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Primeiro caso autóctone de tripanossomíase americana no Estado do Acre (Brasil) e sua correlação com as cepas isoladas do caso humano e de triatomíneos silvestres da área

The first autochthonous case of American trypanosomiasis in the State of Acre, Brazil, and its correlation with the strains identified in the human case and the sylvatic triatomines in the area

Resumos

São apresentados os resultados obtidos na investigação entorno-epidemiológica realizada no estudo do primeiro caso humano autóctone de tripanossomíase americana no Estado do Acre (Brasil). A investigação demonstrou ausência de domiciliação triatomínea, ficando descartada totalmente a possibilidade de transmissão congênita ou transfusional. Não foi possível verificar se a transmissão foi metaxênica através da invasão domiciliar de barbeiro silvestre, ou se por via digestiva através de alimentos contaminados. Foram isoladas duas cepas de Trypanosoma cruzi, uma do caso humano chamada Acre-Humana (AH) e outra de Rhodnius robustus coletados em palmeiras uricuri (Attalea sp) nas proximidades da casa, chamada Acre-Silvestre (AS). Ficou comprovada a existência de correlação entre os caracteres morfobiológicos e patogênicos das duas amostras estudadas: mostraram-se patogênicas para camundongos, infectando 100% dos animais, quer com formas metacíclicas de triatomíneos, quer com formas sanguícolas de doadores em fase aguda. A infecção dos camundongos nas duas amostras é grave com curto período pré-patente, parasitemia elevada e taxa de letalidade alta. Em ambas as cepas, em fase aguda, são abundantes ninhos de amastigotas, principalmente no coração e fígado. As amostras AH e AS conferem aos animais que sobrevivem boa resistência contra infecções pela amostra Y. Cultivaram-se facilmente em meios líquidos e semi-sólidos e infectaram experimentalmente seis espécies de triatomíneos. Os resultados comprovam mais uma vez a presença de focos naturais desta parasitose na região.

Tripanossomose sul-americana; Trypanosoma cruzi; Rhodnius robustus; Triatomidae; Reservatórios de doenças


Results of entomological and epidemiological investigations on the first autochthonous human case of American trypanosomiasis in the State of Acre, Brazil are presented. There are no synanthropic triatomine vectors in the area. Possibility of congenital or transfusional transmission is completely excluded. However, it is not possible to establish whether transmission was the result of house invasion of a silvatic triatomine species or contamined food. Two strains of Trypanosoma cruzi were isolated: one from humans which was called "Acre-Humana" (AH) and another from Rhodnius robustus collected in palm-trees (Attalea sp.) near the dwelling, called "Acre-Silvestre" (AS). There is a close relationship between the strains of T. cruzi studied, in both morphological and pathogenic aspects. These strains are pathogenic for baby mice, showing an infection rate of one hundred per cent. In both strains, the mice infection was very severe, with high lethality and parasitemia rates and a short prepatente period. In both strains during the acute infection phase, leishmanial forms were easily seen in tissue sections, specially in mice hearts and livers. Mice which recovered from infection with the AH and AS strain had a high resistence against reinoculations with the Y strain of T. cruzi. AH and AS strains were easily cultivated in blood-agar medium and Warren's liquid medium and infected six species of triatomine tested. The results confirm once again the existence of natural focci of American trypanosomiasis in the area.

Trypanosomiasis; Trypanosoma cruzi; Rhodnius robustus; Triatomidae; Disease reservoirs


Primeiro caso autóctone de tripanossomíase americana no Estado do Acre (Brasil) e sua correlação com as cepas isoladas do caso humano e de triatomíneos silvestres da área* * Apresentado na 11ª Reunião Anual Sobre Pesquisa Básica em Doença de Chagas, Caxambu, 1984.

