Acessibilidade / Reportar erro

Meningite por Haemophilus influenzae tipo f

Resumos

Com o declínio da taxa de infecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b após a ampla introdução da vacina, sorotipos não-b devem ser considerados agentes patogênicos potenciais em crianças menores de 5 anos com doença invasiva. Relatamos um caso de meningite por Haemophilus influenzae tipo f em um lactente imunocompetente de 1 ano. O agente foi identificado em líquido cefalorraquidiano e hemocultura. A sorotipagem foi realizada por testes com soros policlonais e confirmada por reação em cadeia de polimerase. Todas as cepas de Haemophilus influenzae associadas à doença invasiva deveriam ser sorotipadas e notificadas, a fim de possibilitar uma análise adequada das mudanças e tendências na distribuição de sorotipos desta doença.

Haemophilus influenzae; Meningite; Brasil; Relatos de casos


With the decline in the rate of infections caused by Haemophilus influenzae serotype b since the widespread vaccination, non-b serotypes should be considered as potential pathogenic agents in children with invasive disease younger than 5 years old. We report the case of an immunocompetent 1-year-old boy with Haemophilus influenzae type f meningitis. The agent was identified in cerebrospinal fluid and blood cultures. Serotyping was performed by tests using polyclonal sera and confirmed by polymerase chain reaction. All Haemophilus influenzae isolates associated with invasive disease should be serotyped and notified as a way to evaluate the changes and trends in serotype distribution of this disease.

Haemophilus influenzae; Meningitis; Brazil; Case reports


RELATO DE CASO

Meningite por Haemophilus influenzae tipo f

Marta Pessoa CardosoI; Jacyr PasternakI; Alfredo Elias GiglioI; Rejane Rimazza Dalberto CasagrandeII; Eduardo Juan TrosterI

IHospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil

IIInstituto da Criança, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Correspondence Correspondence: Marta Pessoa Cardoso Rua Capote Valente, 432, conjunto 121 - Pinheiros CEP: 05409-001 - São Paulo, SP, Brasil Tel.: (11) 3085-5153 E-mail: martapc@einstein.br

RESUMO

Com o declínio da taxa de infecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b após a ampla introdução da vacina, sorotipos não-b devem ser considerados agentes patogênicos potenciais em crianças menores de 5 anos com doença invasiva. Relatamos um caso de meningite por Haemophilus influenzae tipo f em um lactente imunocompetente de 1 ano. O agente foi identificado em líquido cefalorraquidiano e hemocultura. A sorotipagem foi realizada por testes com soros policlonais e confirmada por reação em cadeia de polimerase. Todas as cepas de Haemophilus influenzae associadas à doença invasiva deveriam ser sorotipadas e notificadas, a fim de possibilitar uma análise adequada das mudanças e tendências na distribuição de sorotipos desta doença.

Descritores: Haemophilus influenzae; Meningite/diagnóstico; Brasil; Relatos de casos

ABSTRACT

With the decline in the rate of infections caused by Haemophilus influenzae serotype b since the widespread vaccination, non-b serotypes should be considered as potential pathogenic agents in children with invasive disease younger than 5 years old. We report the case of an immunocompetent 1-year-old boy with Haemophilus influenzae type f meningitis. The agent was identified in cerebrospinal fluid and blood cultures. Serotyping was performed by tests using polyclonal sera and confirmed by polymerase chain reaction. All Haemophilus influenzae isolates associated with invasive disease should be serotyped and notified as a way to evaluate the changes and trends in serotype distribution of this disease.

Keywords: Haemophilus influenzae; Meningitis/diagnosis; Brazil; Case reports

INTRODUÇÃO

Haemophilus influenzae (Hi) é um patógeno significante em humanos, cujas cepas encapsuladas são classificadas em sorotipos de a a f e não tipáveis (NTHi) com base no polissacarídeo capsular. Todos esses sorotipos antigênicos podem causar doenças invasivas que, mais frequentemente, são relatadas em pacientes pediátricos. As cepas não encapsuladas são menos virulentas e raramente causam infecções graves em pacientes pediátricos(1).

Anteriormente à introdução da vacina conjugada contra o Hi em 1988, o sorotipo b era responsável por mais de 95% das doenças invasivas por Hi em todo o mundo. Nos Estados Unidos, estima-se que 20 mil casos eram diagnosticados anualmente entre crianças menores de 5 anos com incidência de cerca de cem casos por 100 mil indivíduos, dado que se reduziu para 0,11 em 2010(2). Entretanto, o Hib permanece como principal causa de meningite entre crianças não imunizadas, principalmente em países em desenvolvimento(1).

