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Fotografia e ciência: a utopia da imagem objetiva e seus usos nas ciências e na medicina

Photography and science: the utopia of objective image and its uses in the sciences and medicine

Resumos

O artigo analisa como a fotografia foi empregada no interior das ciências e, especificamente, na medicina ocidental, desde a segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Nesse período, a fotografia sedimentou o seu papel como instrumento de registro, de conhecimento e de divulgação das práticas médicas, inicialmente na Europa. O principal meio de divulgação de fotografias foram as publicações médicas seriadas, motivo pelo qual a técnica foi rapidamente vulgarizada, a despeito das resistências que despertou. São analisadas aqui fotografias produzidas, principalmente, em Paris e São Paulo, com a preocupação de explicar as condições de sua produção, as implicações heurísticas ligadas ao uso da fotografia na medicina e como, a partir dela, novos significados foram agregados ao universo de representações no campo das práticas médicas.

Fotografia médica; Imagens técnicas; História da ciência médica; Representações visuais


The article analyses how photography was used in the sciences and specifically in western medicine, since the second half of 19th century until the 1920s. In this period photography fixed its role as an instrument for registration, knowledge and diffusion of medical practices, initially in Europe. The main means of disseminating the photographs were medical journals, and that is why this technique was quickly popularized in spite of the resistances that it awakened. Photographs produced principally in Paris and São Paulo are here analysed considering the conditions in which they were produced, the heuristic implications of the links between photography and medicine, and how, through it, new meanings were added to the universe of representations in the field of medical practices.

Medical photography; Technical images; History of medical science; Visual representations


DOSSIÊ IMAGEM, HISTÓRIA E CIÊNCIA

Fotografia e ciência: a utopia da imagem objetiva e seus usos nas ciências e na medicina

Photography and science: the utopia of objective image and its uses in the sciences and medicine

James Roberto Silva

Universidade Federal do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil

Autor para correspondência Autor para correspondência James Roberto Silva Universidade Federal do Amazonas. Instituto de Ciências Humanas e Letras. Programa de Pós-Graduação em História. Campus Universitário, Setor Norte Av. Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, 3000 Manaus, AM, Brasil. CEP 69077-000 ( jamesroberto@hotmail.com)

RESUMO

O artigo analisa como a fotografia foi empregada no interior das ciências e, especificamente, na medicina ocidental, desde a segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Nesse período, a fotografia sedimentou o seu papel como instrumento de registro, de conhecimento e de divulgação das práticas médicas, inicialmente na Europa. O principal meio de divulgação de fotografias foram as publicações médicas seriadas, motivo pelo qual a técnica foi rapidamente vulgarizada, a despeito das resistências que despertou. São analisadas aqui fotografias produzidas, principalmente, em Paris e São Paulo, com a preocupação de explicar as condições de sua produção, as implicações heurísticas ligadas ao uso da fotografia na medicina e como, a partir dela, novos significados foram agregados ao universo de representações no campo das práticas médicas.

Palavras-chave: Fotografia médica. Imagens técnicas. História da ciência médica. Representações visuais

ABSTRACT

The article analyses how photography was used in the sciences and specifically in western medicine, since the second half of 19th century until the 1920s. In this period photography fixed its role as an instrument for registration, knowledge and diffusion of medical practices, initially in Europe. The main means of disseminating the photographs were medical journals, and that is why this technique was quickly popularized in spite of the resistances that it awakened. Photographs produced principally in Paris and São Paulo are here analysed considering the conditions in which they were produced, the heuristic implications of the links between photography and medicine, and how, through it, new meanings were added to the universe of representations in the field of medical practices.

Keywords: Medical photography. Technical images. History of medical science. Visual representations

INTRODUÇÃO

O século XIX, conhecido pelo que representou de incremento científico, técnico e tecnológico sem precedentes na história da civilização ocidental, viu surgir, juntamente com o florescimento de novas especialidades científicas, a fotografia - que se apresentava, para a cultura do período, como um dispositivo de apreensão e de representação da realidade objetiva, regido pela racionalidade técnica. A imagem mecanicamente produzida, proporcionada pelo aparato fotográfico, chegava para abalar os modos de representação e de observação então em vigor: moderadamente, no meio artístico, mas com intensidade no campo científico. De um lado, a fotografia incitava a busca de novas perspectivas para a expressão subjetiva e, de outro, remodelava os conceitos de objetividade e fidelidade tão caros à démarche positivista das ciências.

Nas linhas que seguem, pretendo apresentar um quadro sintético do processo em que consistiu a progressiva adoção da fotografia nos meios científicos, mais especificamente no campo médico. Isto se justifica como esforço de reunir, aqui, conhecimento disperso em livros e artigos acerca desse movimento realizado pela fotografia em direção às ciências, que, no entanto, não costuma questionar a relação entre o meio de geração de imagens e a ciência, tomando essa colaboração como natural. Ao contrário, são raros os exemplos de problematização do envolvimento da ciência com a fotografia. Entre essas raridades, constam as reflexões de André Gunthert, especialmente as que teceu em sua tese de doutorado (1999), na qual lança ponderações acerca da euforia em torno do novo meio, deslindando os discursos que, afinal, fizeram da fotografia um quesito quase obrigatório em todas as atividades da vida, na ciência inclusive.

Como estudo de caso, incorporado a esta reflexão mais geral, propomos, na última terça parte, dirigir o foco para a sondagem de como, no seio das práticas médicas, a técnica fotográfica foi posta a serviço da divulgação e da aprendizagem em seus veículos especializados: as revistas médicas, com destaque para alguns títulos circulantes no Brasil no final do século XIX e princípio do XX.

VER É CONHECER?