The first autochthonous case of American trypanosomiasis in the State of Acre, Brazil, and its correlation with the strains identified in the human case and the sylvatic triatomines in the area

José Maria Soares BarataI; Roraima Moreira RochaII; Vera Lúcia C.C. RodriguesIII; Antenor Nascimento Ferraz FilhoIII

IDepartamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Univesidade de São Paulo — Av. Dr. Arnaldo, 715 — 01255 — São Paulo, SP — Brasil

IISuperintendência de Campanha de Saúde Pública (SUCAM) — Rua Cel. João Donato, 125 — 69900 — Rio Branco, AC — Brasil

IIISuperintendência de Controle de Endemias (SUCEN) — Rua Afonso Pessine, 86 — 13840 — Mogi-Guaçú, SP — Brasil

RESUMO

São apresentados os resultados obtidos na investigação entorno-epidemiológica realizada no estudo do primeiro caso humano autóctone de tripanossomíase americana no Estado do Acre (Brasil). A investigação demonstrou ausência de domiciliação triatomínea, ficando descartada totalmente a possibilidade de transmissão congênita ou transfusional. Não foi possível verificar se a transmissão foi metaxênica através da invasão domiciliar de barbeiro silvestre, ou se por via digestiva através de alimentos contaminados. Foram isoladas duas cepas de Trypanosoma cruzi, uma do caso humano chamada Acre-Humana (AH) e outra de Rhodnius robustus coletados em palmeiras uricuri (Attalea sp) nas proximidades da casa, chamada Acre-Silvestre (AS). Ficou comprovada a existência de correlação entre os caracteres morfobiológicos e patogênicos das duas amostras estudadas: mostraram-se patogênicas para camundongos, infectando 100% dos animais, quer com formas metacíclicas de triatomíneos, quer com formas sanguícolas de doadores em fase aguda. A infecção dos camundongos nas duas amostras é grave com curto período pré-patente, parasitemia elevada e taxa de letalidade alta. Em ambas as cepas, em fase aguda, são abundantes ninhos de amastigotas, principalmente no coração e fígado. As amostras AH e AS conferem aos animais que sobrevivem boa resistência contra infecções pela amostra Y. Cultivaram-se facilmente em meios líquidos e semi-sólidos e infectaram experimentalmente seis espécies de triatomíneos. Os resultados comprovam mais uma vez a presença de focos naturais desta parasitose na região.

Unitermos: Tripanossomose sul-americana, transmissão. Trypanosoma cruzi, isolamento. Rhodnius robustus, parasitologia. Triatomidae, parasitologia. Reservatórios de doenças.

ABSTRACT

Results of entomological and epidemiological investigations on the first autochthonous human case of American trypanosomiasis in the State of Acre, Brazil are presented. There are no synanthropic triatomine vectors in the area. Possibility of congenital or transfusional transmission is completely excluded. However, it is not possible to establish whether transmission was the result of house invasion of a silvatic triatomine species or contamined food. Two strains of Trypanosoma cruzi were isolated: one from humans which was called "Acre-Humana" (AH) and another from Rhodnius robustus collected in palm-trees (Attalea sp.) near the dwelling, called "Acre-Silvestre" (AS). There is a close relationship between the strains of T. cruzi studied, in both morphological and pathogenic aspects. These strains are pathogenic for baby mice, showing an infection rate of one hundred per cent. In both strains, the mice infection was very severe, with high lethality and parasitemia rates and a short prepatente period. In both strains during the acute infection phase, leishmanial forms were easily seen in tissue sections, specially in mice hearts and livers. Mice which recovered from infection with the AH and AS strain had a high resistence against reinoculations with the Y strain of T. cruzi. AH and AS strains were easily cultivated in blood-agar medium and Warren's liquid medium and infected six species of triatomine tested. The results confirm once again the existence of natural focci of American trypanosomiasis in the area.

Uniterms: Trypanosomiasis, South American. Trypanosoma cruzi, isolation. Rhodnius robustus, parasitology. Triatomidae, parasitology. Disease reservoirs.

INTRODUÇÃO

Devido à ausência de domiciliação triatomínea, a região Amazônica é considerada área indene à doença de Chagas. Entretanto, desde há muito tempo que diversos autores tem reconhecido a presença, naquela região, de focos naturais dessa doença, em razão do isolamento ou do encontro de Trypanosoma cruzi em animais e/ou triatomíneos silvestres (Castro Ferreira e Deane, 19386; Deane e Jansen, 19399; Rodrigues e Brito Melo, 194217; Deane e Damasceno, 19498; Deane, 19647; Almeida, 19713; Almeida e Nunes de Mello, 19784; Miles, 198316, entre outros).

