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O dólar na Argentina e a URV no Brasil: objetivos, funcionalidade e resultados obtidos

Dollar in Argentina and URV in Brazil: targets, functionality, and results

RESUMO

O artigo discute metas, funcionalidade e resultados do processo de fixação de preços relativos no Brasil e na Argentina no período pré-desinflação, ou seja, antes do Plano Real e do Plano Cavallo, respectivamente.

PALAVRAS-CHAVE:
Estabilização; crise cambial; dolarização; substituição monetária

ABSTRACT

The article discusses targets, functionality, and results of the process to set relative prices in Brazil and Argentina in the pre-desinflation period, that is before Real Plan and Cavallo Plan respectively.

KEYWORDS:
Stabilization; currency crisis; dollarization; currency substitution

1. INTRODUÇÃO

Em artigo publicado nesta Revista intitulado “A URV e sua função de alinhar preços relativos” (ver Sicsú, 1996SICSÚ, J. (1996). “A URV e sua função de alinhar preços relativos”. Revista de Economia Política, abr.-jun., 16(2).), assumiu-se a tese de que o objetivo da Unidade Real de Valor era induzir a economia brasileira a sincronizar os reajustes de preços no período pré-estabilização. A URV desempenharia o mesmo papel que o dólar cumpre em processos inflacionários agudos e nas hiperinflações: encontraria um vetor sustentável de preços relativos. A URVerização da economia brasileira seria tão funcional quanto é a dolarização que normalmente ocorre em processos inflacionários mais intensos1 1 Para maiores detalhes sobre o objetivo da URV, ver Bresser-Pereira (1994) e Cardim de Carvalho (1994) . Contudo, mostrou-se, no referido artigo, que o processo de URVerização tentado no Brasil não cumpriu o papel que a dolarização espontânea tem cumprido nas economias contaminadas por processos inflacionários agudos.

Neste artigo, demonstra-se que o dólar, na Argentina, no período anterior à implementação do Plano Cavallo, desempenhou eficientemente a função pretendida pela URV. No período que antecedeu o Plano Cavallo, que foi lançado no dia 1º de abril de 1991, os agentes econômicos precificavam generalizadamente sem utilizar a unidade de conta oficial, o austral. Preços e contratos eram firmados espontaneamente em dólar e, até mesmo, grande parte das transações eram validadas em dólar cash. O dólar americano desempenhou as três funções clássicas da moeda - unidade de conta, meio de troca e reserva de valor - no período pré-estabilização. A economia argentina efetivamente se dolarizou, tal como é mostrado na próxima seção, em que se mede o grau de dolarização de diversos setores dessa economia. Consequentemente, pode-se afirmar que seus preços relativos encontraram um vetor sustentável antes da implementação do Plano Cavallo2 2 Explicações detalhadas sobre a relação entre processos de dolarização e alinhamento de preços relativos são dadas em Cardim de Carvalho (1994) e Sicsú (1996). .

2. RESULTADOS E CONCLUSÕES SOBRE A DOLARIZAÇÃO ARGENTINA NO PERÍODO PRÉ-PLANO CAVALLO

A Argentina viveu muitos anos sob um regime de inflação aguda. Um regime de inflação aguda se caracteriza basicamente pela conformação eventual de contextos propícios a eclosão de crises cambiais que desembocam em processos ou episódios hiperinflacionários. Dois episódios desta natureza marcaram o período anterior ao Plano Cavallo - de fevereiro a junho de 1989 e de dezembro deste ano a março de 1990. Durante esses eventos, o grau de monetização da economia caiu a níveis mínimos. Contidas as crises, havia uma certa recuperação do uso do austral. Entretanto, jamais voltava-se aos níveis anteriores (Situación Latino-Americana, 1990SITUACION LATINOAMERICANA - CEDEAL. (1990). Ano 1, n. 0, nov., Madri.: 11).

As políticas econômicas de derrubada das duas hiperinflações foram eficazes para reduzir as taxas de variação do nível de preços. Contudo, não foram eficazes para derrubar as expectativas de uma nova crise cambial ou, equivalentemente, as expectativas de um novo episódio hiperinflacionário. Nesse sentido, embora tenha havido uma redução drástica das taxas inflacionárias com o fim das hiperinflações, a dolarização da economia permanecia porque representava a melhor estratégia defensiva individual diante da expectativa de novas crises3 3 Detalhes sobre os motivos políticos e econômicos que fizeram eclodir as duas hiperinflações na Argentina e uma descrição das medidas de estabilização adotadas podem ser encontrados em Situacion Latinoamericana - Cedeal (1990 e 1991). .

Para medir o grau de dolarização na Argentina, utilizou-se os dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística y Censos (INDEC) e pela CEPAL. O mesmo método estatístico usado para medir o grau de URVerização no Brasil em Sicsú (1996SICSÚ, J. (1996). “A URV e sua função de alinhar preços relativos”. Revista de Economia Política, abr.-jun., 16(2).) foi utilizado aqui para medir o grau de dolarização da economia argentina. Para o Brasil, foi estudada a relação entre a URV e o preço de diversos itens e setores. Obteve-se o grau de URVerização de cada segmento da economia. Para a Argentina, analisou-se a relação entre a variação do preço do dólar e a variação dos preços de cinco importantes setores da economia. O índice obtido a partir do estudo dessa relação é o grau de dolarização dos setores analisados.