O processo aludido pouco acima, de incorporação da fotografia como instrumento científico, constituiu-se, em larga medida, a partir da disputa de discursos em cruzamento com uma práxis, cujas respostas, boas ou más, dadas aos desafios de ordem técnica, obtiveram acolhida suficiente da comunidade científica a ponto de se fixar a fotografia no horizonte dos procedimentos de laboratório, fossem eles quais fossem. A ordem era fotografar para conhecer e, com o registro daí resultante, apoderar-se cognitivamente da coisa representada (Perini, 2012, p. 252). Os estágios que, por meio de seus defensores, a fotografia teve de vencer para ser considerada como um recurso heurístico foram longamente pavimentados pelos estudos de fisiognomonia, como os de Della Porta (1644), Le Brun (1698) e Lavater (1806), nos séculos XVI e XVII, e por muitos outros, uns deles seguidores, no século XIX, como Claude-Jules Berger (1862), Jean-Baptiste Delestre (1866), Ferdinand Rouget (1878) e Charles Darwin (1872). Estes tratados, em muitos casos, viram-se imbricados com os estudos de frenologia (que se ocupa das relações entre a forma do crânio de um indivíduo e seu caráter, sua capacidade intelectual, sua psicologia etc.), dando-lhes o suporte.

O fenômeno que se verifica, de aproximação entre as noções de 'ver' e 'conhecer', também participa do processo de incorporação da fotografia pelas práticas científicas em geral, no seio das quais assimilou-se, sem muita resistência, a convicção de que a fotografia constituía ferramenta técnica ideal, superior ao desenho e à pintura para representar a aparência das células, das estrelas, das espécies botânicas, dos cadáveres humanos (O'Connor, 1999, p. 232). Apesar desse pronto reconhecimento, a "crença nas virtudes científicas da fotografia" (Fabris, 2006, p. 162) não significou, é bom lembrar, que a nova técnica tenha substituído por completo a ilustração feita pela mão do artista, da qual se faz uso mesmo nos dias atuais.

O advento da fotografia, contudo, lançou questionamentos sobre os vários modos de representar visualmente até então existentes. Pinturas, desenhos e gravuras produzidos com fins científicos, e também os moldes em cera, que reproduziam partes doentes do corpo, todos passaram a ser questionados em algum destes aspectos: na fidelidade ao real, na praticidade de realização e, principalmente, na objetividade para representar. Estes deméritos das técnicas até então empregadas para a representação das coisas pareciam facilmente superar todas as dificuldades que se apresentavam para a realização de um daguerreótipo ou de uma fotografia de qualidade e visibilidade - durante muito tempo - bastante duvidosas: custo elevado, poucos operadores, maquinário e equipamento volumoso, substâncias de difícil e, às vezes, perigosa manipulação, resultados incertos.

Durante os primeiros momentos da fotografia, outros aspectos que também poderiam representar um empecilho, como a imagem fixada em metal e incapaz de gerar cópias, como era o caso da daguerreotipia1 1 Louis-Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) emprestou seu nome à técnica de fixação de imagens por ele criada, e que foi anunciada, como de domínio público, na Academia de Ciências de Paris e na Assembleia Nacional francesa, em 1839, por François Arago (1783-1853), físico francês que ocupava uma cadeira de deputado na casa legislativa. Em um daguerreótipo, a imagem se forma pela ação da luz sobre uma placa de cobre, cuja superfície é recoberta por uma solução argêntea, que, embora sensível à incidência luminosa, exige um tempo dilatado de exposição, de vários minutos, para que a imagem nela projetada seja 'gravada'. A imagem latente na placa é, em seguida, processada em solução química. A técnica do daguerreótipo não concebeu, contudo, a possibilidade de reprodução de cópias, o que tornava única a imagem resultante, observável apenas na plaqueta metálica. , não foram suficientes para impedir uma recepção dominantemente positiva (Gunthert, 2010). Em 1840, uma comissão criada para avaliar o interesse da descoberta de Daguerre tinha, entre seus membros, Alexandre von Humboldt. Ao observar um daguerreótipo, declarou que "podia reconhecer na imagem que, numa pequena claraboia - e bem pequena - uma vidraça tinha sido quebrada e reparada com papel" (citado em Frizot, 2001b, p. 58). O testemunho de Humboldt era o de quem se deixara impressionar pela precisão e nitidez na representação das coisas. Ele não era o primeiro que se maravilhava com a exatidão da imagem gravada na superfície metálica; antes dele, Samuel Morse, pintor, físico e inventor do telégrafo, já havia se comovido diante de um daguerreótipo: "Não se pode imaginar a que ponto é delicada a minúcia dos traços. Nenhuma pintura ou gravura é capaz de se aproximar", escreveu ele (Frizot, 2001b, p. 58). Michel Frizot (2001b, p. 58) interpretou assim essas reações:

Esses assombros traduzem a novidade perceptiva introduzida pela fotografia em um universo de imagens fabricadas manualmente, as quais estavam submetidas a regras que parecerão artificiais comparadas à propriedade [do novo sistema] de tudo registrar automaticamente sem interferência da mão ou do espírito.

Em princípios dos anos 1840, William Henry Fox Talbot (1800-1877) ofereceu mais dois fortes argumentos que contribuiriam para caracterizar a fotografia como recurso inspirador de praticidade e objetividade. Em 1840, ele apresentava ao público o processo negativo-positivo, batizado de calotipia2 2 A técnica do calótipo (do grego kalos: belo, bom, útil) consiste em impressionar luminosamente uma folha de papel, que contém, em sua superfície, uma emulsão composta de nitrato de prata, ácido gálico e ácido acético, muito sensível à luz, que requer um tempo de exposição de dezenas de segundos ou poucos minutos, muito curto se comparado ao que exigia o daguerreótipo. Em uma câmara escura, o papel emulsionado é exposto e, em seguida, revelado em solução química, obtendo-se uma imagem negativa, a partir da qual se reproduzem as cópias em positivo (Frizot, 2001b, p. 61). . E, em 1844, ele publicava "The pencil of nature", livro ilustrado com vinte e quatro de suas fotografias montadas sobre cartão (Jeffrey, 1993, p. 10). Com esse título, o método fotográfico era apresentado como desprovido de qualquer intromissão humana para a obtenção de imagens. Entendendo que o termo photography já era bem conhecido e compreendido, Talbot achou suficiente informar, na introdução de sua obra, que "as pranchas deste trabalho foram obtidas pela mera ação da luz sobre o papel sensível" (Talbot, 1844, p. 1).

