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IMAGINAÇÃO E HORROR. UMA REFLEXÃO A PARTIR DE BACHELARD

RESUMO

O artigo propõe-se a explorar, a partir de uma posição bachelardiana, as relações entre imaginação e horror. Para tanto, examino o campo dos sonhos vividos durante o regime de terror nazista, e em especial o material onírico e a experiência vivida por Jean Cayrol no universo concentracionário, pondo à prova teses fundamentais da concepção bachelardiana acerca da imaginação criadora em sua significação antropológico-existencial.

Palavras-chave:
Bachelard; Jean Cayrol; imaginação simbólica; sonhos; regime de terror; experiência concentracionária.

ABSTRACT

The paper explores the relations between imagination and horror, from a Bachelardian perspective. The analysis draws on dreams from the times of the Nazi regime, and especially in the dream material collected by Jean Cayrol during his experience as a prisoner in the concentration camp of Mauthausen. Fundamental tenets of Bachelard’s conception about the creative imagination and its anthropological-existential meaning are thus tested.

Keywords:
Bachelard; Jean Cayrol; symbolic imagination; dreams; regime of terror; concentration camp experience.

Para além do devaneio feliz: no reino dos pesadelos que Bachelard evitou

Gaston Bachelard é, sem dúvida, um dos pensadores do século XX que ofereceu uma das contribuições mais originais e significativas para a reflexão sobre a imaginação criadora. Toda a assim chamada “vertente noturna” de seu pensamento é rica de intuições e perspectivas seminais acerca da função imaginativa humana, em sua significação existencial e antropológica intransferível. No entanto, provavelmente por uma questão de temperamento pessoal, Bachelard evitou todo um campo de pesquisa sobre a atuação da imaginação em sua vertente noturna, um campo que, em face da configuração específica do Mundo da Vida no momento avançado da Idade da Técnica em que nos situamos, com seus problemas angustiantes, parece ser aquele que mais urgentemente solicita a atenção e reflexão de quem toma a imaginação não apenas como mais um tema de entretenimento teórico, mas sim como uma atividade vital de que depende integralmente a forma concreta de ser-no-mundo.

Ao pensar as relações entre o devaneio (que se vincula à consciência e à subjetividade) e o sonho noturno (que está mais próximo dos abismos inconscientes da alma humana), Bachelard depara-se com a presença de um Nada que se insinua através do que ele chama “sonhos de extrema noite”, nos quais o sujeito perde o seu ser (cf. Bachelard, 1988, p. 141). Referindo-se a tais sonhos como “sonhos absolutos”, Bachelard afirma que neles se dá um aniquilamento do ser do sujeito, e se pergunta: “Que se pode recuperar desse desastre do ser? Haverá ainda fontes de vida no fundo dessa não vida?” (Bachelard, 1988, p. 140). A catástrofe subjetiva é associada à imagem de “buracos negros” (ibid, p. 141) que, para Bachelard, “são talvez a marca do instinto de morte que opera no fundo das nossas trevas” (ibid.). E em seguida Bachelard propõe a pergunta-tarefa: “Que filósofo nos dará a Metafísica da noite, a metafísica da noite humana?” (ibid.)

Certamente não o próprio Bachelard. Pois ele próprio confessa em uma passagem de A chama de uma vela: “Conheço bem as vertigens. O vazio me atrai e me assusta. Mas não sofro de vertigens empedoclianas. A solidão da morte é um tema de meditação grande demais para o sonhador de solidão que sou” (Bachelard, 1989a______. “A chama de uma vela”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989a., p. 36). A homologia entre “Nada” e “Morte”, sustentada na referência ao aniquilamento do ser do sujeito, é a senha que franqueia o acesso imaginante-reflexivo à dimensão da existência humana que não se deixa captar sem mais pelas noções de repouso e felicidade, que comandam o devaneio poético tal como apresentado por Bachelard. Esta dimensão se expressa antes pelas imagens do horror e do pesadelo. Tal virtualidade na meditação bachelardiana sobre a imaginação criadora não passou despercebida a seu autor:

Sentimos claramente que, se eliminarmos das nossas pesquisas as obras literárias que se inspiram nos pesadelos, fecharemos perspectivas que visam ao destino humano e, ao mesmo tempo, nos privaremos do esplendor literário dos mundos do apocalipse (Bachelard, 1988BACHELARD, G. “A poética do devaneio”. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 162).

Observe-se, portanto, que é o próprio Bachelard quem designa o campo experiencial dos pesadelos e das obras literárias nele enraizadas como matéria que pertence legitimamente ao âmbito das pesquisas que ele empreende em sua vertente noturna. Em outras palavras, a Noite não é apenas o espaço existencial aconchegante e acolhedor que embala a felicidade tranquila do sonhador de devaneios bachelardiano. Ela é também o espaço da angústia, dos monstros, da Morte, do Nada que ameaça o sujeito, da violência destrutiva, do vazio, do horror. Em sua ambiguidade insuperável, a Noite (visada pela vertente noturna do projeto bachelardiano) tanto estimula no sujeito devaneante os sonhos de felicidade e vida quanto os pesadelos de horror e morte. Bachelard ateve-se preferencialmente à exploração da primeira dimensão; a segunda permanece como uma virtualidade não desenvolvida em sua meditação noturna, embora explicitamente reconhecida pelo próprio Bachelard. O desenvolvimento dessa segunda dimensão necessariamente implica uma ampliação de perspectiva com relação ao personagem central da segunda fase da vertente noturna bachelardiana: o sonhador de devaneios que realiza sua felicidade. Pois, evidentemente, não é possível ser feliz e desfrutar da tranquilidade existencial do sonhador de devaneios d'A Poética do Espaço quando a matéria-prima da experiência humana assume a forma angustiante do pesadelo.

O presente trabalho é uma primeira incursão no reino dos pesadelos que Bachelard não se dispôs a abordar. Concordando com a intuição de Bachelard na citação precedente, estou convencido de que é necessário e urgente abrir as perspectivas que visam ao destino humano encerradas nesse reino. Pois quando a realidade efetiva planetária assume os traços concretos de um gigantesco pesadelo - violência desenfreada, destruição insana das condições de sustentação da vida no planeta, terrorismo disseminado, cisões esquizoides liquidando o reconhecimento e a disposição ao diálogo na esfera sociopolítica, e, last but not least, esvaziamento “pós-humano” de tudo aquilo que tradicionalmente constituía a substância do modo humano de ser -, parece imprescindível abrirse imaginativa e reflexivamente a esse pesadelo e sondar o sentido e as vias de criação possivelmente embutidas nessa grande destruição universal.

A reflexão que proponho aqui, portanto, não é propriamente sobre Bachelard. Reitere-se: o autor de A Poética do Devaneio estava interessado em uma imaginação feliz, e explorou os benefícios existenciais dos sonhos e dos devaneios que moldam a aliança fundamental do ser humano ao mundo, em situações propícias à realização da felicidade do sonhador de devaneios. A leitura das obras que constituem sua vertente noturna confirma cabalmente essa opção de Bachelard. No entanto, a concepção bachelardiana de imaginação criadora permite-nos extrapolar o campo delimitado que ele efetivamente explorou, e examinar o sentido e a ação da função imaginante em situações existenciais que de partida não podem ser referidas à noção de felicidade. Tal é o caso dos pesadelos vividos que, como lembra Bachelard, inspiram todo um campo de obras literárias que visam ao destino humano. Assim, creio ser plenamente legítima a extensão da perspectiva bachelardiana sobre a imaginação criadora para abordar o pesadelo, a morte, o horror, a violência, a monstruosidade.1 1 A bem da verdade, em uma obra admirável e pouco mencionada nos estudos bachelardianos - o Lautréamont, de 1940 - Bachelard explora o imaginário monstruoso e violento de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, oferecendo portanto um referendo à ampliação da reflexão rumo ao pesadelo aqui proposta. Significativamente, intuições fundamentais acerca da natureza da imaginação criadora já estão presentes nesta obra, e só seriam desenvolvidas posteriormente na sequência das obras devotadas à vertente noturna. Tal é a minha proposta neste trabalho: refletir, a partir de Bachelard, sobre a imaginação e o horror.

Além disso, a reflexão que ofereço difere do procedimento usual de Bachelard, na medida em que ele trabalha via de regra sobre as obras literárias que se inspiram nos sonhos e devaneios humanos. Há uma solidariedade entre essas fontes psicológicas de inspiração e as obras que as transpõem para o plano estético-literário, e Bachelard instala-se no plano da transposição literária já consumada. Adoto aqui uma opção diferente: ao examinar a experiência do escritor francês Jean Cayrol, concentrar-me-ei no fenômeno onírico tal como ele aparece em uma situação na qual a realidade opressiva atenta contra a integridade humana do sujeito. Acredito que a meditação cuidadosa sobre as relações entre a pressão angustiante da realidade sombria, que aparece como pesadelo realizado, e as respostas oníricas dos indivíduos que padecem tal realidade pode descortinar perspectivas de sobrevivência da humanidade radicalmente ameaçada, perspectivas, portanto, que dizem respeito ao destino humano vivido e revelado no interior mesmo do pesadelo destruidor. Desta forma, a função vital e literalmente fundamental da imaginação criadora na autorrealização humana pode aparecer em sua dimensão mais plena e decisiva. Cayrol elaborou sua “estética lazareana” (que, de pleno direito, poderia ser incluída no espaço do “esplendor literário dos mundos do apocalipse” a que se refere Bachelard) a partir da experiência sombria do cotidiano concentracionário. Contudo, nesta primeira incursão reflexiva no campo das relações entre imaginação e horror optei por examinar preferencialmente as fontes oníricas diretas que inspiram a produção literária lazareana de Cayrol, somadas a suas reflexões sobre a experiência concentracionária e a estética que dela decorre, e não as obras literárias lazareanas em si. Assim, situo-me no primeiro plano, da experiência “bruta” do horror e da atividade imaginativa em carne-viva, poderíamos dizer, anterior à mediação consciente que realiza a transposição literária. Mas, a despeito da diferença que distingue um sonho concreto de uma obra literária, vale lembrar que o fenômeno onírico não só serve de inspiração à literatura, como também apresenta semelhanças estruturais com procedimentos ficcionais literários (narratividade, simbolização, personificação, deslocamentos metonímicos, condensações metafóricas etc.), e daí reforça-se a legitimidade da inspiração onírica na transposição literária.

