de atenção e gestão e sem um planejamento que oriente o seu desenvolvimento. (Gigea).

Essa forma de desenvolvimento da rede está associada a características da gestão1010 Bergson H. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes; 2006. [acesso em 2022 fev 23]. Disponível em: https://www.cidadefutura.com.br/wp-content/uploa-ds/BERGSON-Henri.-Mem%C3%B3ria-e-Vida-1.pdf.
https://www.cidadefutura.com.br/wp-conte...
, em que “o diálogo em rede não [consegue] ser um exercício cotidiano” (Gigea).

Quem veio dar suporte, referiu ter encontrado a rede frágil, mas, ao mesmo tempo, disse ter identificado pessoas que conheciam a história da formação da rede e suas fragilidades. “Então foi triplo, a própria dor em si pelo que aconteceu, aprender tecnologias e a inexistência de serviço que dê suporte para isso” (Giged). Assim, a identificação/denúncia das fragilidades não impediu o reconhecimento do saber local, o que parece ter sido decisivo para o diálogo e pode ter sido determinante para os desdobramentos da experiência de apoio, aspecto destacado por todos os participantes da pesquisa.

Mesmo o município tendo dificuldades – eu acho bem importante destacar – várias pessoas tinham acúmulo, que somado com estas pessoas de fora que também vinham com um acúmulo, se juntaram para a produção desse cuidado. (Gigea).

A constituição de um novo ponto da rede para o acolhimento de pessoas afetadas pelo desastre em um Caps foi o que representou mais desafios para a gestão que se instituía.

E, a própria equipe, o próprio serviço se sentiu invadido também no seu cotidiano de cuidado, para trabalhar nas 24h. Mas a dificuldade de trabalhar 24h nos Caps é generalizada, no RS tem pouquíssimos Caps 24h. (GIGR).

Por causa da dimensão do desastre e da fragilidade da rede de saúde, o atendimento no Acolhe Saúde foi sustentado por voluntários e coordenado por equipe gestora formada pela equipe de saúde mental da SES-RS e representante do município. Havia um alto grau de consenso sobre a atuação do SUS: “É SUS, vamos trabalhar na lógica do SUS, tentaremos promover o cuidado em território” (Gigea). A existência dos servidores públicos, pautados na perspectiva do SUS, e as pactuações entre as esferas de gestão garantiram a sustentação do serviço de caráter público e de acesso universal. Ou seja, “teve problema com um grupo que chegou e disse, agora nós assumimos. Entende? Estado desapareça” (Gigea). Destacase a importância de operar na lógica do SUS, e esse é um importante argumento para não permitir a substituição de equipes públicas por profissionais privados. “Não, a gente tinha uma pactuação feita em um cenário que a gente tinha reuniões de 4 em 4 horas, num primeiro momento” (Gigea).

Anunciava-se, naquele momento, as primeiras tensões entre a perspectiva de gestão e cuidado do Acolhe Saúde e a prática de serviços de psiquiatria da cidade. Grupos externos passaram a oferecer consultoria ou buscavam fazer intervenções e coletar informações utilizando-se da condição do voluntariado.

Vieram muitos grupos, uns deles com interesse muito próprio de vender o seu produto, muito de mercado mesmo, mas também grupos privados que tem um modelo de atenção fragmentado, na lógica do cuidado médico-hospitalar. (Gigea).

E complementam:

O grupo privatista que veio, era muito abre leito, no campo da saúde mental, [a proposta era] internar todo mundo que vertesse uma lágrima, como se tu não fosse chorar a morte de um filho, de uma filha, ou a perda de um colega (Gigea).

A convergência conceitual e metodológica é mais evidente no campo da saúde mental. “Desde o início, tentamos estruturar o que está escrito na Rede de Atenção Psicossocial” (GIM). Para sustentar a proposta do Acolhe Saúde, era necessário fortalecer a RAS. Nesse contexto, uma das frentes de trabalho vinculadas à atenção psicossocial foi denominada Grupo de Trabalho AB-Redes. Em uma articulação importante com o Acolhe Saúde, formou-se um grupo com trabalhadores de saúde mental e AB do município para dar suporte às equipes da AB, processo coordenado por consultores da PNH. Nesse momento, apresentava-se um novo desafio para a coordenação da frente de trabalho: garantir continuidade e, ao mesmo tempo, não desperdiçar competências específicas e temporárias.

Para a gestão municipal, uma limitação estaria no fato de que, em várias áreas, o município não contava com trabalhadores. “Uma fragilidade nossa é que não tínhamos recursos humanos para cuidar disso” (GIM). Muitas ações dependiam de equipes sem vinculação com o município.