O calótipo não se tornara, contudo, o processo mais empregado pelo meio científico. Pesavam contra ele a preparação da emulsão sensível sobre papel, a imagem granulada e a baixa sensibilidade à luz, exigindo, por consequência, um longo tempo de exposição (Davanne, 1879, p. 13). Isto se somava à aparência esfumaçada das provas (o flou, na linguagem da fotografia), à falta de claridade e de detalhes e à perda do contraste em pouco tempo. Todo esse conjunto de fatores teria, segundo Stanley Burns (1991, p. 12), restringido bastante o emprego do calótipo tanto na Europa como nos Estados Unidos.

Do mesmo entendimento compartilha Michel Frizot, para quem, se ponderadas as características dos procedimentos, havia suficientes motivos para que se prolongasse a precedência do daguerreótipo sobre outras técnicas, ao menos até os anos 1850, tanto no continente europeu como no norte-americano (Frizot, 2001b, p. 59). Esse quadro de predominância do daguerreótipo vai se modificar com o aparecimento, em 1851, do processo chamado colódio úmido, também conhecido como emulsão gelatinosa, desenvolvido, inicialmente, pelo inglês Frederick Scott Archer (1813-1857). Este processo reuniu três características decisivas para seu relativo sucesso: o emprego de suporte em vidro para o negativo, a possibilidade de tirar um número ainda maior de cópias e o uso de uma emulsão mais sensível à luz, exigindo, portanto, menor tempo de exposição. Segundo Davanne (1879, p. 13),

O processo chamado colódio úmido reina soberano em todos os ateliês, há mais de vinte e cinco anos. Apesar de certos inconvenientes e certos perigos devidos às matérias explosivas e inflamáveis que o constituem, a facilidade de operação (...), a prontidão dos resultados ainda vão mantê-lo por longo tempo [nessa posição].

Os esforços para que a fotografia fosse bem recepcionada no meio científico - ou nele permanecesse - vinham de toda parte. François Arago, que compôs aquela mesma comissão da qual participou Humboldt, na sua condição de cientista e político, mobilizou-se muito para que a Academia de Ciências francesa desse chance ao novo invento para mostrar seus atributos e vantagens. Outro que fez diligência em favor da fotografia como instrumento técnico preciso, apropriado ao emprego científico, foi Louis-Alphonse Davanne (1824-1912), aqui já citado, presidente do Conselho de Administração da Société Française de Photographie entre 1876 e 1901 (Gunthert, 2000, p. 29). O ponto alto dessa campanha teria sido em 1879, quando Davanne proferiu uma conferência na Sorbonne, em um evento da Association Scientifique de France, sobre as origens e as aplicações da fotografia (Gunthert, 2000, p. 30).

Mesmo as controvérsias que se estabeleceram, em meados do século XIX, sobre o estatuto artístico da fotografia deram sua contribuição: importantes opiniões foram manifestadas de modo a favorecer sua fixação no campo científico, como sugeriu Baudelaire (1976, p. 616), ao se pronunciar contra a invasão da nova técnica no campo da expressão artística:

É preciso que ela cumpra seu verdadeiro dever, que é o de servir às ciências e às artes, porém sendo a mais humilde serva, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram nem substituíram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e ofereça a seus olhos a precisão que faltará à sua memória, que ela enfeite a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópicos, até reforce com algumas informações as hipóteses do astrônomo; que ela seja enfim a secretária e o notário de quem quer que, em sua profissão, necessite de absoluta exatidão material, até aí, está perfeito.

A FOTOGRAFIA ENTRE AS PRÁTICAS CIENTÍFICAS

As palavras de Alphonse Davanne na Sorbonne foram logo publicadas por um veículo diretamente interessado. Doze dias após a conferência, o "Moniteur de la Photographie" repercutiu aquele discurso, conferindo à fotografia o status de disciplina e de ciência, ao lado da "química industrial" e da "mecânica aplicada" (Gunthert, 2000, p. 30).

Em sua apresentação de março de 1879, Alphonse Davanne afirmou que, nas conferências que precederam à sua, a fotografia não havia cumprido senão um "papel acessório e modesto", aparecendo apenas como imagem projetada para atrair a atenção dos espectadores. Ele se dizia, então, encarregado de demonstrar aos presentes que a fotografia era capaz de muito mais, e como, "por seus rápidos progressos, tinha se transformado em poderoso auxiliar nos diversos ramos dos conhecimentos humanos" (Davanne, 1879, p. 7).

Cada um dos grupos de novos adeptos da fotografia fazia, a seu modo, a defesa do uso do invento. Não eram evidentes, como se percebe, os atributos científicos da fotografia ou suas vantagens como auxiliar das ciências. A campanha em seu favor fazia apelo a uma renovação das expectativas, trazida pelo advento do novo método de fixar imagens. Com ela, acreditava-se poder ir muito mais além na investigação científica, o que serviu de móvel para sensibilizar o Estado francês a financiar novas experimentações, projetos de aperfeiçoamento técnico e expedições científicas envolvendo a fotografia como recurso investigativo e documental, como no uso feito pela Missão Heliográfica, em 1851, no âmbito dos trabalhos da Comissão dos Monumentos Históricos francesa (Mondenard, 1997).

A fotografia representou um sopro na atividade científica, que passava a incorporar, em suas estratégias especulativas, um novo princípio heurístico, apresentando-se como um novo padrão de rigor - quando, de fato, a imagem fotográfica, a um só tempo, desviava a atenção do texto para si e conferia poder persuasivo ao conjunto do discurso científico.