Finalmente, é necessário observar que, dada a natureza da tarefa a que me proponho neste trabalho, algumas das notas mais conhecidas da concepção bachelardiana de imaginação não vão aparecer na reflexão que se segue. Assim, não só a concepção do devaneio feliz, como também toda a classificação das imagens segundo temperamentos poéticos definidos pelos quatro elementos, que constitui a originalidade da noção de imaginação material, serão deixadas de lado. O foco da leitura dos fenômenos sombrios que serão abordados fará referência apenas aos aspectos mais fundamentais da concepção de imaginação criadora em Bachelard (aspectos que, a propósito, frequentemente encontram correspondência em outras concepções teóricas contemporâneas sobre a imaginação, ainda que não com a ênfase particular que recebem na estética bachelardiana). Vale a pena indicar resumidamente esses aspectos, segundo os quais a concepção de imaginação criadora em Bachelard será como que posta à prova no material sombrio trabalhado a seguir.

Para ser verdadeiramente criadora, a imaginação deve se desvencilhar das imagens do passado (passado do real, passado da percepção, passado da recordação) e assumir sua função específica de previsão ou projeto, pela qual ela determina “a essência da realização que lhe convém” (Bachelard, 1989b______. “Lautréamont”. Lisboa: Litoral Edições, 1989b., p. 123). Assim, podemos apontar o paradoxo da imaginação: por um lado ela é atividade que atualiza e se define pela função do irreal (cf. Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., 1990b______. “A terra e os devaneios do repouso. Ensaio sobre as imagens da intimidade”. São Paulo: Martins Fontes, 1990b.), em sua oposição à realidade dada e consumada; por outro, ela é eminentemente atividade realizadora, que cria e projeta uma outra realidade, incessantemente.

As forças imaginantes criadoras “escavam o fundo do ser; querem encontrar no ser ao mesmo tempo o primitivo e o eterno. Dominam a época e a história” (Bachelard, 1989c, p. 1). A realização imaginante assenta-se numa recusa ao realismo da percepção (em pacto com a realidade dada) e manifesta um sentido subjetivo (cf. Bachelard, 1989c______. “A água e os sonhos”. São Paulo: Martins Fontes, 1989c., pp. 64 e 123; Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., p. 102), que brota daquele “fundo do ser” que as forças imaginantes escavam. Por isso Bachelard define a imaginação como a “faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade”, sendo “uma faculdade de sobre-humanidade” (Bachelard, 1989c, p. 18). Donde a consequência antropológica da imaginação criadora: “deve-se definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição" (ibid.).

Ultrapassar a realidade (dada), ultrapassar a humana condição na direção de uma sobre-humanidade: eis a forma com que Bachelard assinala na imaginação o impulso da transcendência, que é a essência distintiva da vida do espírito em seu movimento de autorrealização. Ao escavar o fundo do ser, as forças imaginantes arrebatam o homem e o impelem à transcendência de sua “humana condição” e dos limites insatisfatórios de uma situação particular, ordenando-o a uma realização ulterior que se propõe através da imaginação, verdadeiro agente do movimento de transcendência.2 2 “Na verdade o sono, que é considerado uma interrupção da consciência, liga-nos a nós mesmos. O sonho normal, o sonho verdadeiro, é assim frequentemente o prelúdio, e não a sequela, de nossa vida ativa” (Bachelard, 1991, p. 79). Por isso, como lembrava Maria Zambrano, “o homem é o ser que padece sua própria transcendência” (Zambrano, 1994ZAMBRANO, M. “Os sonhos e o tempo”. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1994., p. 15). Ultrapassando a realidade dada, a imaginação criadora impõe-se como “um tipo de mobilidade espiritual” (Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., p. 2) que exibe sua relação com a existência: “a existência é assim, mas a imaginação criadora a quer de outra maneira” (Bachelard, 1991______. “A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças”. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 94).

Assim, pode-se antecipar que, em uma situação excepcional que asfixia e imobiliza a humanidade em uma realidade sombria, toda a potência dinâmica, vital e criadora da imaginação será convocada para ultrapassar tal realidade e afirmar o sentido subjetivo que se enraíza no fundo do ser, onde se encontram o primitivo e o eterno. Para Bachelard, a imagem poética “é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do nosso ser. Aqui, a expressão cria o ser” (Bachelard, 1989d______. “A poética do espaço”. São Paulo: Martins Fontes, 1989d., p. 8). Por conseguinte, entende-se outra marca distintiva da imaginação na concepção bachelardiana: “a imaginação é necessariamente valorização” (Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., pp. 269-270). E a valorização brota do fundo do ser, que se manifesta no fundo dos sonhos. Criar o ser pode ser afirmado como o valor último que põe em movimento a imaginação, em seu dinamismo de transcendência. Por outro lado, é preciso assinalar a ambiguidade reconhecível na atividade imaginante. Pois se ela conduz o sonhador de devaneios bachelardiano ao repouso e à felicidade, não se deve esquecer que “a imaginação é, no sujeito, suficientemente viva para impor suas visões, seus pavores, sua desgraça” (Bachelard, 1990a, p. 102). Eis aí, mais uma vez, a autorização para examinarmos a existência pavorosa sob o ângulo da atividade imaginante criativa, que tanto pode sufocar o sujeito sonhador, repetindo a ameaça que pesa sobre sua humanidade, quanto libertá-lo para uma realização mais ampla de sua existência humana ameaçada.

O pesadelo na vida cotidiana: Charlotte Beradt e os sonhos de alemães durante a ascensão do nazismo

Entre 1933 e 1939, ano em que se exilou nos Estados Unidos, Charlotte Beradt, jornalista e ensaísta alemã judia, ligada ao Partido Comunista alemão, recolheu sonhos de pessoas comuns que viveram a ascensão e triunfo do nazismo na Alemanha. Neles nota-se claramente como a atmosfera totalitária invade a esfera subjetiva e manifesta-se no recesso mais íntimo da própria vida onírica dos indivíduos. A eficácia do terror de Estado na dominação dos sujeitos transparece no sentimento de perda da privacidade, da intimidade, resultando na angustiante sensação de se estar sendo vigiado e perseguido, na tentativa desesperada de conformar-se à nova norma totalitária, mas também na resistência subjetiva a tal conformação. O material onírico recolhido por Charlotte Beradt é um precioso documento histórico, que vem lançar luz sobre os modos como a subjetividade realiza a experiência da opressão totalitária, opressão que incide destrutivamente sobre os fundamentos da própria subjetividade. De forma genérica, podemos apontar duas alternativas: ou bem os sonhos figuram processos de “autoalienação, desenraizamento, isolamento, perda de identidade e interrupção da continuidade da existência” (Beradt, 2017, p. 30), indicando o esforço por vezes desesperado dos indivíduos para se adaptarem e conformarem às normas do terror, ou bem mostram a resistência subjetiva a esses mesmos processos.

Como exemplo típico da primeira modalidade genérica (que cobre a maior parte dos sonhos coligidos por Charlotte Beradt), reproduzimos o sonho de uma mulher de trinta anos, liberal e cultivada: “Quadros são colocados em cada esquina para substituir as placas de rua, proibidas. Esses quadros anunciam em letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que o povo está proibido de pronunciar. A primeira palavra é Lord - por precaução, devo ter sonhado em inglês, e não em alemão. As outras esqueci ou provavelmente nem cheguei a sonhar com elas, com exceção da última: Eu'” (apud Beradt, 2017, p. 45). Interpretado desde o ângulo da correspondência das imagens oníricas com a realidade histórica vivida pela sonhadora, o sonho manifesta o espaço ocupado pelo terror totalitário, no qual se impõe a norma de eliminar a referência a Deus (Lord), à própria pessoa (Eu), e a relação entre um e outro - relação que, como observa C. G. Jung, era uma das defesas do indivíduo contra a massificação e a assimilação pelo Estado (cf. Jung, 1970JUNG, C. G. “The Undiscovered Self (Present and Future)”. In: Collected Works of C.G. Jung, vol. 10: Civilization in Transition. Princeton: Princeton University Press, 1970.). A eficácia da ameaça do terror transparece no fato de as palavras proibidas nem mesmo serem lembradas ou sonhadas, e as duas que efetivamente o são aparecerem - “por precaução” - em inglês, e não no alemão nativo da sonhadora. A precaução mostra a disposição ao conformismo e à adaptação à norma totalitária: o terror prevalece sobre a defesa da subjetividade pessoal, e assim o indivíduo consente em sua desumanização, acatando por puro pavor uma proibição que vem selar “a desorientação dos que estão prestes a se transformarem de pessoas em funções” (Beradt, 2017, p. 46).