Não tinha possibilidade de integrar grupos para suporte às UBS. Assim, [sabíamos que] o município perderia processos; um conjunto de ações e metodologias utilizadas, para enfrentamento imediato, não seriam incorporadas no cotidiano dos serviços. Foi o que aconteceu. (GIM).

No HUSM, o enfrentamento do desastre produziu mudanças nas formas de gestão. Foram constituídos novos contratos/acordos/corresponsabilidade entre professores, residentes, alunos de graduação e equipes assistenciais. No campo da gestão da RAS, como forma de articular diferentes pontos, foi criado um grupo condutor posteriormente denominado Colegiado Gestor, que reuniu gestores e serviços públicos e privados. Em síntese, é possível afirmar que, tanto no espaço do hospital como na gestão da RAS, os efeitos do desastre foram enfrentados com inovações na direção da democracia institucional. Foram formas de gestão mais democráticas, que resultaram no aumento da capacidade de produção do cuidado.

Nenhuma situação ou qualidade da rede e da gestão evitariam o impacto do desastre nas pessoas e instituições. Contudo, isso foi agravado pela fragilidade de pontos da rede de cuidado e das suas conexões.

Dada a gravidade da situação e a quantidade, possivelmente [...] ia passar pelo corpo mesmo. Mas poderia ter corpo sustentado em prédio, em estrutura, em condições de trabalho que não tinha. (Giged).

Como último aspecto desse segundo momento, destaca-se a regulação dos leitos, ação que teve início no momento do desastre com a regulação local e que imediatamente exigiu a intervenção do nível estadual. O transporte foi viabilizado pela presença, na cidade, de uma base da Força Aérea Brasileira. Novamente, foram trabalhadores do SUS,

Principalmente médicos e enfermeiros que atuavam em unidades de Samu na região de POA e tinham, vários deles, treinamento para transporte aéreo, que se deslocaram para cá [para garantir o transporte]. (Giger).

A gestão do SUS, especialmente a capacidade de regulação, garantiu deslocamentos complexos, com itinerários que lembram rizomas, pois os sobreviventes em estado grave foram transferidos para Porto Alegre-RS, exigindo que pacientes internados em leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) da capital fossem transferidos para unidades da região metropolitana.

Considerando que SM não teria mais condições de suportar, foi necessário trazer o máximo de pacientes possível para POA. Foi definição do estado junto com o MS. E o fato de ter mais dois hospitais públicos federais e um terceiro hospital público municipal, nos ajudou muito. (Giger).

Em Porto Alegre-RS, o Hospital de Pronto Socorro (HPS) e o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) participaram da ação. A importância dos hospitais públicos é apresentada nos seguintes termos:

Na hora que a coisa apertou, foram os públicos que seguraram. Se nós não tivéssemos essa estrutura de hospitais de grande porte públicos, no estado do RGS, não sei como seria. Não sei como seria. Mesmo os demais hospitais tendo participado da ajuda, a gente [...] não teria a ‘expertise’, não teria a capacidade de atender esse número tão grande de pacientes graves, como tivemos com os hospitais públicos. Eles são as grandes portas de entrada, de paciente muito grave, onde se conseguiu concentrar o maior número de equipes multiprofissionais (médicos, multiespecialidades médicas e multiprofissionais). Foram eles, foram os públicos. (Giger).

Com a análise da situação de Santa MariaRS e da atuação dos hospitais do estado do RS, deu-se consistência ao argumento de que há boas experiências, mas não são sistêmicas. “Fragmentar é não trabalhar em conjunto, tem esforços, o que posso dizer, tem experiências boas em Santa Maria, mas elas não são sistêmicas” (Giged). É possível que a presença de trabalhadores e seus acúmulos tenham qualificado o primeiro momento do enfrentamento e que não ter um desenvolvimento sistêmico da RAS tenha representado uma limitação para a continuidade do cuidado.

Terceiro momento

A continuidade do cuidado foi sendo concebida a partir de quatro pilares, quais sejam: o fortalecimento da AB, a consolidação da Raps, o Acolhe Saúde e o Ciava.

A importância da AB e do cuidado no território foi anunciada como um dos pilares da ação do grupo de Apoiadores. Dessa forma – já foi dito anteriormente –, havia um diagnóstico de fragilidade na AB, o que justificou ofertas para que a Gestão priorizasse o fortalecimento desse nível de atenção. Entre as ofertas, os participantes da pesquisa registraram o mapeamento das famílias de vítimas fatais e da criação do Grupo de Trabalho Atenção Básica – Redes (GTAB-Redes). A continuidade do cuidado pelo fortalecimento da AB foi referida como uma das primeiras constatações dos apoiadores no campo da saúde mental.