No Brasil o Hib também era predominante no período pré-vacinação (antes de 1999), com poucos relatos de sorotipos não-b(3-5). Dados de um estudo regional de meningite pelo Hib mostrou incidência de 25,4 por 100 mil na população pediátrica com menos de 5 anos, reduzindo-se para 0,6 no quinto ano após a imunização(3). Infelizmente, não existem dados oficiais nacionais em relação à incidência de doenças invasivas por Hib e não-b antes ou após a introdução da vacina no país.

A difusão da vacinação tem motivado o debate da substituição de sorotipos, já que outros sorotipos podem preencher o nicho ecológico deixado aberto pelo tipo b(1,3). Se essa hipótese for verdadeira, deveríamos detectar cepas do tipo não-b mais frequentemente na era pós-vacinação.

Três casos de Hi tipo f foram relatados no Brasil antes de 1999(5). A partir desse ano, 22 casos de meningites por Hif foram identificados de acordo com laboratórios de referência nacional(4,5). Apresentamos um relato de caso de criança imunocompetente diagnosticada com meningite por Hif e revisão de literatura de dados epidemiológicos recentes do Brasil e de outros países.

RELATO DE CASO

Criança do gênero masculino com 1 ano de idade foi admitida na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) de hospital privado terciário em São Paulo (SP, Brasil), com história de febre nos últimos 3 dias, vômitos no dia anterior à admissão e sonolência nas últimas 12 horas. A criança apresentou pneumonia 3 meses antes da internação, sem outros antecedentes relevantes. Seu calendário vacinal estava completo. À admissão, sua temperatura era de 38,2oC/100,8oF, estava pálido e com enchimento capilar prolongado; apresentava irritabilidade alternada com letargia e sinais de irritação meníngea. Sua frequência cardíaca era de 145bpm; a pressão arterial e a saturação de oxigênio estavam normais. O líquido cefalorraquidiano (LCR) revelou 4.110 leucócitos/mm3 (83% de neutrófilos), proteinorraquia de 440mg/dL, glicorraquia <20mg/dL e lactato de 107mg/dL. A aglutinação por látex para Haemophilus spp foi inconclusiva. A tomografia computadorizada do crânio apresentou resultado normal.

Administrou-se ceftriaxona 30 minutos após a admissão. A perfusão periférica melhorou após 80mL/kg de solução salina. Nas culturas de LCR e sangue houve crescimento de Hi, identificado como do tipo f por método de aglutinação com soros policlonais. O sorotipo foi confirmado por genotipagem capsular baseada em reação em cadeia da polimerase (PCR) utilizando o sistema Microseq. A avaliação imunológica, incluindo imunoglobulina sérica e testes de anticorpos específicos, mostrou resultados normais.

O tempo de hospitalização na UTIP foi de 2 dias. A criança recebeu alta após 12 dias de internação. Em 5 anos de seguimento não se detectou perda auditiva ou distúrbios do desenvolvimento neurológico.

DISCUSSÃO

A doença sistêmica atribuída ao sorotipo f é fatal em aproximadamente 20% das crianças e 30% dos adultos. Enquanto a maioria dos adultos infectados por cepas de Hif apresenta doenças subjacentes significantes, em crianças essa situação é menos comum (26% dos casos). Pneumonia é a síndrome clínica predominante em pacientes adultos com doença invasiva por Hif(6). Em criança menor de 5 anos, a pneumonia e a meningite são igualmente representadas, porém existem relatos de infecções em sítios incomuns como endocardite e artrite séptica em crianças hígidas(1,6). História recente de infecção das vias áreas superiores precedendo a infecção por Hif é mais comum em crianças do que em adultos(6).

Nos últimos anos, as doenças invasivas causadas por cepas não-b têm sido relatadas com maior frequência, tanto em adultos quanto em crianças, todavia ainda não está claro se a incidência absoluta da doença aumentou. A literatura em relação à emergência de doença por Hi não-b é relativamente escassa e mostra resultados heterogêneos. Curiosamente, existem variações geográficas na distribuição de doenças invasivas causadas por cepas não-b, com predomínio de sorotipos a, e, f ou NTHi em regiões diferentes(1,5-9).