Já a força de resistência do sujeito confrontado com a sua desumanização pelo regime do terror transparece em sonhos como o seguinte, de uma dona de casa burguesa que admirava e se identificava com a audácia e firmeza de resistência de um grupo de mulheres de operários presos: “Cada noite, esforço-me incessantemente para remover a suástica da bandeira nazista, o que me deixa orgulhosa e feliz, mas, quando chega a manhã, lá está ela de volta, costurada na bandeira” (apudBeradt, 2017BERADT, C. “Sonhos no Terceiro Reich”. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 109). Charlotte Beradt comenta sobre essa sonhadora: “durante a noite, ela se transformou em uma Penélope moderna, agindo com um objetivo que ultrapassava sua personalidade, um objetivo político” (Beradt, 2017, p. 109). Mesmo diante do caráter inexorável do processo histórico que se passa na realidade objetiva, e que é reconhecido sem ilusões no material onírico, a atitude de preservação das fontes que sustentam a subjetividade pessoal não cede diante da força avassaladora do terror. Essa mesma atitude é figurada no sonho de outro homem que se orgulha de sua resistência: “Estou de repente com o uniforme [da União dos Combatentes do Front Vermelho, ligada ao Partido Comunista alemão], em uma coluna da S.A. ‘Você deve estar sentindo um medo terrível’, digo a mim mesmo, mas não tenho medo nem sequer quando arrancam minha roupa e começam a me espancar” (apud Beradt, 2017, p. 109). Quando os valores e ideais que definem o perfil subjetivo pessoal se mantêm intactos em face do regime de terror, então o sujeito não perde sua integridade moral e humana, mesmo que seja brutalizado e despedaçado fisicamente, ao contrário do que acontece com aqueles que sucumbem à atrocidade da violência brutal que se dissemina, segundo as suas diversas modalidades, em todos os espaços da realidade totalitária.

O potencial de produção de consciência implicado no evento onírico vem à tona nesses sonhos, independentemente de se a atitude do sonhador no sonho é a de conformação/adaptação ou a de resistência. Infelizmente, Charlotte Beradt relata apenas o material onírico, sem maiores referências às atitudes dos sonhadores na realidade. Tal limitação nos impede de avaliar o destino concreto do processo subjetivo onírico em sua transposição para a vida pessoal dos sonhadores. Reinhart Koselleck, conceituado historiador alemão, escreve um posfácio ao livro de Charlotte Beradt, no qual afirma que os sonhos recolhidos “eram adequados para libertar uma ação possível para além do registro do terror”, pois o que “em sonho surgia como paralisia também continha força para confrontá-la no estado desperto”, e assim “subjugar-se ao terror no sonho significava resistir fortemente a ele no dia a dia” (Koselleck, 2017KOSELLECK, R. “Posfácio”, in BERADT (2017), p. 162-182., p. 180). Sem dúvida, esta é uma possibilidade que diz respeito ao potencial de produção de consciência aludido acima. No entanto, a ausência de informações sobre o impacto efetivo dos sonhos na vida desperta dos sonhadores que forneceram o material recolhido por Charlotte Beradt impede a confirmação da opinião de Koselleck, que deve permanecer, portanto, como estritamente conjectural, embora respaldada por alguns dos sonhos relatados. Em si mesmo, um sonho é, via de regra, apenas um evento psíquico espontâneo. A produção de consciência, propriamente falando, supõe um trabalho da consciência desperta sobre o sonho rememorado, e uma atitude de abertura às perspectivas implicadas na atividade onírica, como uma fonte de compreensão da experiência subjetiva como um todo. Parafraseando Ricoeur, poderíamos dizer que o sonho, como uma modalidade ímpar de símbolo, dá a pensar. Mas é preciso, justamente, pensar o sonho, integrá-lo à consciência, para assimilar a riqueza existencial que ele comunica e deixar que ela fecunde a vida concreta do sonhador, expressando-se em posturas e ações efetivas.

A rigor, os sonhos relatados por Charlotte Beradt não têm uma densidade propriamente simbólica significativa. Neles não se percebe a mobilização das fontes profundas - e inconscientes - da subjetividade ameaçada. São, antes, reflexos relativamente superficiais da situação objetiva de opressão em que os sujeitos estão imersos, testemunhando um nível direto e imediato da reação subjetiva ao impacto do terror de Estado. O agravamento radical do processo desumanizante vai convocar a imaginação criadora para sua função de preservação da existência propriamente humana, e então o sentido vital do símbolo se fará evidente.

Confrontando o pesadelo absoluto: a imaginação simbólica na experiência concentracionária

Talvez o modelo paradigmático e brutal para a realidade como pesadelo esteja dado em uma das experiências mais terríveis que a humanidade já fez: a experiência dos campos de concentração e extermínio no século XX, para a qual o nome Auschwitz serve como um indicador imediato da perfeição do mal estruturante dessa experiência. Se a ética e a antropologia filosófica ensinam que na raiz do processo de humanização encontra-se a relação intersubjetiva de reconhecimento, fica claro que a intenção manifesta encarnada na lógica concentracionária é a negação do reconhecimento, e, portanto, a desumanização radical do prisioneiro, através da destruição implacável e sistemática de todo e qualquer suporte para o sentido de liberdade, individualidade, identidade, privacidade, intimidade, comunidade, dignidade. Eis um processo que se pode chamar, a justo título, diabólico, contrariamente à tese da banalidade do mal, que enfatiza a mediocridade banal, burocrática e vazia dos agentes humanos do mal (Adolf Eichmann, por exemplo), e arrisca-se a perder de vista a lógica impessoal diabólica que comanda esse tipo de marionete humano, exteriorizando-se através dele e assim realizando sua obra verdadeiramente demoníaca, que não tem nada de banal, quando percebida em sua monstruosa e sinistra finalidade.

Em um artigo dedicado a pensar os limites da razão em face da terrificante experiência de Auschwitz (cf. Santos, 2012SANTOS, J.H. “Auschwitz ou os limites da razão”. Síntese Revista de Filosofia, Vol. 39, Nr. 125, pp. 325-344, set./dez. 2012.), José Henrique Santos passa em revista as estratégias de desumanização implementadas nos campos de concentração, mediante as quais se tornava “possível matar o espírito sem matar o corpo” (ibid., p. 330), aniquilando a personalidade, mas deixando a vítima biologicamente viva. A onipresença da morte nessa realidade brutal é uma de suas notas mais características: “na oficina da morte de Auschwitz o único affaire que resta é morrer. Quando a morte parece iminente não se espera mais nada. Sonhar com o futuro deixa de ter sentido. A vida perdeu, ela própria, os pontos cardeais que a orientavam [...] Os dias que restam já não se podem renovar, apenas repetir” (ibid., p. 329).

Qualquer espaço para a produção de sentido é igualmente aniquilado na aberração concentracionária:

Se a morte é a única certeza, ou se para morrer basta estar vivo, como dizem uns especuladores muito práticos, então não há nada que possa ser feito. Mas esse pragmatismo da vida quotidiana não serve para quem traz a morte na alma. [...] Já não é possível empurrar a ideia da morte para o futuro indefinido da certeza abstrata: “morrerei um dia, mas enquanto isso...” “Enquanto isso” é algo que deixou de existir, não há mais razões de viver ou morrer. [...] Neste presente absoluto, é como se todo dia fosse o último. Por isso perguntamos: a razão se perde quando não consegue encontrar razões que a justifiquem? Pode-se conviver com a falta de sentido? (ibid., pp. 327-328).

Quando a razão já não sabe dar as razões para continuar a viver em uma realidade absurda, é possível que a imaginação simbólica venha em seu socorro, e acene para o sentido que resiste à negação demoníaca dos pontos cardeais que orientavam a vida. Esta possibilidade está latente na percepção de José Henrique Santos:

Não custa lembrar que a expressão poética está na origem da religião e da filosofia, e, mais do que isso, da própria linguagem em seu movimento interno. Quando substitui uma imagem por outra, como se ampliasse o sentido em outra reflexão, a metáfora move a representação para além do que se pode apontar com o dedo e descobre mediações de segundo grau que o sensível imediato não saberia oferecer: ora, este simples truque poético é o caminho que, desde a origem, a religião percorreu para chegar ao suprassensível (ibid., p. 341).

Eis o procedimento privilegiado da imaginação simbólica, de todo simbolismo real, na verdade. Quando a realidade se torna um pesadelo literal e concreto, assemelhando-se à vivência esquizofrênica (cf. Lifton, 1987LIFTON, R.J. “The image of ‘The end of the world’: a psychohistorical view”. In: ANDREWS, V., BOSNAK, R., GOODWIN, K.W. (ed.) Facing apocalypse. Dallas: Spring Publications, 1987.), na qual justamente a função de simbolização (correlativa à função do irreal em Bachelard) é demolida, então a contraposição vital da imaginação simbólica aparece em toda a sua dramática função de preservação dos fundamentos da vida do espírito. Na experiência concentracionária, expressão maior do regime de terror implantado pelo nazismo, a atividade simbólica da imaginação criadora desempenhou papel fundamental na manutenção do sentido de se estar vivo entre os prisioneiros. Reduzidos à condição de bestas dominadas, despojados brutalmente de sua humanidade, a salvação dos prisioneiros dependia em boa medida da capacidade de imaginar, que se contrapunha à naturalização desumanizante e reabria, na resistência clandestina da vida do espírito, e em particular na vida onírica, as vias da sobrevivência propriamente humana, reafirmando o ato inaugural da humanidade na experiência da transcendência com relação àquilo que se aponta com o dedo - no caso, a realidade absurda e demoníaca do campo de concentração/extermínio.

José Henrique Santos pergunta, ao termo de sua pungente reflexão: “Poderemos um dia voltar à transcendência pura e simples do ser-homem, sem recorrer aos pressupostos religiosos e políticos que as especulações tradicionais acolhem com demasiada indulgência?” (Santos, 2012, p. 343) Ora, já na carne-viva da terrível experiência concentracionária pode-se dizer que, da atividade simbolizante da imaginação criadora, fonte primeva e originária de toda atividade espiritual humana, espontaneamente brotam sinais positivos nesse sentido, sinais ainda mais enfáticos quando se apresentam em meio às circunstâncias terríveis da desumanização concentracionária. É a um dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas que devemos o testemunho, o registro e as primeiras reflexões sobre a função da imaginação simbólica, em sua versão onírica, na resistência do ser-homem às forças que visavam a seu aniquilamento espiritual.