A análise da variação percentual mensal do dólar e dos preços dos setores “agricultura”, “indústria”, “serviços públicos”, “construção” e “alimentos” da economia argentina mostra resultados bastante diferentes daqueles obtidos pela economia brasileira, isto é, demonstra que o conjunto dos preços estava dolarizado/alinhado nos treze meses anteriores ao Plano Cavallo (março/90 a março/91). Os graus de dolarização obtidos foram os seguintes: setor “construção”, 81,0%; “agricultura”, 63,3 %; “indústria”, 81,3%; “alimentos”, 59,9% e “serviços públicos”, 57,3%. Os Gráficos 1 e 2 ilustram que, de fato, a trajetória da variação percentual mensal do dólar foi acompanhada pela trajetória dos preços dos setores mais importantes da economia argentina.

Gráfico 1

Gráfico 2

O mais baixo grau de dolarização dos “serviços públicos” pode ser explicado por duas posturas governamentais. Primeiro, pelas tentativas de desacelerar a taxa de inflação com o uso do instrumento clássico de reajustar as tarifas a uma taxa inferior à taxa de inflação e, segundo, pelas decisões eventuais do governo de recuperar perdas no setor reajustando as tarifas a uma taxa superior a taxa de inflação.

Pode-se inferir, portanto, que os preços relativos estavam praticamente alinhados no período pré-estabilização na Argentina. Nesse sentido, a reforma monetária estabilizadora, ou seja, a substituição da velha moeda, o austral, pelo peso, foi implementada em um contexto favorável. Um contexto que estava menos sujeito a pressões inflacionárias advindas dos setores que, porventura, tiveram seus preços defasados durante a fase que antecedeu a estabilização.

Em conclusão, pode-se afirmar ainda que, dado o alto grau de dolarização observado na economia argentina, a taxa de câmbio funcionou como instrumento sinalizador para facilitar a reorganização do sistema de preços relativos. O dólar cumpriu, durante o regime de inflação aguda, o papel que era esperado que a URV cumprisse no Brasil. O exercício realizado neste artigo comprova que o dólar cumpriu espontaneamente o papel que o mecanismo artificial da URV não desempenhou. Cabe observar que a economia argentina ingressou em um profundo processo de dolarização devido às características específicas do seu regime inflacionário, como foi explicado anteriormente. Contudo, a disseminação do dólar nesse país, foi facilitado devido à inexistência de indexadores oficiais estabelecidos e calculados por órgãos governamentais tal como, durante anos, foi a correção monetária no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRESSER-PEREIRA, L.C. (1994). “A economia e a política do Plano Real”. Revista de Economia Política, 14(4), out.-dez.
  • CARDIM DE CARVALHO, F. (1994). “Reforma monetária, indexação generalizada e o Plano de estabilização”. Revista de Economia Política 14(2), abr-jun.
  • SICSÚ, J. (1996). “A URV e sua função de alinhar preços relativos”. Revista de Economia Política, abr.-jun., 16(2).
  • SITUACION LATINOAMERICANA - CEDEAL. (1991). Ano 1, n. 2, abr., Madri.
  • SITUACION LATINOAMERICANA - CEDEAL. (1990). Ano 1, n. 0, nov., Madri.
  • 1
    Para maiores detalhes sobre o objetivo da URV, ver Bresser-Pereira (1994BRESSER-PEREIRA, L.C. (1994). “A economia e a política do Plano Real”. Revista de Economia Política, 14(4), out.-dez.) e Cardim de Carvalho (1994CARDIM DE CARVALHO, F. (1994). “Reforma monetária, indexação generalizada e o Plano de estabilização”. Revista de Economia Política 14(2), abr-jun.)
  • 2
    Explicações detalhadas sobre a relação entre processos de dolarização e alinhamento de preços relativos são dadas em Cardim de Carvalho (1994CARDIM DE CARVALHO, F. (1994). “Reforma monetária, indexação generalizada e o Plano de estabilização”. Revista de Economia Política 14(2), abr-jun.) e Sicsú (1996SICSÚ, J. (1996). “A URV e sua função de alinhar preços relativos”. Revista de Economia Política, abr.-jun., 16(2).).
  • 3
    Detalhes sobre os motivos políticos e econômicos que fizeram eclodir as duas hiperinflações na Argentina e uma descrição das medidas de estabilização adotadas podem ser encontrados em Situacion Latinoamericana - Cedeal (1990SITUACION LATINOAMERICANA - CEDEAL. (1990). Ano 1, n. 0, nov., Madri. e 1991SITUACION LATINOAMERICANA - CEDEAL. (1991). Ano 1, n. 2, abr., Madri.).
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    JEL Classification: E52; F41.
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    O autor agradece o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro - FAPESP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1998
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