Após 1969, quando Shaw e col.20 descreveram os quatro primeiros casos autóctones humanos, em Belém, Estado do Pará, tem sido crescente o número de casos novos registrados em diferentes pontos daquela região. Em 1974, Lacerda Jr. e col.14 comunicam a existência do primeiro caso para o Território do Amapá, no Município de Macapá. Em 1979, Lainson e col.15 descrevem mais três casos no Pará, um em Abaetetuba e dois em Belém. Ainda em 1979, Silveira e col.21 relatam a ocorrência de outro caso naquele Estado, na ilha do Mosqueiro. Em 1980, França e col.13 descrevem o primeiro caso no Estado do Amazonas, no Município de São Paulo de Olivença. Em 1981, Dórea10 descreve outro caso no Estado do Pará, no Município de Santo Antonio do Tauá. Em 1985, Souza Lima e col.22 descrevem outro caso no Amazonas, no Município de Barcelos. Nesse mesmo ano, Rodrigues e col.18 descrevem mais um caso no Pará, no Município de São Felix do Xingú. E finalmente, em 1986, Rodrigues e col.19 descrevem mais oito casos no Amapá, todos no Município de Macapá. Perfazendo, portanto, um total de 22 casos autóctones reconhecidos e distribuídos: 10 no Pará, 9 no Amapá, 2 no Amazonas e 1 no Acre.

Embora em muitos dos referidos casos não se tenham esgotado as investigações epidemiológicas, em nenhum deles evidenciou-se domiciliação triatomínea local. Para a maioria dos casos não ficou claro o mecanismo de transmissão e pelas evidências concluiu-se que a infecção ou foi através de ingestão de alimentos contaminados; ou detectou-se nas proximidades das moradias, palmeiras ou outros ecótopos naturais abrigando biocenoses dessa infecção; ou ainda, em raros casos, associou-se à invasão das casas por barbeiros silvestres.

No presente trabalho são apresentados os resultados obtidos na investigação entomo-epidemiológica do primeiro caso humano autóctone do Estado do Acre e sua correlação entre as cepas de Trypanosoma cruzi ísoladas do caso humano e de triatomíneos silvestres capturados na área.

MATERIAL E MÉTODOS

Para obtenção dos dados de caracterização do caso e da região foram seguidas as normas da Superintendência de Campanha de Saúde Pública (SUCAM) para investigação de casos parasitologicamente positivos para T. cruzi e investigação entomológica na área, acrescidas de observações anteriromente descritas (Forattini, 1980¹¹ 198112).

Para caracterização das cepas estudadas partiu-se de amostras de T. cruzi isoladas, respectivamente, por xenodiagnóstico do caso humano agudo, denominado de Acre-Humano (AH), e de uma ninfa de quinto estádio de Rhodnius robustus capturada em palmeira Attalea sp, denominada Acre-Silvestre (AS). Após isolamento, as amostras foram mantidas em camundongos brancos com 21 dias de idade, mediante inoculações intraperitoneal de sangue de doadores com infecção aguda. Os repiques feitos com 15 dias de intervalo e o inóculo foi de aproximadamente 3,5 x 106 tripomastigotas. Para melhor eficácia das provas de proteção as inoculações foram feitas com doses menores de tripomastigotas por ml.

Como elemento de estudo da patogenicidade, biologia e morfologia das amostras, usamos os métodos empregados e descritos por Albuquerque e Barreto1,2 (1968). As observações foram tabeladas e confrontadas, visando à possibilidade de correlações morfo-biométrica e biológica entre as duas amostras.