André Gunthert interpretou a adoção da fotografia no seio da comunidade científica francesa como uma construção resultante e possível no âmbito de um "quadro interpretativo" favorável, isto é, "o consenso mais ou menos difuso de uma maioria de atores em torno de um esquema de inteligibilidade" (Gunthert, 2000, p. 30). No caso do "imaginário fotográfico", um desses quadros interpretativos "foi o da função heurística do meio" ou de "sua capacidade de conduzir (...) a resultados impossíveis de se obter sem ela" (Gunthert, 2000, p. 31). Sua interpretação se reforça pelo fato de que, quando a fotografia foi reconhecida como de utilidade científica, ela ainda não produzia resultados satisfatórios. A relação que se estabelecera entre fotografia e ciência não foi, portanto, natural, mas resultado de uma vontade e de um discurso, "de uma elaboração teórica e tática" (Gunthert, 2000, p. 29).

Entre as ciências praticadas no século XIX, a astronomia parecia se apresentar como a mais apropriada à aplicação científica do novo meio, tal como defendiam o deputado François Arago e o astrônomo Jules Janssen (1824-1907) (Sicard, 1998; Janssen, 1892). No entanto, em pouco tempo, a fotografia extrapolou o campo da astronomia e passou a ter aplicação também em outras ciências, em especial na medicina, que se mostrou um dos ramos da atividade científica que mais absorveu a nova técnica de produção de imagens, a qual prestou seus serviços à clínica, à cirurgia, à histologia, à fisiologia e à medicina legal.

A FOTOGRAFIA NA MEDICINA

Testemunhos dessa colaboração, ainda que dispersos, produzidos na França, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, começam a aparecer desde a primeira metade do século XIX. Em 1846, a criminalidade patológica era retratada pelo médico M. B. Sampson em "Rationale of crime and its appropriatte treatment", com imagens litográficas produzidas a partir de daguerreótipos. Em 1852, o médico alemão Friedrich Jacob Behrendt começava a utilizar a fotografia para documentar casos de ortopedia antes e depois do tratamento. No Surrey County Lunatic Asylum, Hugh Welch Diamond, responsável pela ala feminina desse hospício norte-americano, expunha, em "The face of madness" (1852), seus estudos fotográficos realizados com os internos da instituição.

Aquela que é considerada uma das primeiras daguerreotipias produzidas no seio da medicina foi tomada, em 1844, por Jean-Bernard Léon Foucault (1819-1868), assistente do professor Alfred Donné (1801-1878), este um especialista em microscopia e apaixonado por novas técnicas. Ambos vinham produzindo daguerreótipos de vistas microscópicas desde 1840. A técnica consistia em acoplar, sobre o microscópio, uma câmara escura (entenda-se, um aparelho fotográfico) com um visor removível, por onde se confirmava o foco, sendo depois substituído por uma placa com emulsão sensível para a exposição à luz. Em 27 de fevereiro de 1840, poucos meses depois de patenteado o processo do daguerreótipo, Alfred Donné anunciou a realização de sua primeira microfotografia de levedura de cerveja (Rouillé, 1989, p. 71-72) (Figura 1).


Anos depois, em 1845, superando certas restrições inerentes à fotografia, Donné, com a colaboração de Léon Foucault, apresentou à Academia de Ciências de Paris um volume do seu "Cours de microscopie complémentaire des études médicales, anatomie microscopique et physiologie des fluides de l'économie", um álbum com vistas microscópicas. Lamentavelmente, para Donné e Foucault, seu álbum não seria ainda ilustrado com fotografias, pois, como se tratava da técnica do daguerreótipo, era forçoso que as imagens fotográficas fossem transpostas para a gravura, só assim então podendo ser impressas.

Nem por isto viam-se inibidas as vantagens já reconhecidas na fotografia por seus defensores. Além de permitir a partilha visual das vistas microscópicas, ela ainda captava, devido à sensibilidade das emulsões a diferentes frequências luminosas, traços não perceptíveis pela visão humana (Sicard, 1998, p. 108-109). Tais capacidades incontestes do novo instrumento (a despeito das significativas limitações do meio fotográfico, como a de não reproduzir as cores e não ser sensível a algumas delas, o custo elevado etc.) inflamavam o entusiasmo dos cientistas pela perspectiva de poder avançar com o olhar tanto para dentro, em direção ao corpo humano, como para fora, em direção ao universo.

A trajetória da fotografia na medicina e nas demais ciências prosseguiu assentada em inúmeros experimentos, espalhados por toda parte, durante a segunda metade do século XIX. Entre eles, as experiências de Duchenne de Boulogne e mesmo as de Jean-Martin Charcot, com seus pacientes histéricos (Figura 2); as ambições da fotografia judiciária de Alphonse Bertillon (Figura 3) e Francis Galton, ou da medicina legal, com as teorias de Cesare Lombroso e os optogramas do Dr. Auguste Vernois (Dubois, 1994). Todas essas incursões possuíam vários pontos em comum, tais como a presunção da imagem objetiva, a crença em seu potencial explicativo e na superioridade relativamente à descrição verbal; a exploração abusiva do corpo humano como objeto de estudo; o gosto pelo bizarro; a confusão entre a representação e o real.



Considerado por alguns como o precursor da fotografia médica (Mathon, 1999, p. 21), Guillaume Duchenne de Boulogne (1806-1875) protagonizou uma das experiências mais bizarras com a fotografia, a título de desenvolver o conhecimento sobre o corpo humano. Acompanhado do fotógrafo Adrien Tournachon, seu colaborador mais permanente, porém não o único, Duchenne realizou séries fotográficas registrando as expressões faciais de seus pacientes sob o estímulo de correntes elétricas, dando origem, em 1862, ao álbum "Mécanisme de la physionomie humaine ou analyse électro-physiologique de l'expression des passions" (Figura 4).


A exemplo de Charcot, Duchenne de Boulogne também trabalhou no hospital Salpêtrière, onde conduziu suas experiências buscando compreender o mecanismo dos feixes musculares da face humana na formação das expressões. Foi observando as suas especulações na Salpêtrière, por volta de 1862, que Charcot se viu atraído pela fotografia (Sicard, 1999, p. 73). Isso o levou, mais tarde, a publicar a "Iconographie photographique de la Salpêtrière", que veio à luz em 1876, ilustrada com fotografias dos pacientes histéricos. Outro homem de ciência que demonstrou interesse pelas fotografias de Duchenne de Boulogne foi Charles Darwin. Este se utilizou das fotografias tiradas pelo próprio Boulogne, estampadas em seu célebre estudo sobre a expressão das emoções nos homens e nos animais (Darwin, 1872).