Estudo multicêntrico conduzido no Canadá durante os anos pós-vacinação mostrou que dois terços das doenças invasivas por Hi foram causadas por sorotipos não-b (principalmente NTHi e Hia), com média de 14,8 de casos por ano e que a taxa anual dessas doenças tem aumentado no decorrer dos anos. Não há dados da incidência pré-vacinação, já que a sorotipagem não era um método disponível naquele momento(7). Um programa de vigilância ativa nos Estados Unidos relatou um aumento na proporção de doenças invasivas por Hi causadas por NTHi de 15% para 45% em 6 anos (de 1989 a 1994) e por Hif de 1 para 17%, este então tornando-se próximo ao Hib (18%). No período, a incidência absoluta de casos de Hif aumentou de 0,5 para 1,9/1.000.000 de pessoas, enquanto as infecções por NTHi permaneceram em 5,0/1.000.000 de pessoas(6). Dados mais recentes do Centers for Disease Control and Prevention, porém, estabelecem que a incidência de infecções invasivas por Hi tipo não-b como um todo permanece estável em 0,8/100.000 crianças americanas com menos de 5 anos de idade(2). Na Europa, houve um aumento pequeno, mas estatisticamente significante, de doenças invasivas por Hib, cuja incidência foi de 0,22 a 0,35/ 100.000 pessoas em 10 anos (de 1996 a 2006), de acordo com um projeto de vigilância internacional. No grupo de crianças com menos de 5 anos, 75% das infecções causadas por sorotipos não-b foram devidas ao Hif, com incidência de 0,78/1.000.000, seguido pelo Hia e Hie(8).

Uma investigação conduzida na América Latina de 2000 a 2005 relatou que o Hib continuava a ser o sorotipo mais prevalente em todos os grupos etários abaixo de 14 anos (65%), seguido por NTHi (24,7%), Hia (6,1%) e Hif (1,6%). Todavia, a frequência relativa de Hib decresceu desde 2000 e seu declínio poderia ter sido ainda maior se a vacina tivesse sido introduzida simultaneamente em todos os países estudados (variação de 1994 no Uruguai a 2006 na Guatemala). Durante o mesmo período, a proporção de NTHi e Hia aumentou em crianças com menos de 2 anos enquanto a Hif permaneceu estável em todos os grupos etários(9).

No Brasil, uma vigilância laboratorial passiva para meningite por Hi, conduzida de 1990 a 2008, mostrou declínio nas cepas de Hib identificadas em crianças menores de 4 anos, enquanto a identificação de meningite por Hia e NTHi aumentou significativamente em lactentes e crianças de 1 a 4 anos, respectivamente. No período pós-vacinal, o Hib representou 59% dos Hi identificados nas meningites (sangue ou LCR); NTHi aumentou de 2 para 22% em comparação ao período anterior, e os sorotipos não-b de 1 a 19%, sendo que, destes, 14% eram Hia e 2,9% Hif (21 casos)(5). Apesar da tendência observada, os dados não sugerem aumento absoluto da doença invasiva por não-b ou NTHi após vacinação para Hib no Brasil ou na América Latina(5,9).

O método padrão para sorotipagem de Hi é a aglutinação com soros policlonais. Entretanto, quando comparado à tipagem capsular por PCR ou anticorpos monoclonais, aquele método mostra-se menos confiável, sendo a relação de concordância entre o método padrão e os outros dois de apenas 76%(10). No Brasil, os testes com soros policlonais ainda são os mais utilizados. Tal fato, portanto, pode impactar a epidemiologia dos diferentes tipos de Hi no país. Provavelmente, a ocorrência de tipos não-b é ainda maior do que apresentada neste trabalho. Além disso, apesar da meningite por Hi ser doença de notificação compulsória desde 1977, apenas em 2000 introduziu-se a recomendação de sorotipagem de todas as cepas de Hi, pelas políticas nacionais de saúde. Esse fato pode impactar na baixa incidência de infecções por Hi não-b relatada na era pré-vacinal.

As mudanças que ocorrem ao longo do tempo e em regiões distintas devem ser interpretadas cuidadosamente, já que podem refletir diferenças de vigilância, práticas de cultura, taxas e método de sorotipagem, além das condições subjacentes de pacientes infectados.

O aumento na identificação de Hi não-b isolado ou mesmo das mudanças na distribuição de sorotipos são preocupações da vigilância de saúde pública, devido à inexistência de vacinas contra esses sorotipos. Os autores de estudos mencionados sugerem sorotipagem de todas os Hi identificados em doença invasiva como um meio de avaliar o programa de imunização contra o tipo b, informar a sensibilidade do sistema de vigilância e identificar doenças invasivas causadas por sorotipos diferentes do b(2,5).

A substituição de sorotipos não tem sido considerada na elaboração de vacinas conjugadas de Hib, provavelmente pelo fato de que cepas do não-b raramente causavam doenças invasivas. Porém, como apresentado neste trabalho e em outros, as doenças invasivas por tipos não-b têm sido observadas mais frequentemente em regiões onde a vacina conjugada de Hib é utilizada. Nosso relato de meningite por Hif e o fato de existirem poucos relatos de sua ocorrência no Brasil antes de 1999 podem contribuir para a discussão da substituição de sorotipos.