Jean Cayrol (1911-2005), poeta e escritor francês, cristão, engajado na resistência à ocupação nazista da França, preso e deportado para o campo de concentração de Mauthausen, produziu um dos testemunhos ficcionais mais originais dessa experiência abominável e estarrecedora. No centro da resposta que Jean Cayrol oferece, tanto em uma parte substancial de suas reflexões teóricas sobre as condições da literatura pós-concentracionária quanto em sua correlativa produção ficcional, aparece uma figura que ele toma de suas raízes cristãs: Lázaro. Um volume publicado pelas Éditions du Seuil reúne todos os seus ensaios teóricos e escritos poéticos e literários construídos em torno a essa figura simbólica - o morto que retorna à vida pela intercessão do Cristo - e recebe o título adequado de Oeuvre Lazaréenne. Tendo em mente que os próprios prisioneiros dos campos de concentração se descreviam como mortos-vivos, o sentido do uso da figura neotestamentária aparece claramente: Lázaro é, para Jean Cayrol, o símbolo da consciência submetida ao trauma da experiência concentracionária, e que a ele sobrevive. Após este trauma, a consciência da humanidade não pode regredir a um estado anterior, como se ele não houvesse ocorrido. A experiência do mal absoluto concentracionário é irrevogável, indelével, e o seu esquecimento ou desconsideração é o caminho mais curto para a sua repetição ou perpetuação sob novas roupagens. A estética lazareana que Jean Cayrol encaminha visa a alcançar um patamar de consciência em que o dilaceramento da humanidade perpetrado na experiência concentracionária seja franca e abertamente reconhecido. Sem esse reconhecimento torna-se impossível sequer cogitar a possibilidade da suprassunção do trauma em uma humanidade pós-Auschwitz, que em termos cristãos equivaleria à experiência de ressurreição.

Ao espaço concreto do campo de concentração, e à experiência que ali se desenrola, aplica-se a designação imagética de inferno não como figura de linguagem, mas como descrição objetiva. O aniquilamento do ser subjetivo, que Bachelard pressentia nos sonhos de extrema noite, ganha na experiência concentracionária uma significação que seria insuportável para a bonomia do autor de A Poética do Espaço. No espaço vivido do campo de concentração não há lugar para a aliança sem fraturas entre subjetividade e mundo, constitutiva da habitação feliz e significativa de um mundo tornado próprio. Ali se trata de um espaço opressivo, votado em todas as suas dimensões para a destruição sistemática e programada de tudo aquilo que dá suporte à experiência humana de sentido, realização e existência pessoal. Sob tais condições monstruosas, o imperativo cotidiano da sobrevivência assume a prioridade, e então o grande desafio para o prisioneiro submetido à desumanização calculada é justamente o da preservação de sua humanidade, no jogo de uma resistência levada literalmente às últimas fronteiras do imaginável. A grande questão colocada nessa circunstância pavorosa é: como não sucumbir no inferno em que inapelavelmente se é atirado?

A experiência do autor de Lazare parmi nous, que forma o substrato vivido de sua poética lazareana, é instrutiva a esse respeito. Durante o período de sua prisão em Mauthausen, Jean Cayrol recolhia pela manhã os sonhos de seus camaradas. Uma espécie de ritual se estabelecia: a partilha dos sonhos. O sonho, sendo algo à primeira vista destinado a perder-se na clausura do sonhador, ao ser compartilhado cria um laço de intimidade especial entre os companheiros. E como a intimidade era um dos alvos fundamentais da destruição do humano na lógica do campo de concentração, percebe-se o valor de resistência e preservação humana que este simples ritual adquiria. Maurice Blanchot captou bem o sentido envolvido na comunicação dos próprios sonhos: “contamos nossos sonhos por uma necessidade obscura: para torná-los mais reais, vivendo com alguém a singularidade que lhes pertence e que pareceria destiná-los apenas a um só” (apudCuciniello, 2011CUCINIELLO, S. “La couleur de l’horreur. L’expression du rêve sous la plume de Jean Cayrol”. Saarbrücken: Éditions Universitaires Européennes, 2011., p. 24). Por intermédio do sonho compartilhado, nossa solidão ontológica é contrabalançada em ato: o que há de mais íntimo na solidão da experiência onírica é comunicado a um outro, e assim um laço de comunhão é criado. Tem razão, portanto, Sarah Cuciniello, ao dizer que “a imaginação e o sonho são meios de sobrevivência nos campos” (ibid). (Desnecessário dizer que a sobrevivência aqui diz respeito à dimensão de humanidade tornada alvo central da destruição perpetrada na experiência concentracionária, e não simplesmente à sobrevivência física.) A “comunidade de sonhadores” era uma transgressão vital clandestina à norma da S.S. que regia a vida concentracionária.

Além desse aspecto de socialização da intimidade onírica, já por si só meio de resistência e sobrevivência, o conteúdo da própria atividade onírica registrada por Jean Cayrol revela as possibilidades que se descortinam para o sujeito submetido à terrificante experiência concentracionária. Em seu aspecto verdadeiramente salvífico, os sonhos se opunham à brutalidade e atrocidade sofridas na vigília, abrindo um espaço vital onde era possível subtrair-se subjetivamente (e intersubjetivamente) ao absurdo do pesadelo literal vivido no campo de concentração. O testemunho de Cayrol é eloquente: “entrávamos em uma magia negra e carregávamos em nós a única realidade radiante: a realidade de nossos sonhos” (apudCuciniello, 2011CUCINIELLO, S. “La couleur de l’horreur. L’expression du rêve sous la plume de Jean Cayrol”. Saarbrücken: Éditions Universitaires Européennes, 2011., p. 26). No campo de concentração a realidade da vigília se impõe como um pesadelo monstruoso do qual não se pode escapar. As forças de aniquilamento do ser do sujeito assumem uma forma concreta, programática e brutal, nem de longe equiparável à angústia metafísica e existencial que assusta o Bachelard de A Poética do Devaneio diante dos “sonhos de extrema noite”. E é nessa situação, quando a lenda que é o mundo (cf. Bachelard, 1991______. “A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças”. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 153) se manifesta como pesadelo inominável, no qual o ser subjetivo é exposto à aniquilação concreta, que as forças de afirmação do ser são consteladas (“defesas sobrenaturais”, na expressão cristã de Jean Cayrol) e participam da batalha de vida ou morte que se trava no cotidiano do prisioneiro, socorrendo a subjetividade ameaçada.3 3 Cumpre não esquecer que os sonhos são fenômenos involuntários, provenientes das zonas inconscientes e obscuras da subjetividade. Os sonhos acontecem ao sonhador, não são sua produção intencional e consciente. O Bachelard posterior à virada fenomenológica de sua reflexão estética, com seu excessivo privilégio à consciência devaneante, parece ter abandonado a confiança que previamente depositava nas fontes inconscientes da imaginação criadora. De fato, com uma surpreendente entonação cartesiana, o autor de A Poética do Devaneio angustia-se com a possibilidade aniquiladora com que o Nada do inconsciente ameaça a consciência do sujeito do devaneio poético. Ele aparentemente se esquecera de que desse Nada igualmente irrompem as forças que sustentam o sujeito em sua inserção no mundo, enlaçando ambos -sujeito e mundo - em uma comunhão na qual o sujeito se realiza e o mundo se manifesta humanamente. Essa descontinuidade na reflexão estética bachelardiana está exposta em Barreto (2016, pp. 117-141), onde se indica uma interpretação para a mesma, bem como a via de seu possível ultrapassamento.

Bachelard observa que “a maneira pela qual escapamos do real designa claramente a nossa realidade íntima. Um ser privado da função do irreal é um neurótico, tanto quanto o ser privado da função do real (Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., p. 7). Bachelard complementa corajosamente a definição psicopatológica das relações entre imaginação e real, ao afirmar que sem a função do irreal há uma mutilação subjetiva. A “função do irreal é a função que dinamiza verdadeiramente o psiquismo, ao passo que a função do real é uma função de tolhimento, uma função de inibição, uma função que reduz as imagens de modo a dar-lhes um simples valor de signo” (Bachelard, 1990b______. “A terra e os devaneios do repouso. Ensaio sobre as imagens da intimidade”. São Paulo: Martins Fontes, 1990b., p. 63). E na realidade do campo de concentração, o signo proposto pela função do real remete sempre ao absurdo, à aniquilação, à violência, ao nada, à morte insensata. Quando o real assume tais feições de pesadelo realizado, a ausência da função do irreal pode revelar-se fatal, na medida em que a destruição subjetiva projetada pela lógica do campo de concentração/extermínio não encontra oposição e invade a realidade íntima do indivíduo, destruindo-a sem mais.4 4 É contra o pano de fundo dessa experiência radical e inominável que o tema filosófico da “morte do sujeito” deveria ser medido, assumindo então a tragicidade que acompanha esse evento histórico-espiritual.

O círculo de companheiros-sonhadores formado por Jean Cayrol em Mauthausen estabelece uma relação vital com a atividade onírica. Assim, o sono “era para cada um de nós a prova de sua não degradação, o positivo de sua vida negativa do dia. [...] nós havíamos encontrado um novo alimento espiritual na desordem noturna de nossos sonhos; havia um pão dos sonhos, esses sonhos apropriados para ‘abrigar nossas longas esperanças’” (Cayrol, 2007, pp. 771 e 773). A revelação de um tempo atemporal vivido nos sonhos do prisioneiro, “por assim dizer, eternizava o seu ser; ele era sacudido pela clandestinidade de sua verdadeira existência humana em meio a essa réplica infernal do campo de concentração” (Cayrol, 2007, p. 771).