No primeiro momento não tínhamos essa dimensão tão clara, mas já sabíamos que estouraria lá na AB. Então, a gente optou por esta linha e foi construindo esta linha com as regiões, com o município, com a rede em si. (Gigea).

A APS não assumiu protagonismo na vigilância e acompanhamento de familiares e sobreviventes, provavelmente porque

Para a APS, não tinha meta, não tinha um plano de saúde desenhado [...], não tinha de onde partir. Então, além de uma RAS que era aquém das necessidades do município, já posta antes da Kiss, uma rede que não tinha planejamento em saúde. (Gigea).

A situação da APS é reconhecida por vários grupos: “tem uma baixa cobertura de ESF, as pessoas em Santa Maria correm de um lado para o outro” (GIGR). A baixa cobertura da APS e a incompletude e a rotatividade das equipes comprometeram a qualidade do enfrentamento em todos os momentos, mas a sua ausência impactou mais na continuidade.

E aparece a fragilidade da AB, a baixa cobertura, isso não contribuiu. Em parte inexistente, em parte não funcionando como rede, particularmente na AB, como RAS. A AB, das questões clínicas e da questão psicossocial. (Giged).

A APS é considerada internacionalmente a base para um novo modelo assistencial de sistemas de saúde que tenham em seu centro o usuário-cidadão. Apresenta-se, assim, uma importante primeira pista para compreender como o cuidado foi tomando forma. A referência para as pessoas afetadas no desastre não foi a AB, mas o hospital. Ou seja,

Foi uma grande preocupação e que vimos depois que tínhamos razão, porque não seguiu muito a continuidade, a não ser na Saúde Mental. Acredito que ficou uma coisa bem falha depois. As pessoas não tiveram o Acolhimento que deveriam, nas Unidades Básicas. Onde tiveram Acolhimento? No HUSM. Com o serviço criado, também pelas características da Saúde Mental, como fazer esses encaminhamentos? Como acolher dali a tantos meses? Um padrinho, um parente, que em um primeiro momento não procurou nada, mas depois, onde é que ele iria procurar? Creio que não conseguimos sensibilizar [...]. Não houve sensibilização. (GIGR).

A necessidade de sensibilização da RAS, evidenciada pela Gestão Regional, revelou que, de modo geral, o atendimento a essas pessoas não era adotado como responsabilidade dos serviços locais. A saúde mental, área que conseguiu estruturar a longitudinalidade por meio do Acolhe Saúde, também foi sendo reduzida. O HUSM inclui atendimento psiquiátrico no acolhimento aos sobreviventes e familiares de vítimas. Para a representante da gestão do município, na coordenação das ações, a fragilidade da AB não foi superada e é o principal entrave para o cuidado longitudinal após o desastre.

[...] foi muito boa a qualidade, eles nos ensinaram muito e os casos clínicos eram debatidos nas rodas, nas passagens de plantão, pois instituímos passagem de plantão para os voluntários. Na AB, veio a PNH, de peso, qualificada, só que não tínhamos profissionais junto. (GIM).

No caso da AB, foram poucos interlocutores representantes do município. Assim, apesar do esforço interfederativo – que é reconhecido pelos representantes de todas as esferas de gestão –, a AB não se fortaleceu. “Tentamos construir, mas nunca ficou forte a AB” (GIT).

Os problemas que o Ciava encontra estão relacionados com outros pontos da RAS, especialmente aos processos de regionalização e a falta de produção de novos contratos com a AB. A compreensão do Ciava como importante estratégia de seguimento é destacada pela representante da gestão do serviço que o acolheu, o HUSM. O Ciava

[...] é o seguimento dos pacientes para criar um espaço de cuidado continuado, porque muitos ficaram com sequelas, ou necessitam seguimento, talvez a vida toda. Na verdade, o Ciava se cria também em uma perspectiva de integralidade. (GISL).

O cuidado prestado pelo Ciava na área da saúde mental – como registrado anteriormente – representou retorno do atendimento psiquiátrico ambulatorial com reforço do modelo de atenção questionado nas fases anteriores do enfrentamento. Os representantes do GIF de vítimas fatais registram esta mudança.

Então, [...] as pessoas acabaram, quase que 100% delas, não tendo continuidade com o tratamento lá [Ciava] [...]. Umas foram para o Acolhe Saúde e outras clínicas aí. (GIS).