CONCLUSÃO

Todas as cepas de Hi identificas em doenças invasivas deveriam ser sorotipadas e notificadas como forma de avaliar os programas de imunização contra Hib, a sensibilidade do sistema de vigilância e identificar doenças invasivas por sorotipos não-b. O aumento da identificação de Hi não-b é uma preocupação de saúde pública já que não existem vacinas contra tais sorotipos. A vigilância contínua é decisiva para avaliação das tendências em relação ao aumento de doenças por Hif e outros tipos não-b, como discutido neste trabalho e em outros estudos.

AGRADECIMENTO

Agradecemos a Marcia Triunfol da Publicase pelas sugestões e revisão do manuscrito.

Data de submissão: 10/12/2010

Data de aceite: 14/11/2013

  • 1. Killian M. Haemophilus. In: Murray P, Baron E, Jorgensen J, Pfaller M, Yolken R, editors. Manual of clinical microbiology. 9th ed. Washington, DC: American Society for Microbiology; 2007. p. 636-48.
  • 2
    Centers for Disease Control and Prevention (CDC). 2012. Active Bacterial Core Surveillance Report, Emerging Infections Program Network, Haemophilus influenza 2010 [Internet]. [cited 2013 Nov. 21]. Available from: http://www.cdc.gov/abcs/reports-findings/survreports/hib10.html
  • 3. Ribeiro GS, Lima JB, Reis JN, Gouveia EL, Cordeiro SM, Lobo TS, et al. Haemophilus influenzae meningitis 5 years after introduction of the Haemophilus influenzae type b conjugate vaccine in Brazil. Vaccine. 2007;25(22):4420-8.
  • 4. Almeida AE, Filippis I, Abreu AO, Ferreira DG, Gemal AL, Marzochi KB. Occurrence of Haemophilus influenzae strains in three Brazilian states since the introduction of a conjugate Haemophilus influenzae type b vaccine. Braz J Med Biol Res. 2005;38(5):777-81.
  • 5. Zanella RC, Bokerman S, Andrade AL, Flannery B, Brandileone MC. Changes in serotype distribution of Haemophilus influenzae meningitis isolates identified through laboratory-based surveillance following routine childhood vaccination against H. influenzae type b in Brazil. Vaccine. 2011;29(48):8937-42.
  • 6. Urwin G, Krohn JA, Deaver-Robinson K, Wenger JD, Farley MM. Invasive disease due to Haemophilus influenzae serotype f: clinical and epidemiologic characteristics in the H. influenzae serotype b vaccine era. The Haemophilus influenzae Study Group. Clin Infect Dis. 1996;22(6):1069-76.
  • 7. McConnell A, Tan B, Scheifele D, Halperin S, Vaudry W, Law B, Embree J; of The Canadian Immunization Monitoring Program, ACTive (IMPACT). Invasive infections caused by haemophilus influenzae serotypes in twelve Canadian IMPACT centers, 1996-2001. Pediatr Infect Dis J. 2007;26(11):1025-31.
  • 8. Ladhani S, Slack MP, Heath PT, von Gottberg A, Chandra M, Ramsay ME; European Union Invasive Bacterial Infection Surveillance participants. Invasive Haemophilus influenzae disease, Europe, 1996-2006. Emerg Infect Dis. 2010;16(3):455-63.
  • 9. Gabastou JM, Agudelo CI, Brandileone MC, Castañeda E, de Lemos AP, Di Fabio JL; Grupo de Laboratorio de SIREVA II. [Characterization of invasive isolates of S. pneumoniae, H. influenzae, and N. meningitidis in Latin America and the Caribbean: SIREVA II, 2000-2005]. Rev Panam Salud Publica. 2008; 24(1):1-15. Spanish.
  • 10. Bokermann S, Zanella RC, Lemos AP, Andrade AL, Brandileone MC. Evaluation of methodology for serotyping invasive and nasopharyngeal isolates of Haemophilus influenzae in the ongoing surveillance in Brazil. J Clin Microbiol. 2003;41(12):5546-50.
  • Correspondence:
    Marta Pessoa Cardoso
    Rua Capote Valente, 432, conjunto 121 - Pinheiros
    CEP: 05409-001 - São Paulo, SP, Brasil
    Tel.: (11) 3085-5153
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Dez 2010
    • Aceito
      14 Nov 2013
    Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@einstein.br