Uma lição que se depreende da observação cayroliana dos sonhos concentracionários diz respeito ao caráter perigoso da nostalgia e da ilusão. Jean Cayrol menciona “um dos reflexos mais dolorosos, mais implacáveis, do prolongamento do mundo real na consciência dos prisioneiros: os sonhos-projetos” (Cayrol, 2007, p. 793). Neles o sonhador se entregava ao desejo de evasão segundo uma linha temporal amarrada ao futuro, esboçando projetos da existência por vir. Eram, no juízo de Cayrol, “uma espécie de exasperação desesperada, um estado de febrilidade doentia, um signo de sua degradação próxima” (ibid). E a experiência lhe mostrou que aqueles que se entregavam a essa obsessão do retorno morriam. Ela não tinha valor de resistência; era, antes, o indício do triunfo da lógica mortífera do Campo. Isso mostra que a atitude de resistência consequente e de salvação exigia de partida o reconhecimento sem ilusões do inferno concentracionário (lasciate ogni speranza, o voi ch’entrate!). Os sonhos-projetos enredavam-se fatalmente na armadilha da temporalidade determinada pela lógica concentracionária, que neles manifestava a sua vitória cabal. Os rêves-projets, como realizações de desejos de partida impossíveis, sinalizam a catástrofe da subjetividade nas malhas da destruição operada no Campo. Eram sonhos que mostravam que o sujeito sonhador sucumbira à brutalidade a que era cotidianamente exposto, que a estratégia de destruição humana fora bem sucedida, como no caso da maior parte dos sonhos coligidos por Charlotte Beradt em seu livro. São sonhos que atestam o naufrágio trágico da subjetividade violentada.

Já os sonhos que atestavam a preservação da subjetividade em face da repetição infernal do cotidiano concentracionário escapavam à temporalidade ordinária, evitando a armadilha da nostalgia, confirmando o impulso da imaginação de buscar o primitivo e o eterno ao escavar o “fundo do ser”, segundo Bachelard. Dentre esses, os sonhos de salvação (rêves de salut) em especial projetavam a consciência onírica em uma experiência de talhe metafísico, transtemporal, em que se acentuavam aquilo que Cayrol denomina “defesas sobrenaturais” da subjetividade, pela ênfase nas cores. Por paradoxal que seja, a suspensão da temporalidade cotidiana do campo - que na verdade reduz-se a um presente contínuo, repetitivo, deformação infernal da eternidade - se faz pela irrupção de uma qualidade de eternidade nos sonhos de salvação. Daí o sentido da imagem de Lázaro, que Cayrol retoma para resumir o cerne da salvação possível de que se trata: não uma denegação ilusória da morte concentracionária, mas seu ultrapassamento em um estado de consciência que introduz o prisioneiro em uma forma de existência radicalmente transformada. Não há um retorno à vida anterior à morte espiritual no campo (como no caso dos sonhos-projetos), mas um lançar-se em uma forma de existência até então inaudita, sem modelo prévio, que se epifaniza através da imaginação onírico-simbólica.

Os sonhos de salvação ocupam lugar especial na tipologia dos sonhos concentracionários elaborada por Jean Cayrol. Como foi dito, eles caracterizavam-se pela ênfase em uma determinada cor (azul, verde, vermelho, amarelo), dependendo da configuração pessoal do sonhador. Cayrol comenta:

Percebi que uma cor podia dominar certos sonhos ou se repetir; era seja uma cor que lembrava um certo acontecimento preciso ocorrido com o prisioneiro no momento de seu encarceramento, seja uma cor que provinha de uma parte essencial de sua existência, de sua fé por exemplo. Essa cor podia apresentar-se apenas uma vez, como para resgatar o prisioneiro moribundo e capturar seu olhar por seu deslumbramento; ou então, ao contrário, ela prosseguia seu rastro luminoso nos sonhos, e, por sua repetição alegre, mudava a vida mesma do prisioneiro. Essa cor era a própria cor da salvação, “içada no mastro do sonho”, o anúncio do retorno, da certeza do retorno, a garantia formal de que o prisioneiro podia escapar de sua paixão, descer de sua cruz antes da décima segunda hora ou encontrar a saída de seu jardim das Oliveiras. [...] aqui, a cor, no estado excepcional de um homem que, durante semanas, meses e anos, não tinha mais senão alguns instantes a viver, libertava; era a desforra brilhante da Graça, a extremidade da asa nas trevas da noite.

O prisioneiro podia ser salvo por uma cor maior; todas as forças invisíveis do homem se encontravam no “grito” dessa cor sagrada e original, nessa reminiscência do homem tornado visionário, nesse chamado instintivo do divino (Cayrol, 2007CAYROL, J. “Oeuvre lazaréenne”. Paris: Éditions du Seuil, 2007., pp. 788-789).5 5 Sarah Cuciniello acrescenta: “A cor é o último recurso nessas condições extremas, ela não tem um sentido em particular, mas é o sentido mesmo da sobrevivência” (Cuciniello, 2011, p. 32).

Bachelard nos ajuda a entender essa ênfase sobre as cores nos sonhos de salvação relatados por Cayrol: para a imaginação, “tudo o que se eleva desperta para o ser, participa do ser. Inversamente, tudo o que se abaixa se dispersa em sombras vãs, participa do nada. A valorização decide o ser: eis um dos grandes princípios do Imaginário” (Bachelard, 1990a______. “O ar e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação do movimento”. São Paulo: Martins Fontes, 1990a., p.75). A imaginação promove o ser (cf. Bachelard, 1990a, p. 145), e a cor onírica vem imprimir irresistivelmente um valor de beleza na consciência sonhadora, dimensão absolutamente ausente na realidade sombria, cinza e monstruosa do Campo. “A imaginação é necessariamente valorização. Enquanto uma imagem não revela um valor de beleza, [...] enquanto não insere o ser imaginante num universo de beleza, ela não preenche o seu ofício dinâmico” (Bachelard, 1990a, pp. 269-270). Para Bachelard, “a beleza das imagens aumenta a sua eficácia” (Bachelard, 1988, p. 164). Nos sonhos concentracionários de salvação comprova-se, portanto, a significação vital e existencial da sensibilidade estética, da capacidade de preservar o senso da beleza mesmo - e talvez principalmente - em meio a uma realidade grotesca, desumanizante e horrorosa. Vale a pena transcrever o que diz Jean Cayrol acerca da existência concentracionária à luz dos sonhos:

Os campos de concentração se revelaram tanto nos dias do prisioneiro quanto em suas noites; os sonhos se tornavam um meio de salvaguarda, uma espécie de “resistência” do mundo real no qual o homem era para sempre fiel aos reflexos, mesmo os mais estranhos, de seu destino e de sua continuidade. [...] Uma certa irrealidade se tornava, assim como seu no man s land noturno, a melhor defesa da realidade humana em estado puro. [...] O prisioneiro depositava nesses sonhos fechados e trancados toda a sua potência de amor, de liberdade e de felicidade [...] Essas perspectivas furta-cor da noite se superpunham a sua existência cotidiana e lhe davam a possibilidade de estar “em outro lugar”, de ser com os outros sem ser como os outros; elas o ajudavam a recusar totalmente a ascendência horrível do dia, e a lhe emprestar outras “entonações” (o olhar de um deportado, lembrem-se, era aquele de um homem que percebeu demais; um olhar que salta os obstáculos, que contempla o que o cega.) [...] Cada minuto do dia a viver tinha assim seu duplo, o que dava a todos uma impressão de “sonho acordado” nesse noviciado dantesco, de estupor e mesmo de fascinação diante dos fatos miúdos como diante dos carrascos à espreita, permitindo suprimir a noção de tempo. [...] Cada instante tinha uma outra face que só era decifrada pelos iniciados dos quais fazíamos parte e isso vinha para alguns do esplendor que seus sonhos noturnos poderiam ter neles, indefinidamente (Cayrol, 2007CAYROL, J. “Oeuvre lazaréenne”. Paris: Éditions du Seuil, 2007., pp. 769-771).

Jean Cayrol menciona ainda sonhos de natureza diabólica, sem misericórdia, que não ofereciam repouso nem trégua: aqueles em que os prisioneiros sonhavam que estavam fechados em um campo de concentração. Mais um sinal inequívoco da invasão traumática da subjetividade pela avassaladora realidade de pesadelo vigente no Campo. Tais sonhos assemelham-se a vários sonhos relatados por Charlotte Beradt, em que a mesma invasão pelo terror objetivo do regime nazista se manifesta, indicando o impasse vivido pelo sujeito: adaptarse, e assim sucumbir à lógica desumanizante do terror, ou resistir? Em plena confirmação do elogio bachelardiano à função do irreal, Cayrol observa:

O que sustentava muito frequentemente o prisioneiro era essa faculdade única de desadaptação da situação presente; sua força e sua resistência chegavam a se tornar extraordinárias porque no momento em que era agredido, em que era humilhado, apareciam subitamente diante de seus olhos a velha macieira de seu jardim ou o passo assustado de seu cão; ele era constrangido a uma pobre imagem, a uma prece, a um segredo, e ele resistia. [...] o universo selvagem, incoerente, do Campo ganhava uma luz particular pelo fato de que tínhamos ainda um pé no mundo real pelo subterfúgio de nossa memória e de nossos sonhos (Cayrol, 2007CAYROL, J. “Oeuvre lazaréenne”. Paris: Éditions du Seuil, 2007., pp. 773 e 775).6 6 Sarah Cuciniello sublinha a necessidade vital nos prisioneiros de “fazer do cotidiano concentracionário um mau sonho e desses instantes de esplendor e de alegria oníricos a sua realidade” (Cuciniello, 2011, p. 28). Quanto mais tangível a morte na realidade concentracionária cotidiana, mais fortes e esplendorosos os sonhos que transmitem uma beleza arrebatadora e inesquecível: sonhos-paisagem (outra modalidade onírica na tipologia de Cayrol, com valor positivo de resistência espiritual) e sonhos de salvação.