Na segunda metade da década de 1870, as experiências com fotografia na área médica buscam não apenas registrar a aparência da morbidez corporal, mas também captar e congelar as mínimas variações manifestadas pelo corpo, as quais o olho médico não podia fixar ou perceber. Em uma fase posterior, Charcot veio a ser auxiliado, na própria Salpêtrière, por Albert Londe (1858-1917) para produzir os clichês fotográficos de seus pacientes. Londe, que tinha formação em química, sabendo do problema que estava diante de si - o de fotografar pacientes que não permaneciam parados -, inspirou-se nos trabalhos e estudos de outro interessado na fotografia como forma de entendimento do funcionamento do corpo humano. Foram os curiosos clichês de Étienne-Jules Marey (1830-1904) que inspiraram as experiências de Londe no campo da fotografia médica. Marey era professor de fisiologia no Collège de France, mas ficou conhecido pelas fotografias que registraram, em sequência, fases do movimento de corpos humanos, animais e objetos. Suas buscas são concomitantes e muito similares às de Eadweard Muybridge (1830-1904), que, nos Estados Unidos, também tentava capturar as fases do movimento de seres vivos. Ambos, com técnicas, instrumentos e princípios diferentes, chegaram a resultados muito parecidos.

A MEDICINA E A DIFUSÃO DE IMAGENS FOTOGRÁFICAS

Na França, local em que grande parte dos esforços de pesquisa na medicina se orientava pela definição de quadros nosográficos confiáveis e, tanto quanto possível, estáveis, um grupo de médicos do influente Hospital Saint-Louis, em Paris, lançava-se na exploração da fotografia para registrar os casos que passavam por sua clínica. Alfred Hardy (1811-1893)

e A. de Montméja (1841-?), médico e assistente, foram alguns dos primeiros responsáveis pela difusão de imagens fotográficas registrando doenças, especialmente dermatoses, em veículo impresso e com periodicidade. Essa experiência se materializou na "Clinique photographique de l'Hôpital Saint-Louis", que surgiu em fascículos, em 1868, trazendo, coladas em suas páginas, pranchas fotográficas em papel albuminado. Como alternativa ao oneroso sistema heliográfico, àquela altura em voga como técnica de impressão, o método de apresentar fotografias originais em pranchas rígidas, alternando-as com páginas de texto, trazia consigo a vantagem de expor imagens de muito maior qualidade plástica, por se tratar de provas originais. Nelas, reproduziam microfotografias, detalhes de partes afetadas do corpo, dermatoses no mais das vezes (Figura 5), e algumas fotos enquadrando o corpo por inteiro ou um fragmento dele. Desejavam, com isso, desenvolver um recurso visual de utilidade didática para o ensino da dermatologia. No ano seguinte, 1869, como prolongamento dessa iniciativa, considerada um sucesso pelos autores e pela comunidade médica parisiense, surgiu a Revue Photographique des Hôpitaux de Paris. Tratava-se da primeira iniciativa regular de emprego e divulgação sistemáticos, no campo da medicina, de fotografias para representar doenças.


Embora não se saiba o número de exemplares alcançado pela "Clinique Photographique", ela teve uma circulação que lhe garantiu notoriedade entre os profissionais da medicina, como se pode inferir pela recepção merecida na Academia Imperial de Medicina de Paris, a quem Hardy ofereceu um exemplar da obra. Na ocasião da entrega do volume, o autor não pôde deixar de frisar a supremacia da representação visual, mesmo sobre a mais precisa das descrições, quando se tratava do estudo das doenças de pele. Vale reproduzir o discurso ouvido na Academia de Medicina, em 1869, por ocasião da oferta do volume mais recente da "Clinique Photographique":

O Sr. Hardy oferece à Academia o último número de sua Clinique Photographique de l'Hôpital Saint-Louis e, nesta ocasião, ele menciona os exemplares de fotografias, com os quais ele teve a honra de presentear a Academia, relativas a doenças da pele. Graças ao feliz auxílio do Diretor da Assistência Pública [M. Husson], o Sr. Hardy pôde continuar suas pesquisas. Um laboratório especial de fotografia, perfeitamente montado, foi implantado no Hospital Saint-Louis. Para o estudo das doenças da pele, acrescenta o Sr. Hardy, as melhores descrições não valem pelos desenhos, mesmo os coloridos; é por isso que o Sr. Hardy não cessa de trabalhar para tornar perfeitas, por todos os meios possíveis, recorrendo a desenhos e a fotografias colorizadas, todas as nuanças das doenças da pele que as descrições não podem oferecer... (Bulletin de l'Académie Impériale de Médecine, 1869, p. 30).

Como já assinalamos, a "Clinique Photographique" não constituiu a primeira experiência a utilizar a fotografia na ciência médica. Antes, outros médicos, ou mesmo fotógrafos, já haviam testado as possibilidades da nova técnica. Nenhuma dessas experiências, no entanto, deu lugar a uma forma sistemática de emprego da fotografia nesse campo. Antes, constituíram casos pontuais, apenas às vezes retomados. A particularidade da "Clinique Photographique" é que ela deu origem a uma prática que ganharia autonomia e que persistirá, por quase oito anos (1869-1876), nas páginas da Revue Photographique des Hôpitaux de Paris, que teve à sua frente os mesmos parceiros, o clínico Alfred Hardy e seu assistente e fotógrafo A. de Montméja. Em suas páginas, foram estampadas não só fotografias médicas, expondo pacientes com afecções de todo gênero - dos mais simples até os casos teratológicos (Figuras 6, 7 e 8) -, como também os moldes em cera que eram produzidos no próprio Hospital Saint Louis pelo modelador Jules Baretta (Figura 9).