RESULTADOS OBTIDOS

Caracterização do Caso

MAS, um ano e sete meses de idade, sexo feminino, nasceu na localidade Boa Vista (Fig. 2), atualmente incorporada ao Projeto Pedro Peixoto (Gleba U), Município de Plácido de Castro, Estado do Acre. Filha de pais seringueiros e com seis irmãos mais velhos, morou nessa localidade até a idade de um ano e um mês. Quando, então, mudou para o Projeto Redenção II (Fig. 3), distante da moradia anterior cerca de 20 km, e pertencente ao mesmo município (Fig. 1). Tal caso foi detectado por busca passiva de rotina dentro do programa de controle da malária feita pela SUCAM, na área, através do Posto de Notificação n.º 1397, no Município de Plácido de Castro.Classificado como febril atual foi feita gota espessa por punção digital no dia 12/7/1982 e concomitantemente medicação antimalárica supressiva de rotina (cloroquina). Como o exame hemoscópico revelou a presença de formas tripomastigotas, foi realizada nova colheita em 19 do mesmo mês, para confirmação de diagnóstico. Nessa ocasião procedeu-se também à investigação epidemiológica do caso, tendo a criança apresentado, no momento, quadro febril, e ao exame hemoscópico foi obtido o mesmo resultado anterior. Mediante informações colhidas de familiares sua história pregressa não assinalou nenhum quadro digno de nota. O exame físico revelou febre intermitente e além de quadro de anemia e anasarca compatíveis com a região, nenhuma alteração que merecesse destaque especial. Não foi possível evidenciar a porta de entrada da infecção, tendo sido negados antecedentes operatorios ou de transfusão sanguínea. Os pais declaram terem nascido no município e nunca terem viajado para fora do Estado. A mãe informou ainda nunca ter sido hospitalizada e todos seus partos terem sido realizados no próprio domicílio. Não tinham nenhum conhecimento sobre doença de Chagas e desconheciam totalmente a existência de barbeiros. No mês seguinte procedeu-se à colheita de sangue em todos os membros da família para diagnóstico de infecção chagásica, em papel de filtro para reação de imunofluorescência indireta. Paralelamente realizou-se xenodiagnóstico nos membros da família e nos animais domésticos, com cinco ninfas de Triatoma infestans, 5 ninfas de Panstrongylus megistus e 5 ninfas de Rhodnius neglectus, as quais foram examinadas com 15, 30 e 45 dias. Concomitantemente iniciou-se a busca de indícios de domiciliação na casa e anexos. Naquele momento, esses exames foram todos negativos, com exceção do xenodiagnóstico da menor MAS, do qual foi isolada uma das cepas e que passou a ser chamada Acre-Humano (AH). No mês de outubro, com a confirmação dos resultados, voltou-se à área para ser feita a medicação do caso, constatando-se que a familia havia mudado e tomado destino ignorado. Mensalmente até janeiro do ano seguinte foram feitas várias incursões à área para a pesquisa de triatomíneos, mesmo assim não foi possível detectar-se a direção que tomou aquela família. Os resultados dessas observações estão relacionadas no capítulo seguinte.




Caracterização da Região e da Pesquisa Silvestre de Triatomíneos

A localidade Boa Vista e o Projeto Redenção II, localidades onde, respectivamente, nasceu e morou a menor MAS, pertenciam a uma área maior chamada Colônia Plácido de Castro, em município do mesmo nome, Estado do Acre. Essa Colônia está situada a menos de 20 km da sede do município e está ligada à cidade de Rio Branco, capital do Estado, pela Rodovia AC-40, pela qual dista cerca de 90 km daquela cidade (Fig. 1). A partir de 1972, a reforma agrária dirigida pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) descaracterizou os antigos seringais. Essa Colônia, assim como vários seringais passaram a fazer parte de um projeto de colonização que tomou o nome de Projeto Pedro Peixoto. Essa reforma não só mudou a estrutura fundiária, mas, e principalmente, alterou profundamente a distribuição espacial da população local. Entretanto não conseguiu alterar as condições de higiene, habitação e alimentação daquela população. As casas onde nasceu e morou a menor MAS (Figs. 2 e 3) são típicas na região. Essas habitações continuam mantendo padrão semelhante, mesmo após a implantação da reforma. São barracas cobertas de palha (folhas de palmeira uricuri) com dois ou três cômodos, comumente com meias paredes, ou sem paredes, elevadas do solo, e freqüentemente com paredes e assoalho feitos de paxiuba (caule de palmeira Irirartea exorrhiza Mart., cortado longitudinalmente). São quase sempre construídas muito próximo da mata (capoeira), em pequenas clareiras, onde às vezes são plantados alguns pés de mandioca e milho para subsistencia da família. Há em toda a área abundância de palmeiras uricuri (Attalea sp.), as quais entre outras serventias têm suas folhas utilizadas para cobertura de casas. Na pesquisa de ecótopos naturais realizados na área, entre setembro de 1982 e janeiro de 1983, foi constatada a presença de R. robustus em ninhos de roedores em duas dessas palmeiras que se encontravam, respectivamente, a cerca de 10 e 20 m., da primitiva casa (Fig. 1). Nessa ocasião foi capturado um total de 29 exemplares de R. robustus, sendo 4 machos, 2 fêmeas e 23 ninfas. Desses, um macho, duas fêmeas e duas ninfas encontravam-se infectados com formas tripomastigotas e dos quais foi isolada a outra cepa de T. cruzi, a qual chamamos de Acre-Silvestre (AS). Outros tipos de ecótopos naturais foram pesquisados, todos eles, entretanto, salvo as citadas palmeiras, foram negativos.