Um sonho que mostra a forma criativa da resistência espiritual emergindo no coração mesmo da situação diabólica, testemunhando a ativação das “defesas sobrenaturais” pela própria imaginação simbólica, é relatado por Cayrol: ele sonha que estava inapelavelmente no campo de concentração, mas este era um campo idílico, com árvores e flores, onde se vivia em cavernas que se abriam sobre prados. Ele convidara sua família para passar algum tempo com ele, e talvez ele fosse o único a saber que estavam em um campo de concentração (cf. Cayrol, 2007, p. 786).

Evasão? Sem dúvida. Mas uma evasão que não é mera ilusão, nem desesperada projeção de um futuro impossível, e sim a reafirmação da potência humanizante de amor, de liberdade e de felicidade, preservada no interior mesmo da consciência que reconhece o aprisionamento desumanizante. (Situação semelhante é vivida por São Silvano que, sentindo-se viver em pleno inferno, tem uma visão mística, na qual Cristo lhe aparece e lhe diz para permanecer no inferno, mas sem perder a esperança: cf. Duquoc, 1994DUQUOC, Ch. “Posfácio”. Concilium, Vol. 254, Nr. 4 [Mística e Crise Internacional], pp. 133-139 [651-657], 1994., p. 133 [651]). Sarah Cuciniello comenta a respeito dos sonhos de salvação apresentados por Jean Cayrol: “Há, em todos esses sonhos, uma vontade forte dos prisioneiros de lhes atribuir um poder sobrenatural. Sente-se aí a necessidade de agarrar-se a um signo, à esperança para sobreviver” (Cuciniello, 2011, p. 32). Mas tal vontade não é arbitrária nem tristemente delirante: há objetivamente em tais sonhos uma potência vital, que os prisioneiros não fazem senão reconhecer e recolher, aderindo a ela por razões óbvias. Até mesmo a execução, sofrida em tal disposição “sobrenatural” de consciência, não consegue destruir o quantum de sentido haurido na experiência dos sonhos de salvação, que deixam entrever o acesso à dimensão metafísica da existência humana, única capaz de fazer frente e mesmo sobrepujar o absurdo grotesco do aniquilamento concentracionário.7 7 Vale a pena mencionar nesse contexto a experiência de Boécio. Condenado à morte, aguardando na prisão o cumprimento da sentença, o ex-conselheiro de Teodorico afunda na experiência do não sentido de seu infortúnio. Consegue atravessá-la e superá-la mobilizando toda a sua consciência filosófica e examinando as grandes questões metafísicas da existência humana, transcrevendo o seu processo, sob a forma de um diálogo com a dama Filosofia, para um dos grandes clássicos de nossa tradição: o De Consolatione Philosophiae. Religado à dimensão metafísica da existência, Boécio chega à conclusão final de que, mesmo diante do infortúnio inexorável, a vida faz sentido. E o seu diálogo interior resgata esse sentido como experiência pessoal.

A existência pós-concentracionária: o desafio do retorno a uma humanidade possível

Os sonhos de salvação, com sua qualidade estético-metafísica excepcional, são o avesso do pesadelo concentracionário, e projetam o sonhador em uma experiência do real que mantém um vínculo indissolúvel com o seu negativo tenebroso. São as duas faces de uma mesma moeda. O “chamado instintivo do divino”, que Jean Cayrol percebia nos rêves de salut, é estritamente homólogo e simétrico ao “sagrado concentracionário” (Cayrol, 2007, p. 795, itálico meu),8 8 Eis a passagem de Lazare parmi nous: “para muitos ainda, o terror concentracionário continua no plano do subconsciente, mas ele foi submetido a uma certa decantação; esse sagrado concentracionário depositou no fundo dos sonhos de hoje uma borra turva de que se encontram traços mais ou menos leves, à noite, na hora dos pesadelos.” que ele assinalava no terror dos Campos. Em toda a sua amplitude, o universo concentracionário suprime as referências familiares que balizam a realidade cotidiana, aparecendo então como uma realidade irreal, radicalmente estranha - unheimlich, característica essencial e distintiva do Sagrado segundo Rudolf Otto. Se a atribuição por Cayrol do qualificativo “sagrado” a essa dimensão do terror concentracionário causar repulsa, convém lembrar que todo o campo das forças demoníacas constitui uma região particular do real a que se tem acesso unicamente através da imaginação simbólica: é o campo que Marc Girard (cf. Girard, 1997GIRARD, M. “Os símbolos na Bíblia”. São Paulo: Paulus, 1997.) atribui ao “mistério ponerológico”. É essa estranheza “sobrenatural”, unheimlich, da realidade do Campo que leva Jean Cayrol a referir-se a ela como “um monstro impossível de descrever e compreender” (cf. Basuyaux, 2009BASUYAUX, M.-L. “Témoigner clandestinement. Les récits lazaréens de Jean Cayrol”. Paris: Garnier, 2009., p. 28 nota 60) e que nele despertou e fixou “um medo ancestral que [o] paralisava desde os Campos” (ibid, p. 34 nota 77) - eis aí o aspecto do tremendum que Rudolf Otto indica na experiência do sagrado, integrando o sentimento do numinoso. Esse monstro indescritível e incompreensível veicula o mysterium iniquitatis que essencialmente se subtrai ao acesso direto pela razão, como lembra Paul Ricoeur em La symbolique du mal (cf. Ricoeur, 1988RICOEUR, P. “Philosophie de la volonté II. Finitude et culpabilité”. Paris: Aubier, 1988.), e que, por isso mesmo, desde sempre foi matéria existencial que exige a mediação da expressão simbólica da imaginação criadora para ser formulável em termos humanos. Já a dimensão do “chamado instintivo do divino”, das “defesas sobrenaturais” que se comunicavam no esplendor fulgurante da beleza dos sonhos de salvação, corresponde ao aspecto do fascinans, igualmente constitutivo da experiência do sagrado e do sentimento do numinoso, insinuando-se igualmente de modo estético-simbólico à consciência onírica do prisioneiro.

Os egressos do universo concentracionário, portanto, estão irremediavelmente marcados pela experiência profunda de uma temporalidade atemporal específica - seja o presente contínuo e absoluto da repetição da rotina infernal do Campo, seja a sua contrapartida na eternidade esplendorosa da beleza “sobrenatural” dos sonhos de salvação. A vivência indelével tanto do mal absoluto do terror, quanto da beatitude onírica extraordinária, torna-se uma espécie de estigma a impor uma alienação dolorosa com relação ao mundo humano ordinário, do qual os prisioneiros haviam sido arrancados, e ao qual eles deviam retornar. Daí decorrem os problemas enfrentados pelos sobreviventes: há uma espécie de desnível trágico entre o sobrevivente e o mundo, e as dificuldades de reinserção por vezes se revelam insuperáveis, inclusive levando ao suicídio:

O mundo do mais além do Campo tomava o lugar do mundo do mais além da vida terrestre. Pouco a pouco a imagem do mundo real se transfigurava, se embelezava, tornava-se a Imagem ideal do mundo de amanhã, uma imagem pré-fabricada, esmerada que, no momento do retorno, desabou muito brutalmente para alguns e os levou a perseguir no suicídio a imagem ideal do mais além celeste. [...] Nós chegávamos, por essa ruptura interna entre dois universos, a viver igualmente entre dois universos sem jamais reuni-los inteiramente, e isso nos deixava ainda, e talvez para sempre, em uma sensação de flutuação, de estado de vagabundagem mental e sem raízes (Cayrol, 2007CAYROL, J. “Oeuvre lazaréenne”. Paris: Éditions du Seuil, 2007., pp. 775 e 776).

A experiência lazareana se mostra, portanto, ambígua: a salvação que ela proporciona no campo de concentração converte-se em dificuldade a ser trabalhada, como exigência de instauração de uma nova vida pós-concentracionária. Tanto a força do trauma vivido quanto a força da salvação onírica correspondente não se encaixam bem na realidade do retorno. E assim o sujeito concentracionário encontra-se perigosamente dissociado do mundo do qual veio e ao qual ele retorna transformado pela experiência radical por que passou. Por isso a imagem de Lázaro em Cayrol expressa perfeitamente o cerne mesmo dessa situação: iniciado em um conhecimento experiencial que é interditado à consciência humana ordinária - o conhecimento da morte -, ele retorna à vida mortal marcado pela degradação irreversível, outro de si mesmo e alienado do resto dos homens, instalado em uma solidão radical pela qual, paradoxalmente, “ele se comunica com o resto dos mortais” (Cayrol, 2007, p. 811). A ruína concentracionária da humanidade é o ponto de partida de uma nova construção humana, que não apaga nem esquece as feridas da degradação sofrida: “A morte, a ruína não marcam um término, um suspense, um impasse, mas testemunham pelo contrário essa permanente manducação” (Cayrol apud Basuyaux, 2009BASUYAUX, M.-L. “Témoigner clandestinement. Les récits lazaréens de Jean Cayrol”. Paris: Garnier, 2009., p. 91).9 9 Marie-Laure Basuyaux comenta: “A ruína é pois um princípio ativo e paradoxalmente produtivo aos olhos de J. Cayrol; signo indubitável da morte avançando, ela o é também da evolução e da vida” (ibid.).