Com o passar dos anos, a prática iniciada pela Revue Photographique des Hôpitaux de Paris ganhou repercussão em outras publicações médicas, tornando comum, na proximidade do final do século XIX, que publicações desse tipo fossem ilustradas com fotografias reproduzindo doentes. Entre as experiências mais expressivas nesse campo, após a Revue Photographique, estiveram publicações originadas no Hospital Salpêtrière: "Iconographie Photographique de la Salpêtrière" (1876-1879), dirigida por Désiré Bourneville, e "La Nouvelle Iconographie de la Salpêtrière (1888-1918)", que, sob a direção de Albert Londe, Paul Richer e Gilles de la Tournelle, representou vários pacientes do Dr. Charcot.

Esses vários exemplos representam, em primeiro lugar, um uso cada vez mais frequente e intenso da fotografia no estudo das patologias, como uma ferramenta ou como "um novo olhar que conserva a memória melhor do que um médico pode fazer e [ao mesmo tempo] procura estabelecer as bases de uma semiologia" (Pujade et al., 1995). Em segundo lugar, servem para mostrar como as experimentações técnicas em fotografia, em conjunção com a ciência médica, vinham, naqueles anos, convergindo para um modo de usar e um modo de ver profundamente reveladores do imaginário ocidental do século XIX. Sob este aspecto, incluem-se também as fotografias de viajantes naturalistas e etnógrafos, produzidas em suas expedições pela África, América, Índia, Rússia, com a pretensão de estabelecer, sob o olhar cientificista, uma classificação objetiva da diversidade humana (Frizot, 2001a, p. 267).

O USO DA FOTOGRAFIA ENTRE MÉDICOS BRASILEIROS: AS REVISTAS MÉDICAS

Não é possível saber com precisão quando, entre os médicos brasileiros, teve início o emprego da fotografia como recurso de conhecimento e de registro de doentes e patologias. Mas é certo que nossos facultativos de medicina, que em grande número se dirigiam à França para estudar, tiveram parte de sua formação marcada pelo contato com as revistas médicas francesas (Costa, 2000; Dantes, 1987), assim como pelo ambiente do Hospital Salpêtrière. Era lá que, às terças-feiras, Charcot promovia suas demonstrações públicas - frequentadas também por Freud - com pacientes histéricos, e onde estes eram fotografados para ilustrar as duas publicações que levaram o nome do hospital: a "Iconographie Photographique de la Salpêtrière" e, mais tarde, "La Nouvelle Iconographie de la Salpêtrière".

Os registros fotográficos preservados ou franqueados à pesquisa no Brasil, de tão raros, não permitem inferir sobre o emprego da fotografia entre os médicos brasileiros até a década de 1890. Entre as tomadas fotográficas que os doutores, normalmente durante o atendimento a seus pacientes, realizaram em hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro, apenas restou, praticamente, o que ficou impresso nas revistas médicas. É nessas publicações especializadas que se encontra o testemunho do emprego da fotografia com finalidades de especulação sobre a doença. Mesmo assim, somente a partir da última década do século XIX veremos estampadas as primeiras fotografias de pacientes.

Ao longo da segunda metade do século XIX, principalmente, algumas poucas revistas nacionais surgem, mas logo desaparecem. A primeira a se firmar foi a Gazeta Médica da Bahia, cujo primeiro número é de 1869. Até o final dos oitocentos, contudo, nenhuma fotografia que retratasse enfermidade ou um corpo doente havia sido publicada. Depois do periódico baiano, surge, no Rio de Janeiro, o BrazilMédico. O primeiro número da nova revista é de 1887, mas a primeira fotografia só apareceu em suas páginas em 1899. Difícil especular acerca do que explicaria tal demora, mas se sabe que as artes gráficas ainda apresentavam sérias limitações para a impressão de imagens, fotografias especialmente.

A partir do momento em que as revistas começaram a publicar fotografias com um pouco mais de vigor (por volta de 1908 em diante), nota-se uma relativa variedade de temas nelas retratados. Encontravam-se de fotomicrografias até estampas de doentes, passando por registros fotográficos de cirurgias, de instrumentos médicos, de fachadas de instituições médicas etc. Todavia, as fotografias não compareciam em número expressivo. Cada edição de uma revista médica, fosse ela de São Paulo ou do Rio de Janeiro, trazia a modesta cifra de um ou dois clichês fotográficos. E muitos eram os volumes que não reproduziam uma imagem sequer.

Em meio às fotografias médicas encontradas nas revistas cariocas e paulistas, notou-se algum acento nas imagens de impacto, isto é, que exibiam doenças, deformidades, afecções apresentando sérios sintomas visíveis. As imagens com que o Brazil Médico inaugurou a apresentação de fotografias em suas páginas, em 1899, referiam-se ao caso das irmãs tóraco-xifópagas Maria e Rosalina. Elas foram separadas, no Rio de Janeiro, pelo Dr. Chapot Prévost e, dados os riscos implicados nesse tipo de cirurgia, um intenso debate teve início.

Quando de sua primeira aparição, em 1899, apenas se cogitava sobre o melhor modo de separar as irmãs (Figura 10). Uma vez separadas as duas meninas, a notícia do acontecido extrapolou as fronteiras nacionais, ocasionando repercussão no outro lado do Atlântico. Isso fez com que o cirurgião encarregado pela operação desse início a uma viagem internacional, com subvenção do governo, tendo por objetivo exibir para eminentes doutores europeus o caso do 'monstro xifópago brasileiro'. Ainda que uma das irmãs tenha morrido em decorrência da separação, a cirurgia conduzida por Prévost significara um "feito cirúrgico muito honroso para a ciência nacional" (Ramos, 1899). Os desdobramentos do episódio renderam artigos até o ano de 1902, quando ainda se viam fotografias das irmãs unidas pelo peito e, depois, a sobrevivente separada (Figura 11) (Silva, 2009).