Caracterização e Correlação das Cepas

As duas amostras (humana e silvestre) do T. cruzi, oriundas do Estado do Acre, determinaram no animal experimental (camundongos) uma rápida e progressiva infecção, a qual evoluiu num período de 15 dias a contar da data da inoculação, com mortalidade total dos animais dentro deste período.

Infecção em animais de laboratório — Na Tabela 1 encontram-se os resultados obtidos dos repiques de tripomastigotas sangüíneas em diferentes lotes de camundongos.

As duas amostras estudadas apresentaram período pré-patentes curtos, entre o segundo e terceiro dias após a inoculação. Mostraram níveis parasitêmicos em geral elevados, variando muito pouco de uma passagem para outra, atingindo níveis mais altos entre o 12º e 15° dias após a inoculação. Os níveis parasitários altos, aliados a precocidade de parasitemia máxima e a elevada taxa de letalidade indicam que as duas amostras em estudos são muito virulentas para camundongos.

Morfologia e biometria dos tripanossomas sanguícolas — Os tripanossomas observados em esfregaços de sangue de camundongos das duas amostras apresentaram-se pouco variáveis e têm os caracteres marcantes do T. cruzi: comprimento moderado, cinetoplasto volumoso e de localização terminal e subterminal, núcleo ocupando o terço médio do corpo, membrana ondulante com poucas ondulações e flagelo relativamente curto (Fig. 4).


Os resultados do estudo biométrico, baseado na micrometria de trinta tripanossomas de cada amostra, encontram-se sumariados na Tabela 2, e mostram uma pequena diferença do comprimento total médio entre as duas amostras. A cepa AS apresenta os tripomastigotas sanguícolas um pouco maiores que a cepa AH.

Parasitismo tissular — O exame de cortes de tecidos de camundongos mortos durante a fase aguda da infecção teve nas duas amostras presença intensa de ninhos de amastigotas na musculatura cardíaca (Fig. 5). O fígado também apresentou bom grau de parasitismo, o mesmo não ocorrendo com o esôfago, baço e intestino, órgãos esses com discreto parasitismo tissular.


Infectividade para triatomíneos — Foram empregadas seis espécies de triatomíneos procurando-se verificar a susceptibilidade das mesmas frente às duas amostras do T. cruzi. Foi utilizado para cada amostra ninfas do quarto estádio de T. infestans, Triatoma sordida, T. brasiliensis, P. megistus, R. neglectus e Rhodnius prolixus, distribuídas em lotes de trinta ninfas para cada espécie e amostra de T. cruzi (360 nf.). Os resultados obtidos por dissecção do conteúdo intestinal, 30 dias após a alimentação, encontram-se na Tabela 3 e indicam que, das espécies testadas, as que mostraram maior suscetibilidade às duas amostras em estudo foram T. sordida e R. neglectus.

Cultivabilidade — As duas amostras AH e AS de T.cruzi, semeadas em meios artificiais líquido (Warren) ou semisólido (NNN), tiveram comportamento comum e semelhante entre si, isto é, foram facilmente cultivadas e foi observado sempre um bom crescimento nos repiques sucessivos realizados com intervalos regulares.

Provas de proteção — Dez camundongos da amostra AH e dez camundongos da amostra AS, cuja infecção evoluiu para a cronicidade, foram reinoculados com 0,2 ml de sangue de doadores com infecção aguda pela amostra Y. Como testemunhos, foram inoculados 10 camundongos limpos, com a mesma dose e idade dos utilizados nos lotes anteriores. Verificou-se que os testemunhos morreram entre o 10º e 15º dias após a inoculação.