Jean Cayrol faz da estrutura mesma da experiência concentracionária a base para sua estética lazareana, associando realismo e irrealismo, misturando o natural e o inverossímil, propondo um estilo literário em que se entrelaçam “o maravilhoso ou feérico [...] e a realidade cotidiana [...]”, sendo essencial o fato de que “o maravilhoso ou feérico conduz o real, o subjuga, ofusca-o” (Cayrol, 2007, p. 807). Por isso, seus personagens lazareanos, assim como os deportados nos campos de concentração, vivem “sobre dois planos distintos e entretanto unidos por um fio invisível, o plano do terror e o plano da exaltação, o da embriaguez e o do desapego” (Cayrol, 2007, pp. 807-808). Sobre o modelo de seu herói lazareano - que, vale insistir, é a transposição ficcional literária da consciência submetida ao trauma da experiência concentracionária -, Jean Cayrol afirmava que se tratava de um “nada que fala” (cf. Basuyaux, 2009BASUYAUX, M.-L. “Témoigner clandestinement. Les récits lazaréens de Jean Cayrol”. Paris: Garnier, 2009., p. 332). Para além da angústia perante o nada do aniquilamento subjetivo que fez deter o Bachelard de A Poética do Devaneio, Cayrol não teve outra alternativa a não ser deixar esse nada falar, e assim podemos responder à pergunta aflita de Bachelard: sim, há fontes de vida no fundo dessa não vida, há algo que se pode recuperar desse desastre do ser.10 10 O Bachelard que abandona a psicanálise como método de exploração do imaginário, substituindo-a pela fenomenologia a partir de A Poética do Espaço, cai vítima de um dualismo entre eu consciente e eu inconsciente-donde suas dúvidas a respeito do “desastre do ser”. Como contraposição a esse dualismo estanque, recomenda-se a leitura da seção “Polêmica contra o id ou pensar o diabo”, na Crítica da Razão Cínica, de Peter Sloterdijk (Sloterdijk, 2012, pp. 483-491), que retoma a perspectiva psicanalítica e oferece um modelo mais avançado para se interpretar dialeticamente o “aniquilamento do ser do sujeito”. E essas fontes de vida falam, devem falar, contar sua história, como parte fundamental do processo de reinstituição e recuperação da humanidade arrasada. Leiamos, neste sentido, o testemunho talvez paradigmático do “nada que fala” e atravessa o desastre do ser, nas palavras da lazareana Eva Schloss, sobrevivente de Auschwitz-Birkenau:

o rastro do Holocausto, o trauma de Auschwitz [...] tudo isso fazia parte do meu ser, como pude perceber depois, e comecei a me perguntar se eu seria capaz de mudar algum dia. [...] Como eu poderia saber o que era ser uma pessoa normal? Não tinha enlouquecido, como alguns sobreviventes do Holocausto, mas eu sabia que eu me sentia mal comigo mesma. Era como se um fio solto estivesse balançando dentro de mim, sem conseguir se conectar. A única maneira que eu conseguia encontrar para explicar era dizendo que eu não era eu mesma. [...] Ao olhar para trás, vejo que de fato eu estava ausente de mim mesma. [...] Porém, por dentro eu ainda era a mesma adolescente traumatizada que havia sido libertada de Auschwitz em 1945. [...] Fico me perguntando se alguém percebia como me sentia aterrorizada e insegura enquanto eu sorria e conversava. Bem no fundo, eu lutava contra uma questão: será que um dia seria capaz de confrontar os meus medos e enfrentar o passado? [...] Contar a minha história foi uma experiência ao mesmo tempo aterrorizante, entusiasmante e desgastante para mim (Schloss, 2013SCHLOSS, E. “Depois de Auschwitz”. São Paulo: Universo dos Livros, 2013., pp. 246-254).

A provação iniciática infernal vivida no Campo transforma profunda e irreversivelmente o sobrevivente. Matriz concreta do personagem lazareano, ele é o símbolo vivo e trágico do sagrado concentracionário. Daí seu desajuste, sua desadaptação, sua solidão irremissível, e também tanto o fascínio como o desconforto que ele causa nos outros: ele é a testemunha e a prova real do mal absoluto perpetrado no Campo, e assim converte-se em veículo incômodo e involuntário do sagrado que o arrasou. O medo de contaminar o outro persegue o sobrevivente e seu duplo ficcional lazareano. Mas o trauma concentracionário vem, na verdade, revelar à consciência moderna algo que lhe é estrutural. Por isso ele deve ser assumido. Jean Cayrol nos adverte: “Esse herói descarnado e sofredor, ele pode ser você, amanhã, esse coração paralisado e insensível pode ser o seu em alguns instantes, se nós não sabemos ser heróis solitários e pacientes” (Cayrol, 2007, p. 766).

Se o herói lazareano não é bem sucedido na tarefa imperiosa de articular o sentido da existência cotidiana no mundo a tudo o que experimentou na situação-limite do Campo, isso indica que o trabalho-desafio que ele é compulsoriamente chamado a assumir ainda não chegou a seu termo. Esse trabalho é nossa herança e nossa tarefa. Depois de Auschwitz, somos todos lazareanos.11 11 Jean Cayrol não concede um estatuto de exceção ou acidente à experiência concentracionária, vendo antes uma continuidade entre o universo dos campos e a sociedade moderna. Assim, o Campo assume a função de paradigma interpretativo, com relevância antropológica e filosófico-cultural. O aspecto sombrio que é dissimulado ou camuflado no mundo moderno vem à luz por meio dessa perspectiva hermenêutica, e o caráter concentracionário do modo de vida contemporâneo se revela em suas dimensões mais estruturais. Dentre os autores que desenvolvem esta perspectiva podemos citar David Rousset, Alain Parrau, Georges Matoré, Léo Scheer e Zygmunt Bauman (cf. Basuyaux, 2009, pp. 112-118). Os novos vícios a que Umberto Galimberti (2004) alude (consumismo, conformismo, despudor, sexomania, sociopatia, denegação e vazio) são estruturais na lógica da vida contemporânea que, em seu conjunto e de forma por vezes sofisticadamente velada, promove a destruição inteligente e sistemática dos suportes que anteriormente respondiam pela forma de humanidade que se inscreveu no horizonte simbólico da civilização ocidental. Não por acaso, justamente em meio a esta modalidade de desumanização entra em circulação a expressão “pós-humano”, para caracterizar o mundo que se projeta a partir das tendências efetivas que regem a esfera objetiva e impessoal do mundo atual. A temporalidade pós-humana é uma versão atualizada e sofisticada da temporalidade própria da experiência concentracionária. A ruptura dos vínculos orgânicos da nossa experiência pessoal com o passado, já assinalada por Eric Hobsbawn (1995, p. 13), aliada ao ocaso das utopias modernas que articulavam o sentido futuro dessa mesma experiência em sua dimensão coletiva, resulta numa espécie de presente contínuo e imediato, que repete exatamente a estrutura da temporalidade vivida no campo de concentração. Por isso a meditação sobre a preservação da humanidade na experiência concentracionária reveste-se de uma atualidade urgente: em um cenário onde tendências diversas anunciam a morte da subjetividade, e trabalham efetivamente para liquidá-la, a atitude subversiva de resistência em nome da humanidade humana deve instruir-se justamente na experiência dramática do passado.

Conclusão: Bachelard no reino dos pesadelos

Terminado este breve experimento de uma primeira incursão, a partir de uma perspectiva bachelardiana, no universo do Nada e da Morte, em sua monstruosa manifestação no universo concentracionário, podemos dizer que as teses fundamentais de Bachelard acerca da imaginação criadora veem-se confirmadas. Elas não foram postas em causa devido ao fato de que a situação humana examinada - o terror e o horror que eram a matéria prima da experiência concentracionária - não se coaduna com a realidade vivida pelo sonhador de devaneios bachelardiano. Pelo contrário: a fUnção do irreal que caracteriza a imaginação criadora segundo Bachelard, com sua orientação para a transfiguração da realidade prosaica em um suporte para a encarnação dos sonhos humanos mais profundos, revelou-se em toda a sua dramática amplitude existencial e metafísica nessa situação-limite, em que estava em jogo não uma simples e contingente realização de desejos, mas a sobrevivência da humanidade humana no sonhador-prisioneiro. O inferno do Campo constelou todo o poder humanizante da imaginação simbólica que se lhe opunha, manifestando as “defesas sobrenaturais” que desde sempre se fizeram veicular e comunicar por intermédio, justamente, da atividade imaginante humana. Esse poder continua a aparecer hoje, no Campo camuflado e sofisticado que enclausura a existência na era virtual, como uma possível fonte de preservação da humanidade dessa existência, contrapondo ao imediatismo do Agora absolutizado e esvaziado de sentido a perenidade das imagens verdadeiramente simbólicas, mantendo abertas aquelas perspectivas que visam ao destino humano. Acredito que Bachelard teria aprovado o resultado da extensão de sua poética ao reino dos pesadelos que ele evitou. No entanto, certamente ele não teria se sentido confortável diante da consciência lazareana. Ela não pode corresponder à posição de felicidade e repouso de seu sonhador de devaneios, nem tampouco reconquista sem mais aquela comunhão vital com o mundo que a imaginação material garantia. Pelo contrário: a consciência lazareana caracteriza-se por um estranhamento do mundo, por um sentimento de corte irremediável. As dificuldades enfrentadas em sua inserção no mundo mostram que o herói lazareano da ficção de Jean Cayrol é antes um fantasma do que um ressuscitado, expressando assim o mal-estar niilista apontado por Bruno Blankeman na literatura do pós-guerra (cf. Basuyaux, 2009BASUYAUX, M.-L. “Témoigner clandestinement. Les récits lazaréens de Jean Cayrol”. Paris: Garnier, 2009., p. 65).12 12 Assim André Schwarz-Bart resume essa percepção, a meu ver cada vez mais impositiva: “O homem concentracionário é a chave do que nós somos; o mundo concentracionário é o segredo de nosso mundo” (citado em Basuyaux, 2009, p. 84).