A partir desse ponto, a expressão ‘limbo assistencial’ utilizada pela representante da GISL (HUSM) foi inserida no círculo hermenêutico, passando a integrar novas entrevistas. O HUSM apostou na existência de um trabalho em RAS e no acompanhamento dos sobreviventes. Contudo, sem a APS, para os sobreviventes e familiares das vítimas, há um vazio assistencial que é ocupado pelo mercado. A investigação permite afirmar que há problemas de vínculo e de modelo de atenção também no campo da saúde mental. A forma de inserção do hospital e a simultânea ausência da APS são efeitos de simplificações na concertação das redes no município e na região. Portanto, a longitudinalidade do cuidado continua desafiando a qualidade do atendimento às pessoas e coletivos afetados pelo desastre.

A avaliação sobre a resiliência do sistema foi positiva nos dois primeiros momentos, caracterizados pela capacidade de mobilização, tanto de pessoas do município como de instituições e recursos de outros territórios, processo que resultou da capacidade de concertação do MS e da SES-RS. O enfrentamento imediato dependeu da capacidade de mobilização, de convocação, de acionar suporte para o local. A presença da Presidenta da República, do Ministro da Saúde, do Secretário de Estado da Saúde e das coordenações dessas esferas autorizou a ampliação da atuação da gestão regional, especialmente em relação a recursos financeiros. Houve coordenação na gestão da crise, o que é referido como um aspecto importante.

Em relação à gestão do cuidado1111 Campos GWS. Método Paideia: análisis y cogestión de colectivos. Remedios de Escalada: De la UNLa – Universidad Nacional de Lanús; 2021., a SES, no primeiro momento, conseguiu articular as ações necessárias de forma integral, equânime, sem privilégios. Seguindo as diretrizes do SUS e a concepção de acesso universal, a utilização de equipamentos e as decisões relacionadas com a remoção de pacientes foram reguladas pelo SUS. Por algum tempo, dadas as dimensões do desastre, a lógica do setor empresarial ficou suspensa, e toda a rede foi gerida pelo interesse público. A regulação foi uma habilidade exigida nesse momento, tanto para decisão sobre as internações como para transporte de vítimas mais graves para hospitais de maior porte.

No segundo momento, apesar da fragilidade da Raps municipal, que ficou ainda mais explicitada pelo impacto do desastre, o sistema também conseguiu utilizar, de forma satisfatória, suas habilidades para responder às novas necessidades. Nesse momento, apareceram contradições nas condutas dos trabalhadores nos diferentes pontos da rede: enquanto alguns investiam em apoio institucional, rodas de conversa, acolhimento e cogestão, outros apostavam exclusivamente na ampliação do atendimento ambulatorial e internações hospitalares.

O SUS, em sua expressão institucional, em 2013, mostrou capacidade para responder adequadamente ao evento e monitorá-lo. A existência das redes de urgência e emergência, a capacidade de regulação e o suporte com tecnologias de apoio e gestão rapidamente mobilizadas e adaptadas às características e dimensões do desastre determinaram a qualidade da resposta. Nesse contexto, a presença da Presidenta Dilma Rousseff e do Ministro Alexandre Padilha reforçou a ação estatal e garantiu alinhamento da gestão das ações de enfrentamento.

A situação da rede no momento do desastre e as ações e disputas desencadeadas nos momentos iniciais criaram serviços e desenharam as redes. A fragmentação inicial limitou a capacidade de adaptação para o enfrentamento da crise. O retorno às características anteriores ao desastre também impede a institucionalização das características que a rede adquiriu e que ampliariam o acompanhamento das sequelas de longo prazo. A rede não superou a fragmentação e a centralização no hospital e falta apostar na AB para a continuidade do cuidado. Em grande medida, os serviços voltaram a ser como eram antes do desastre, e o cuidado aos sobreviventes foi formatado pelo desenho institucional tradicional.

Conclusões

O estudo indicou características da rede que ampliaram a sua capacidade para absorver os impactos de um desastre, sendo que as principais são: trabalho em rede, capacidade para estabelecer conexões de forma rápida, existência de trabalhadores com conhecimento do território e capacidade para desenvolver contratos. Em relação à RAS, importa ter um sistema público de acesso universal e atendimento integral, com fortalecimento da AB. Para o enfrentamento do desastre da Boate Kiss, foi de extrema relevância ter, no Brasil, a existência do SUS. A Força Nacional de Saúde, como equipe especialista em desastres, foi decisiva. A capacidade de regulação do SUS possibilitou o mapeamento e a utilização dos leitos de UTI em espaço de gestão que extrapolou o município ou a região.