Um volume mais significativo de fotografias médicas vai ser desaguado pelas revistas paulistas a partir de 1900. O jornalismo médico de São Paulo aparece no final do século XIX, sucedendo as iniciativas editoriais do Rio de Janeiro e da Bahia. A Revista Médica de S. Paulo, fundada, em 1898, por Victor Godinho e Arthur Mendonça - um inspetor sanitário, o outro médico, ambos lotados no Serviço Sanitário do Estado de São Paulo -, foi o primeiro jornal médico a se firmar e a publicar uma imagem fotográfica, o que ocorreu na edição de número 12 do ano de 1900, tratando da retirada de um objeto estranho do corpo de uma jovem (Guimarães, 1900).

Outras publicações se juntaram à Revista Médica de S. Paulo. Logo em 1903, surgiu a Gazeta Clínica(Figura 12). Dez anos mais tarde, em 1913, foi a vez dos Annaes Paulistas de Cirurgia e Medicina; e, em 1918, das Monografias do Serviço Sanitário. Juntas, apresentaram um expressivo repertório de fotografias médicas, cobrindo praticamente todos os temas consagrados do gênero, conforme se observava nas congêneres europeias, mas de acordo com o perfil nosológico brasileiro: doenças de pele, teratologias, protuberâncias, febres eruptivas, ortopedias etc. A estes, somava-se um tipo de fotografia verificada nas revistas locais, mas não nas europeias. São os casos das imagens que promoviam uma espécie de seleção social, em que a afecção patológica figurava associada de perto aos hábitos ou à origem do paciente.


Um exemplo disso é o retrato de uma doente de nome A. T., colona italiana que fora censurada pelo médico que tratou dela e produziu o artigo por causa do descuido com que a paciente executaria suas tarefas cotidianas no lar e no campo. Outro exemplo aparece no clichê que emoldura o rosto da 'criada de servir' Maria Benedita da Conceição. Ela sofreu um ferimento no olho e o médico, autor do texto, afirmou que aquilo tinha acontecido porque a 'criada' estava brincando em pleno horário de expediente (Figuras 13 e 14).



Mais demonstrações dessa seleção praticada pelos médicos paulistas aparecem quando o objetivo era o de dar destaque às condições de vida consideradas impróprias para a saúde do corpo. Nas Figuras 15 e 16, vemos um casal em frente a um casebre feito de gravetos e com telhado de palha, e alguns meninos organizados lado a lado para a comparação de suas estaturas. São ambos representantes do tipo interiorano, estigmatizados, na imagem e no texto, como destituídos dos devidos hábitos de higiene. Há combinação das palavras com as fotografias, induzindo o leitor a associar determinadas doenças como traço inerente a certos modos de vida.



A instrumentalização das imagens fotográficas em função de valores ou de interesses da corporação médica - muito mais que do progresso da ciência - não parava por aí. Entre as muitas modalidades de emprego da fotografia, uma das mais frequentes era a da comparação entre dois estágios distintos do tratamento do paciente, a exemplo do que preconizava Alphonse Davanne (1879, p. 20), de que, "em medicina, vemos a fotografia seguir passo a passo certas doenças". Recomendação que Albert Londe, o principal seguidor de Davanne, repetirá, anos mais tarde (Londe, 1893), no seu manual "La photographie médicale: application aux sciences médicales et physiologiques" (Bernard e Gunthert, 1993).

As estampas feitas com a finalidade de expor fases diferentes da evolução terapêutica constavam, normalmente, de uma chapa representando a enfermidade em seu estado agravado e de outra com o paciente restabelecido (Figura 17). Em poucas ocasiões, o propósito era o de exibir os aspectos sucessivos de uma afecção. Para aqueles primeiros casos, o efeito desejado com as fotografias era, muitas vezes, o de "coroar, pela confirmação, uma ação médica duvidosa que, passado o tempo, mostrou-se acertada ou, melhor, pôde ser enquadrada nos termos convenientes às expectativas ou intenções dos médicos" (Silva, 2009, p. 91).


Saindo do campo da moléstia e indo para o do corpo fotografado, outras importantes constatações vão sugerir que, entre a classe dos médicos, havia certas noções consensuais no tocante ao modo de registrar a imagem dos pacientes. A relação existente entre doença e modo de retratar não era direta; antes, os critérios para a escolha do modo segundo o qual o corpo seria fotografado obedeciam a outros parâmetros. Entre as poses mais recorrentes dos pacientes fotografados, estavam os retratos frontais e de corpo inteiro. A tomada frontal do corpo nu ereto era o ideal de pose científica e correspondia, para as suas concepções de objetividade, ao oposto do que, para a arte, representava o gestual.

A defesa da tomada do nu frontal, que está registrada no manual de Albert Londe, vinha também de outras áreas do mundo científico. Em um artigo de 1898, o antropólogo Gabriel de Mortillet fez a apologia desse modo de fotografar os corpos. Em sua exposição, fica implícita uma diferença que existia entre a medicina e as outras ciências (Mortillet, 1898).

Mortillet reivindicou, para a ciência, em geral, e para a antropologia, em particular, o mesmo direito que tinham os artistas e o comitê de alistamento militar de ver e registrar os corpos nus, sob a justificativa de que "só podemos conhecer bem ao homem vendo-o inteiramente nu" (Mortillet, 1898, p. 105).

Para melhor estudar o homem, temos que tomá-lo em seu estado natural, completamente nu. Não se hesita em despojá-lo de toda sua roupa quando se quer escolhê-lo para soldado. Por que recusar à obra da ciência aquilo com que se consente e se pratica sem hesitação quando se trata de uma obra de destruição? (Mortillet, 1898, p. 105).

Fora da ordem do Direito, esbarrava-se ainda no problema da "decência":

É de opinião geral que os nus verdadeiramente artísticos não são indecentes. Os nus científicos são menos ainda. A antropologia tem necessidade de informações precisas e comparáveis. Suas reproduções do homem nu devem, assim, ser executadas de maneira a fornecer formas e proporções. Todo movimento, toda animação - tão almejados pela arte - são prejudiciais para a antropologia. O nu da ciência deve permanecer frio e se imobilizar em poses simples, sempre as mesmas (Mortillet, 1898, p. 105-106).