Os camundongos com infecção crônica pelas duas amostras do Acre, mostraram-se resistentes, não apresentando parasitos no sangue circulante em sucessivos exames.

Foi difícil a realização da prova de proteção pois as amostras em estudo mostraram uma alta virulência; desta forma, os camundongos separados para estas provas passaram a ser inoculados com doses menores de tripomastigotas por ml.

Correlação entre os caracteres das duas amostras em estudo — Analisando-se os resultados obtidos no estudo da infecção pode-se verificar a existência de correlação entre os caracteres de infecção das duas amostras. Assim sendo, observou-se nas duas amostras (AH e AS) infecção caracterizada por um período prepatente curto, elevadas parasitemias e alta taxa de letalidade.

O estudo das duas amostras em relação às formas tissulares mostrou o mesmo quadro histopatológico.

A análise dos valores obtidos dos caracteres morfobiométricos mostrou uma pequena diferença no comprimento total médio (amostra AH — comprimento total médio = 25,48 u; amostra AS — comprimento total médio = 27,90 u) o que não invalida que haja uma correlação entre elas (Tabela 2).

COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES

Diante dos dados investigados e apresentados no presente trabalho, não há dúvida quanto ao caráter autóctone do caso em discussão. Assim como, fica descartada a possibilidade de transmissão congênita ou transfusional.

As características morfobiométricas, patogênicas e biológicas das duas amostras estudadas (AH e AS) mostram que se tratam de cepas de T. cruzi acentuadamente patogênicas. E o estudo comparativo entre elas não apresenta variabilidade significativa, o que sugere uma estreita correlação e, conseqüentemente, uma forte indicação de contaminação local. Entretanto, diante da ausência de indícios de domicilação triatomínea, não fica evidente se a transmissão foi metaxênica pela invasão domiciliar de triatomíneo silvestre, provavelmente R. robustus, ou se foi por via digestiva através da ingestão de alimentos contaminados por fezes de barbeiros ou por excreta de reservatórios portadores de T. cruzi.

De qualquer forma, esse fato uma vez mais confirmaria a presença de biocenose silvestre na região e explicaria o desencadeamento desses casos em áreas não endêmicas e ainda com baixa alteração ambiental. Tal quadro ficou evidenciado no estudo de casos semelhantes ocorridos no ecossistema da Serra do Mar, na região Sudeste do Brasil, nos quais, guardadas as devidas ressalvas, há certo paralelismo epidemiológico. E onde foi considerado que as relações diretas do homem com vetores e reservatórios participantes dessa biocenose teriam que ser encarados como de natureza casual ou propiciados por atividades exercidas no ambiente extradomiciliar (Forattini, 198011 e 198112). Entretanto, é preciso levar em consideração que a alteração ambiental provocada pelo homem poderá deslocar esta biocenose para o ecosistema artificial à medida que este ambiente ofereça condições favoráveis à domiciliação triatomínea. E isso poderia ocorrer tanto por conta da adaptação de espécies autóctones de triatomíneos primitivamente silvestres, quanto pela introdução de espécies domiciliadas de áreas endêmicas do país. E o acelerado processo de colonização, pelo qual está sendo submetida a Amazônia, provocando intensa imigração, muitas vezes proveniente de áreas endêmicas do Brasil e desencadeando uma profunda alteração ambiental na região, poderia acelerar essa domiciliação. Advindo daí a necessidade de manutenção, pelos Serviços de Saúde competentes, de uma vigilância entomológica adequada, que facilite a percepção dos indícios de domiciliação e assim, talvez, se possa evitar que se instale na região um processo de domiciliação de difícil e complexo controle.

Recebido para publicação em 12/4/1988

Aprovado para publicação em 20/6/1988

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  • *
    Apresentado na 11ª Reunião Anual Sobre Pesquisa Básica em Doença de Chagas, Caxambu, 1984.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2004
    • Data do Fascículo
      Out 1988

    Histórico

    • Recebido
      12 Abr 1988
    • Aceito
      20 Jun 1988
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