A capacidade de gestão, com a possibilidade de operacionalizar as decisões do cotidiano de forma mais democrática e inclusiva, foi fator valorizado pelos participantes da pesquisa. A presença de voluntários e da mídia acrescentou complexidade à gestão do cuidado em situações de desastres. Em uma crise como a desencadeada pelo desastre da Boate Kiss, em que o local não dá conta do atendimento, a entrada de outros técnicos e de outros comandos nos serviços não é tranquila e precisa ser contratada/pactuada. Nesse sentido, a inclusão de pessoas, tecnologias e competências requer grande capacidade de gestão.

O enfrentamento imediato do desastre precisa considerar a necessidade de fortalecimento da RAS. Em Santa Maria-RS, a ação permitiu composições entre equipes locais (de referência, conhecedora do território – incluindo suas fragilidades) e os apoiadores (especialistas ou reforços temporários). Chamou atenção que as áreas em que a rede local era mais frágil tendem a seguir sendo frágeis. No caso de Santa Maria-RS, houve o diagnóstico da fragilidade da AB, mas as iniciativas de fortalecimento desse espaço não foram suficientes para enfrentar a magnitude da crise e seus efeitos.

O fato de a AB não ter se fortalecido impede avanços no seguimento dos sobreviventes, abrindo espaço para que características predatórias voltem a se inscrever na relação público-privada. Nesse contexto, há diminuição do acesso e retorno a modos tradicionais de gestão. A rede que se formou a partir do desastre da Boate Kiss não é mais a mesma que havia antes do desastre, mas, passada uma década, não é a mesma que enfrentou a crise. As habilidades adquiridas foram incorporadas de forma muito desigual nos diferentes espaços do SUS, o que indica a necessidade de incluir, nas intervenções em desastres, estratégias para que as características e as adquiridas se institucionalizem.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. População residente. Estudo de estimativa populacionais por município, idade e sexo 2000-2021 – Brasil. [acesso em 2022 mar 19]. Disponível em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/popsvsbr.def.
    » http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/popsvsbr.def.
  • 2
    Cardoso EK, Fernandes AM, Rieder MM. Atuação da fisioterapia às vítimas da Boate Kiss: a experiência de um Hospital de Pronto-Socorro. Rev Bras Queimaduras. 2014; 13(3):136-141.
  • 3
    Organização Pan-Americana da Saúde. Busca por tornar sistemas de saúde resilientes às novas necessidades e ameaças deve ser prioridade máxima, afirma diretora da OPAS. 2016. [acesso em 2017 jan 13]. Disponível em: http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5295:tornar-sistemas-de-saude-resilientes-as-novas-necessi-dades-e-ameacas-deve-ser-prioridade-maxima-afirma-diretora-da-opas&Itemid=450.
    » http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5295:tornar-sistemas-de-saude-resilientes-as-novas-necessi-dades-e-ameacas-deve-ser-prioridade-maxima-afirma-diretora-da-opas&Itemid=450.
  • 4
    Freitas CM, Carvalho ML, Ximenes EF, et al. Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e construção da resiliência – lições do terremoto no Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2012; 17(6):1577-1586.
  • 5
    Michels B, Barros VG. Integração interinstitucional e aumento de resiliência na gestão de desastres naturais dentro do contexto da Política Nacional de Pro-teção e Defesa Civil – Aplicação na Bacia Hidrográfica Do Rio Águas Vermelhas – Joinville, SC. Ciênc Nat. 2016; 38(3):1394-1402.
  • 6
    Anaut M. A resiliência: ultrapassar os traumatismos. Lisboa: CLIMEPSI Editores; 2005.
  • 7
    Barbour R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed; 2009.
  • 8
    Olsen W. Coleta de dados: debates e métodos fundamen -tais em pesquisa social. Porto Alegre: Penso; 2015.
  • 9
    Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora da Unicamp; 2011.
  • 10
    Bergson H. Memória e vida. São Paulo: Martins Fontes; 2006. [acesso em 2022 fev 23]. Disponível em: https://www.cidadefutura.com.br/wp-content/uploa-ds/BERGSON-Henri.-Mem%C3%B3ria-e-Vida-1.pdf.
    » https://www.cidadefutura.com.br/wp-content/uploa-ds/BERGSON-Henri.-Mem%C3%B3ria-e-Vida-1.pdf.
  • 11
    Campos GWS. Método Paideia: análisis y cogestión de colectivos. Remedios de Escalada: De la UNLa – Universidad Nacional de Lanús; 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2022
  • Aceito
    15 Dez 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4036, sala 802, 21040-361 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel. 55 21-3882-9140, Fax.55 21-2260-3782 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br