Tal mal-estar não se dissolveu: ele tornou-se onipresente na era da vida virtual, que coroa o momento avançado da Idade da Técnica. Por isso, a experiência concentracionária e, nela, a presença da imaginação simbólica tornam-se verdadeiras referências para se pensar a situação e as possibilidades da existência humana no mundo de hoje. Ontem, como hoje, a imaginação criadora mostra-se como um veículo privilegiado de que as fontes perenes dos fundamentos de nossa humanidade se utilizam para a realização de uma existência autenticamente humana. Assim sendo, é de se esperar que do fundo da subjetividade ameaçada pelo presente contínuo, repetitivo e absurdo da temporalidade niilista contemporânea emerjam os mesmos sinais das “defesas sobrenaturais” que Jean Cayrol percebera em seus sonhos e nos de seus companheiros. Cumpre ficarmos atentos a esses sinais, seguindo suas indicações, para assumir ativamente, na experiência concreta, a aposta que Paul Ricoeur fazia ao término de sua reflexão sobre a simbólica do mal: “aposto que compreenderei melhor o laço entre o ser do homem e o ser de todos os entes se eu seguir a indicação do pensamento simbólico” (Ricoeur, 1988, p. 486). A orientação pela imaginação simbólica, ela mesma posta sob interdito e ameaça na lógica concentracionária pós-humana, pode revelar-se crucial nesse confronto da subjetividade contemporânea com as forças de aniquilação do ser do sujeito, que Bachelard apenas intuíra vagamente ao meditar sobre os sonhos da extrema noite. Por isso, deixando-o em sua repousante e merecida meditação à chama de uma vela, é preciso reunir as lições que ele nos legou sobre a imaginação criadora e adentrar com lucidez no reino dos pesadelos da modernidade, para tentar realizar o destino genuinamente humano possivelmente presente em nosso apocalíptico mundo contemporâneo.

  • 1
    A bem da verdade, em uma obra admirável e pouco mencionada nos estudos bachelardianos - o Lautréamont, de 1940 - Bachelard explora o imaginário monstruoso e violento de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, oferecendo portanto um referendo à ampliação da reflexão rumo ao pesadelo aqui proposta. Significativamente, intuições fundamentais acerca da natureza da imaginação criadora já estão presentes nesta obra, e só seriam desenvolvidas posteriormente na sequência das obras devotadas à vertente noturna.
  • 2
    “Na verdade o sono, que é considerado uma interrupção da consciência, liga-nos a nós mesmos. O sonho normal, o sonho verdadeiro, é assim frequentemente o prelúdio, e não a sequela, de nossa vida ativa” (Bachelard, 1991______. “A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças”. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 79).
  • 3
    Cumpre não esquecer que os sonhos são fenômenos involuntários, provenientes das zonas inconscientes e obscuras da subjetividade. Os sonhos acontecem ao sonhador, não são sua produção intencional e consciente. O Bachelard posterior à virada fenomenológica de sua reflexão estética, com seu excessivo privilégio à consciência devaneante, parece ter abandonado a confiança que previamente depositava nas fontes inconscientes da imaginação criadora. De fato, com uma surpreendente entonação cartesiana, o autor de A Poética do Devaneio angustia-se com a possibilidade aniquiladora com que o Nada do inconsciente ameaça a consciência do sujeito do devaneio poético. Ele aparentemente se esquecera de que desse Nada igualmente irrompem as forças que sustentam o sujeito em sua inserção no mundo, enlaçando ambos -sujeito e mundo - em uma comunhão na qual o sujeito se realiza e o mundo se manifesta humanamente. Essa descontinuidade na reflexão estética bachelardiana está exposta em Barreto (2016BARRETO, M.H. “Homo Imaginans. A imaginação criadora na estética de Gaston Bachelard”. São Paulo: Loyola, 2016., pp. 117-141), onde se indica uma interpretação para a mesma, bem como a via de seu possível ultrapassamento.
  • 4
    É contra o pano de fundo dessa experiência radical e inominável que o tema filosófico da “morte do sujeito” deveria ser medido, assumindo então a tragicidade que acompanha esse evento histórico-espiritual.
  • 5
    Sarah Cuciniello acrescenta: “A cor é o último recurso nessas condições extremas, ela não tem um sentido em particular, mas é o sentido mesmo da sobrevivência” (Cuciniello, 2011, p. 32).
  • 6
    Sarah Cuciniello sublinha a necessidade vital nos prisioneiros de “fazer do cotidiano concentracionário um mau sonho e desses instantes de esplendor e de alegria oníricos a sua realidade” (Cuciniello, 2011, p. 28). Quanto mais tangível a morte na realidade concentracionária cotidiana, mais fortes e esplendorosos os sonhos que transmitem uma beleza arrebatadora e inesquecível: sonhos-paisagem (outra modalidade onírica na tipologia de Cayrol, com valor positivo de resistência espiritual) e sonhos de salvação.
  • 7
    Vale a pena mencionar nesse contexto a experiência de Boécio. Condenado à morte, aguardando na prisão o cumprimento da sentença, o ex-conselheiro de Teodorico afunda na experiência do não sentido de seu infortúnio. Consegue atravessá-la e superá-la mobilizando toda a sua consciência filosófica e examinando as grandes questões metafísicas da existência humana, transcrevendo o seu processo, sob a forma de um diálogo com a dama Filosofia, para um dos grandes clássicos de nossa tradição: o De Consolatione Philosophiae. Religado à dimensão metafísica da existência, Boécio chega à conclusão final de que, mesmo diante do infortúnio inexorável, a vida faz sentido. E o seu diálogo interior resgata esse sentido como experiência pessoal.
  • 8
    Eis a passagem de Lazare parmi nous: “para muitos ainda, o terror concentracionário continua no plano do subconsciente, mas ele foi submetido a uma certa decantação; esse sagrado concentracionário depositou no fundo dos sonhos de hoje uma borra turva de que se encontram traços mais ou menos leves, à noite, na hora dos pesadelos.”
  • 9
    Marie-Laure Basuyaux comenta: “A ruína é pois um princípio ativo e paradoxalmente produtivo aos olhos de J. Cayrol; signo indubitável da morte avançando, ela o é também da evolução e da vida” (ibid.).
  • 10
    O Bachelard que abandona a psicanálise como método de exploração do imaginário, substituindo-a pela fenomenologia a partir de A Poética do Espaço, cai vítima de um dualismo entre eu consciente e eu inconsciente-donde suas dúvidas a respeito do “desastre do ser”. Como contraposição a esse dualismo estanque, recomenda-se a leitura da seção “Polêmica contra o id ou pensar o diabo”, na Crítica da Razão Cínica, de Peter Sloterdijk (Sloterdijk, 2012SLOTERDIJK, P. “Crítica da razão cínica”. São Paulo: Estação Liberdade, 2012., pp. 483-491), que retoma a perspectiva psicanalítica e oferece um modelo mais avançado para se interpretar dialeticamente o “aniquilamento do ser do sujeito”.
  • 11
    Jean Cayrol não concede um estatuto de exceção ou acidente à experiência concentracionária, vendo antes uma continuidade entre o universo dos campos e a sociedade moderna. Assim, o Campo assume a função de paradigma interpretativo, com relevância antropológica e filosófico-cultural. O aspecto sombrio que é dissimulado ou camuflado no mundo moderno vem à luz por meio dessa perspectiva hermenêutica, e o caráter concentracionário do modo de vida contemporâneo se revela em suas dimensões mais estruturais. Dentre os autores que desenvolvem esta perspectiva podemos citar David Rousset, Alain Parrau, Georges Matoré, Léo Scheer e Zygmunt Bauman (cf. Basuyaux, 2009, pp. 112-118). Os novos vícios a que Umberto Galimberti (2004)GALIMBERTI, U. “Os vícios capitms e os novos vícios”. São Paulo: Paulus. 2004. alude (consumismo, conformismo, despudor, sexomania, sociopatia, denegação e vazio) são estruturais na lógica da vida contemporânea que, em seu conjunto e de forma por vezes sofisticadamente velada, promove a destruição inteligente e sistemática dos suportes que anteriormente respondiam pela forma de humanidade que se inscreveu no horizonte simbólico da civilização ocidental. Não por acaso, justamente em meio a esta modalidade de desumanização entra em circulação a expressão “pós-humano”, para caracterizar o mundo que se projeta a partir das tendências efetivas que regem a esfera objetiva e impessoal do mundo atual. A temporalidade pós-humana é uma versão atualizada e sofisticada da temporalidade própria da experiência concentracionária. A ruptura dos vínculos orgânicos da nossa experiência pessoal com o passado, já assinalada por Eric Hobsbawn (1995HOBSBAWN, E. “Era dos Extremos. O breve sécuto XX 1914-1991”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 13), aliada ao ocaso das utopias modernas que articulavam o sentido futuro dessa mesma experiência em sua dimensão coletiva, resulta numa espécie de presente contínuo e imediato, que repete exatamente a estrutura da temporalidade vivida no campo de concentração. Por isso a meditação sobre a preservação da humanidade na experiência concentracionária reveste-se de uma atualidade urgente: em um cenário onde tendências diversas anunciam a morte da subjetividade, e trabalham efetivamente para liquidá-la, a atitude subversiva de resistência em nome da humanidade humana deve instruir-se justamente na experiência dramática do passado.
  • 12
    Assim André Schwarz-Bart resume essa percepção, a meu ver cada vez mais impositiva: “O homem concentracionário é a chave do que nós somos; o mundo concentracionário é o segredo de nosso mundo” (citado em Basuyaux, 2009, p. 84).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2019
  • Aceito
    18 Dez 2019
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