Uma última questão, apontada por Mortillet, deixa exposta uma diferença entre a medicina e as outras áreas do saber. O antropólogo se perguntava: "Mas como encontrar indivíduos que consintam em se deixar fotografar sem roupa?". Ele mesmo concluía não ser difícil se deparar com quem se dispusesse a fazê-lo. Mas eis que, para os médicos, isto não representava um problema. Por princípio, o médico exercia um poder sobre o corpo doente, que não era questionado nem pelo paciente - palavra que pode significar "passivo" (Dubois, 1994) -, nem pela opinião pública.

Mais que a suposta indecência, que poderia haver em uma fotografia de nu frontal, fazia-se presente, porém, o fator do constrangimento que pesava sobre o paciente. O corpo nu, frontal e ereto, desprovido de qualquer menção de gesto, era o que interessava ao cientista. Como dissera Mortillet, "todo movimento, toda animação - tão almejados pela arte - são prejudiciais para a antropologia". Na posição reivindicada pela ciência, fria e sempre igual, o paciente se via desprovido de todo recurso inibidor dos olhares observadores, vulnerável e em completa exposição (Figuras 18 e 19). Aquela que era considerada a forma mais objetiva, calculada e reveladora de reproduzir um corpo para a ciência correspondia ao grau máximo de reificação do indivíduo.



Retomando os aspectos que rondam o uso da fotografia com finalidades de difusão das concepções médicas ou de exibição ratificadora dos seus enunciados: os clichês de pacientes do Hospital Saint Louis, de Paris, as irmãs xifópagas de o Brazil Médico, os pacientes socialmente estigmatizados nas revistas paulistas e os nus antropológicos do Dr. Mortillet são exemplos que têm algo de semelhante, ainda que entre eles existam distâncias geográficas, e suas especialidades não sejam rigorosamente as mesmas. O lugar social do cientista, especialmente em se tratando de médicos, opera como condição legitimadora de suas ações e de seus enunciados. A sociedade lhes confere essa prerrogativa. Quando se trata de pacientes, de seres humanos diante de uma lente, o registro fotográfico deixa de ser mera captação passiva dos traços da natureza para ser um ato objetivo de imposição de valores e de vontades. Não teria a medicina avançado tanto, não fosse a colaboração resignada de tantos 'corpos' que se deixaram tocar, abrir, invadir, subtrair, fotografar.

O que aparenta se reduzir a questões de técnica ganha contornos de choque de interesses. No interior da lógica das sociedades liberais e industriais do século XIX, o que poderia soar como um paradoxo é, no entanto, elemento constituinte de seu modo de funcionamento. Isso se compreende melhor quando nos deparamos com manifestações como a que segue, do início do século XX, de um dos médicos mais eminentes no cenário paulista de então, o Dr. Clemente Ferreira:

A socialização da medicina tem posto em vistoso destaque a significação econômica da vida do homem, e nos dias que fluem ninguém contesta mais que a saúde das coletividades representa um fator poderoso da fortuna pública, um fundamento básico da riqueza nacional, do mesmo modo que a saúde de cada um constitui o elemento capital, o bem mais precioso do patrimônio individual (Ferreira, 1904, p. 4).

Na medicina, assim como na antropologia, era a delimitação do que representa o outro que estava em questão, mais do que o conhecimento com fins preventivos dos males que afetam a saúde humana, pois as representações não se prestam a dar a conhecer, mas, tão somente, a representar. Se, para aquele antropólogo, o outro era o diferente, para a medicina o outro era o corpo doente (e nisto aproximam-se, não se afastam), que, em nome da "fortuna pública", da "riqueza nacional", dava sua contribuição à ciência, prestando-se à demarcação do bizarro e do indesejável.

Recebido em 20/05/2013

Aprovado em 03/07/2014

SILVA, James Roberto. Fotografia e ciência: a utopia da imagem objetiva e seus usos nas ciências e na medicina. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 9, n. 2, p. 343-360, maio-ago. 2014

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  • Autor para correspondência
    James Roberto Silva
    Universidade Federal do Amazonas. Instituto de Ciências Humanas e Letras. Programa de Pós-Graduação em História. Campus Universitário, Setor Norte
    Av. Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, 3000
    Manaus, AM, Brasil. CEP 69077-000
    (
  • 1
    Louis-Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) emprestou seu nome à técnica de fixação de imagens por ele criada, e que foi anunciada, como de domínio público, na Academia de Ciências de Paris e na Assembleia Nacional francesa, em 1839, por François Arago (1783-1853), físico francês que ocupava uma cadeira de deputado na casa legislativa. Em um daguerreótipo, a imagem se forma pela ação da luz sobre uma placa de cobre, cuja superfície é recoberta por uma solução argêntea, que, embora sensível à incidência luminosa, exige um tempo dilatado de exposição, de vários minutos, para que a imagem nela projetada seja 'gravada'. A imagem latente na placa é, em seguida, processada em solução química. A técnica do daguerreótipo não concebeu, contudo, a possibilidade de reprodução de cópias, o que tornava única a imagem resultante, observável apenas na plaqueta metálica.
  • 2
    A técnica do calótipo (do grego
    kalos: belo, bom, útil) consiste em impressionar luminosamente uma folha de papel, que contém, em sua superfície, uma emulsão composta de nitrato de prata, ácido gálico e ácido acético, muito sensível à luz, que requer um tempo de exposição de dezenas de segundos ou poucos minutos, muito curto se comparado ao que exigia o daguerreótipo. Em uma câmara escura, o papel emulsionado é exposto e, em seguida, revelado em solução química, obtendo-se uma imagem negativa, a partir da qual se reproduzem as cópias em positivo (Frizot, 2001b, p. 61).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2014

    Histórico

    • Aceito
      03 Jul 2014
    • Recebido
      20 Maio 2013
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